Ementa - Dossiê: Policiamento de manifestações (Mediações, vol. 26, n. 3 - 2021/3)

2020-07-31

Organizadores: Bruno Konder Comparato (UNIFESP) e John Topping (Queen’s University Belfast - Northern Ireland).

A questão do policiamento de manifestações é bastante séria e merece reflexão. Se num regime autoritário o único critério para a avaliação das forças de segurança pública é a sua eficácia, numa democracia, ao contrário, o principal indicador do sucesso democrático, tanto da instituição policial, quanto de todo o Estado, é sua capacidade de conciliar o respeito das liberdades e dos direitos individuais com a proteção da segurança e da ordem pública (Della Porta e Reiter, 1999 e 2003). Por esta razão é que nas modernas sociedades democráticas o policiamento das manifestações e dos protestos populares é uma das tarefas das mais delicadas. O que está em jogo não são apenas as liberdades individuais, mas também os direitos de participação política dos cidadãos que constituem a essência mesma do sistema democrático. A despeito da grande variedade de definições de democracia, todas elas concordam com a afirmação de que “a democracia é um sistema que permite lidar com as diferenças sem o recurso à violência”. Assim, o exercício do protesto e a manifestação do dissenso são essenciais para a vitalidade de uma sociedade democrática.

As estratégias de manutenção da ordem pública que a polícia adota influenciam a percepção que os cidadãos têm sobre a maneira pela qual o Estado respeita os seus direitos e as suas liberdades. Neste sentido, o policial que intervém para manter uma manifestação popular sob controle é considerado não somente como um representante do poder público, mas também como um indicador da qualidade da democracia em um determinado sistema político. O Programa do Conselho da Europa para a Polícia e os Direitos Humanos, inaugurado no ano 2000, é claro quanto a esse ponto: “Cada vez que a polícia investiga um delito, executa decisões judiciais ou entra em contato com os cidadãos a quem serve, a sua conduta simboliza a maneira pela qual os direitos humanos são respeitados e protegidos nos países em questão (...) A maneira pela qual a polícia desempenha o seu papel é um indicador infalível do nível da qualidade da sociedade democrática, bem como do seu grau de respeito pela preeminência do direito”.

A função mais imediata da polícia é garantir o respeito das leis e a manutenção da ordem pública. Trata-se de um segmento do Estado que está autorizado a empregar a força, quando necessário. O que caracteriza uma polícia democrática, contudo, é o consentimento e a independência. Consentimento dos cidadãos em serem vigiados e protegidos pela polícia, e independência da polícia com relação ao governo. O primeiro aspecto é o que garante a legitimidade das ações policiais e explica como algumas dezenas de policiais são capazes de controlar agrupamentos de milhares de cidadãos. O consentimento faz com que a autoridade do policial seja mais eficaz do que o emprego da força. O segundo aspecto impede que a polícia seja instrumentalizada pelo governo como estratégia de luta política. A independência da polícia e a necessária prestação de contas a que ela deve ser submetida garantem que ninguém esteja acima da lei, nem os governantes, nem os policiais.

Quando uma manifestação foge ao controle da polícia e desafia a ordem pública, estes dois aspectos se rompem, pois a população deixa de consentir às ordens da polícia que não considera mais como legítima, ao mesmo tempo em que identifica as forças policiais como defensoras dos interesses do governo que está sendo contestado pelos manifestantes. Perde-se assim o consentimento e a independência. Trata-se de algo grave porque uma manifestação de alcance limitado, direcionada para um aspecto específico do governo, corre o risco de se transformar num plebiscito contra o governo como um todo. Pode-se considerar que a polícia representa a imagem mais imediata do Estado aos olhos dos manifestantes e influencia diretamente o seu comportamento. É sabido que ações repressivas resultam em uma radicalização nas formas de protesto. Por outro lado, o policiamento das manifestações está na origem do desenvolvimento e da institucionalização das polícias. Estudos recentes mostram que a gradual afirmação da polícia como principal agência especializada no policiamento de protestos está na origem da modernização e da profissionalização das forças policiais na Europa nos últimos dois séculos (Aubouin et alii, 2005; Morgan, 1987). Com efeito, se a capacidade de realizar investigações não é uma exclusividade da atividade policial, o policiamento de protestos o é. Nas últimas três décadas, o estilo de controle e policiamento das manifestações nos países de democracia mais avançada mudou significativamente. Naqueles países, as forças policiais desenvolveram novas estratégias de manutenção da ordem pública, baseadas na busca do diálogo com os organizadores das manifestações e num esforço de informação com auxílio de modernas tecnologias audiovisuais que permitem identificar quem, porventura, viola a lei sem precisar intervir diretamente. O preparo dos policiais que são destacados para acompanhar protestos e manifestações é fundamental, pois estes devem ser treinados para controlar as suas emoções e saber resistir a provocações. Geralmente, uma multidão é perfeitamente ciente das leis, e na maioria das vezes respeita os princípios da lei e da ordem. Pode acontecer, contudo, que a excitação se torne tão intensa que a lei é simplesmente ignorada. Cabe aos policiais lembrar aos manifestantes que a lei existe respeitando-as, e não cometendo mais atos ilegais.

Desde junho de 2013, quando um grande movimento popular de proporções nacionais que abalou o sistema político em grandes manifestações de rua que paralisaram as grandes cidades do Brasil por vários dias, o policiamento de manifestações entrou na pauta da agenda política nacional. Esta questão não se restringe ao Brasil, e vem sendo considerada também em outros países da América Latina, de olho na experiência acumulada por países de democracia mais consolidada do hemisfério norte.

O objetivo deste dossiê é reunir artigos que proponham uma reflexão sobre o assunto seja a partir do ponto de vista do poder público e das forças policiais e das suas estratégias para acompanhar, conter ou reprimir uma manifestação; seja a partir ponto de vista dos movimentos sociais e coletivos de manifestantes; seja a partir do trabalho de advogados ativistas que procuram fazer a intermediação entre estes dois grupos. Entendemos que o momento é oportuno para análises sobre os protestos públicos em relação com a pandemia, o agravamento das condições econômicas e o movimento Black Lives Matter nos EUA e no Reino Unido. Análises comparativas baseadas em experiências significativas em diferentes países são igualmente bem-vindas.