Ementa - Dossiê: O populismo e a construção política do povo (Mediações, vol. 26, n. 1 - 2021/1)

2020-07-31

Organizadores: Daniel de Mendonça (UFPel) e Igor Suzano Machado (UFES).

Munidos pelas novas e antigas formulações sobre o populismo, diversos pesquisadores se debruçaram sobre transformações políticas do século XXI, tomando como fonte de inspiração o conceito. Nesse sentido, a presente proposta de dossiê almeja dar continuidade a este movimento, selecionando artigos que abordem o fenômeno do populismo e ajudem a compreendê-lo, seja em sua dimensão teórica, seja em sua dimensão empírica; seja em suas manifestações à esquerda do espectro político, seja em suas manifestações à direita desse espectro; seja em um corte sincrônico, apoiado na organização política do presente, seja em um corte diacrônico, em que se estude o desenvolvimento do conceito e de suas encarnações concretas ao longo do tempo; seja pensando nas novas manifestações populistas surgidas no centro do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos, seja voltando seu olhar para as características do populismo em países periféricos, como, no caso de nosso maior interesse de compreensão, nas manifestações populistas no Brasil contemporâneo.

O caso brasileiro, porém, é apenas um entre os vários momentos recentes que nos fazem vislumbrar a importância do tema. Antes mesmo da emergência recente do populismo de extrema-direita no Brasil, com a ascensão do bolsonarismo, Chantal Mouffe (2018) chamava atenção para o crescimento do populismo de direita na Europa ocidental e a necessidade de lhe contrapor um populismo de esquerda. Além do caso europeu, a vitória de Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016, fortemente amparado num discurso populista de direita, tem servido de alerta inclusive sobre a própria continuidade democrática naquele país (Levitsky e Ziblatt, 2018; Mounk, 2019). Em outros países da América Latina, governos de esquerda que emergiram no cenário político do início do século XXI, como os governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela, e de Evo Morales na Bolívia, e que ainda ocupam o centro do debate político de seus países, são associados – pejorativamente, inclusive – ao populismo. Voltando um pouco mais no tempo, temos ainda na América Latina o populismo de direita de Fujimori, no Peru, e a quintessência da reflexão laclauniana sobre o populismo: o peronismo, que continua dividindo a política argentina.

No caso do Brasil, o governo Lula foi associado à mesma onda de populismo de esquerda de Chávez e Morales e, mais recentemente, como referimos, a eleição de Jair Bolsonaro tem sido associada à emergência de um populismo de extrema-direita no país. Se o populismo de esquerda latino-americano buscava construir um “povo” antagonicamente às elites econômicas, oligarquias tradicionais e grupos étnicos privilegiados, mais recentemente, o Brasil viu serem opostas ao povo, via discurso da direita, elites políticas corruptas, ou elites culturais que defenderiam valores estranhos aos desse povo, trazendo de volta para dentro do campo popular, por outro lado, empresários e grandes proprietários de terra. Diante desse cenário, aprofundar nosso conhecimento sobre o populismo, tanto em termos conceituais, quanto em termos empíricos, está diretamente relacionado a compreendermos melhor a atual conjuntura política, no Brasil e no mundo, em que diversas reações à crise da democracia liberal são classificadas sob o rótulo de “populistas”.

A emergência do populismo em um momento, como o atual, em que a democracia representativa liberal parece enfrentar uma crise global e perder confiança mesmo nos países que ocupam o centro da economia capitalista mundial, não é gratuita. Francisco Panizza, em um interessante inventário sobre as práticas populistas (2009, p.21), aponta como uma das características do populismo sua emergência em contextos de “fracasso das instituições sociais e políticas existentes para limitar e regular os sujeitos políticos dentro de uma ordem social relativamente estável”, sendo o populismo, segundo ele, “um modo de identificação característico de tempos de instabilidade”. O autor também destaca a relação entre a emergência do populismo e diversas situações históricas que igualmente nos remetem ao tempo presente. Nesse sentido, ele salienta como o populismo emerge em situações de ruptura da ordem social e perda da confiança no sistema político como sendo capaz de restaurá-la, assim como em contextos de esgotamento de tradições políticas e de desprestígio de partidos políticos, em períodos de mudanças econômicas, demográficas e culturais – incluindo os processos de globalização – e em situações de aparecimento de formas de representação política externa às instituições políticas tradicionais, dando destaque à emergência de novos meios de comunicação de massa, como o rádio e a televisão – aos quais acreditamos que podemos, hoje, adicionar a internet e suas redes sociais.

Assim, compreender a emergência do populismo diante das mudanças nas sociedades contemporâneas em suas crises econômicas e políticas, suas transformações culturais e de meios de comunicação, e suas inserções ambíguas em contextos locais e globais, é também compreender melhor como o regime democrático se organiza, apresenta suas potencialidades e limites e provoca os cidadãos a criarem identidades que os situem neste turbilhão. É compreender, ainda, as dinâmicas políticas específicas que, caso a caso, respondem a essas crises e tensões, articulando essas identidades populares e nomeando inimigos do povo, e que trazem aos diferentes países mudanças em suas instituições políticas e sociais, em diferentes níveis de profundidade e longevidade. Diante desse quadro, serão aceitos para o presente dossiê, dentre outros, principalmente trabalhos que foquem:

  1. O desenvolvimento teórico da reflexão sobre o populismo, as diversas acepções do conceito e as relações tensas que ele mantém com outros conceitos-chave da teoria política como democracia, nacionalismo, identidade, classes sociais, elites, cultura política, movimentos sociais, carisma etc.;
  2. Análises históricas de momentos de emergência da política populista, buscando compreender suas configurações próprias e como essas configurações nos ajudam a entender emergências contemporâneas de populismos à esquerda e à direita;
  3. Pesquisas sobre movimentos políticos contemporâneos, à esquerda e à direita, que se articulem em torno da construção de um “povo” contra algum tipo de elite opressora, como elites econômicas, oligarquias tradicionais, establishment político, estrangeiros usurpadores das riquezas nacionais ou dos “nossos empregos”, formadores de opinião que dominam culturalmente as artes, a mídia, a ciência e as instituições de ensino etc.;
  4. A relação entre a emergência de movimentos políticos populistas e situações de crise econômica, transformações sociais e culturais abruptas, perda de confiança nos partidos e instituições políticas tradicionais, surgimento de novas tecnologias de informação a serem usadas como canal de comunicação política “por fora” da política tradicional, ou outros fatores menos explorados na literatura sobre o tema, como instituições policiais e judiciais propícias a um “populismo penal”;
  5. Estudos sobre as principais identidades que têm articulado o posicionamento político brasileiro, como lulismo, petismo, lavajatismo e bolsonarismo e suas relações de proximidade ou afastamento do populismo como forma de organização da política em campos de enfrentamento entre o “povo” e seus mais diversos antagonistas.

Propiciando um apanhado de reflexões capazes de contribuir com a elucidação dos pontos listados acima, o dossiê temático proposto será capaz de aglutinar importantes reflexões das ciências sociais sobre o tempo presente e algumas das tensões que o caracterizam, como as tensões internas a uma democracia representativa em crise. A proposta, assim, adequa-se ao escopo da Revista Mediações, dedicada a contribuir “seja para a inovação teórica e/ou metodológica, seja para o avanço de análises empíricas qualificadas na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas”, permitindo ao público leitor do periódico acesso a pesquisas e debates capazes de lançar luz sobre o tema do populismo e sua importância para a compreensão da realidade social e política contemporâneas.