GÊNERO, REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E TRABALHO FEMININO
Cássia Maria Carloto*
* Assistente Social, docente do Curso de Serviço Social da UEL e doutora em Serviço Social pela PUC-SP..

RESUMO

As reestruturações produtivas e as mudanças que elas acarretam no mercado e na organização do trabalho no contexto atual da globalização da economia, pouco são analisadas do ponto de vista das diferenças de gênero. Entretanto, os impactos das reestruturações produtivas sobre as condições de trabalho sofrem variações segundo o sexo e a mão-de-obra. 
O novo modelo de flexibilização, para as mulheres, passa pela utilização intensiva de formas de emprego precárias, como contratos de curta duração, empregos por tempo parcial e/ou trabalho em domicilio. Uma das formas como se manifesta esse fenômeno, é a concentração da presença feminina nas chamadas empresas "mão" dos novos encadeamentos produtivos (ou seja, aquelas onde predomina o trabalho instável, pouco qualificado e mal pago), em oposição às empresas "cabeça", onde se concentraria o trabalho mais bem qualificado, mais estável e mais bem remunerado.

Palavras-chaves: Gênero. Sexualidade. Trabalho Feminino.Reestruturação produtiva.


A proposta deste trabalho é tecer algumas considerações sobre as particularidades da exploração da mão de obra feminina e a posição das mulheres no mercado de trabalho, apresentando alguns dados sobre o contexto brasileiro.

A questão central é que as condições diferenciadas por gênero foram sendo apropriadas pelo mercado de trabalho, interferindo na própria organização do mesmo. O intenso processo de terceirização de serviços ou de etapas do processo produtivo, através da subcontratação e do assalariamento sem carteira, da informalização, da flexibilização das relações sociais no mundo do trabalho, adquiriu, através da mão-de-obra feminina, um importante papel estruturador.

Partindo da premissa de que gênero, classe e etnia, estruturam a totalidade das práticas sociais, e que são categorias indispensáveis para refletirmos sobre a condição das mulheres no mundo do trabalho, iniciaremos nossas considerações abordando a divisão sexual do trabalho.

A divisão sexual do trabalho

A divisão sexual do trabalho é uma constante na história das mulheres e homens. As explicações para tal fato muitas vezes se apoiaram num determinismo biológico, a partir do papel das mulheres na reprodução biológica, buscando naturalizar essa divisão.A questão que se coloca é que esta divisão é carregada de significados e de práticas, que mudam conforme os diferentes tipos de sociedades e seu momento histórico.Tem em comum o fato de que o trabalho das mulheres, e aqui vamos nos deter na formação social capitalista, não ser tido apenas como diferente, mas como um trabalho que não recebe a mesma valorização e conseqüente remuneração atribuída ao trabalho masculino.

Para Marx o início da utilização do trabalho das mulheres pelo capitalista foi facilitado pela introdução da maquinaria que, segundo ele, permitia o emprego de trabalhadores sem força muscular. À época, as mulheres eram consideradas parcialmente capazes do ponto de vista jurídico. O olhar sobre as mulheres é o olhar sobre seres indefesos e incapazes, dos quais o capitalista se aproveita para diminuir os salários dos homens adultos, roubar-lhes o trabalho e aumentar os lucros. Diz Marx: “Antes, o trabalhador vendia o trabalho do qual dispunha formalmente como pessoa livre. Agora vende mulher e filhos. Torna-se traficante de escravos (Marx)[1]”. 

A mulher, nesse contexto, aparece não só como propriedade do capitalista como também do homem/marido, e com o mesmo status das crianças.  As altas taxas de mortalidade infantil, nesse período, são atribuídas principalmente ao fato de as mães trabalharem fora de casa, o que faz as crianças serem abandonadas e mal cuidadas.

O fato das mulheres afastarem-se de seu lugar “natural” – o lar - é tido como uma degradação moral, ocasionada pela exploração capitalista. A presença predominante de mulheres e crianças no trabalho nas indústrias recém-mecanizadas é tida também como um determinante da quebra da resistência que o trabalhador masculino opunha ao despotismo do capital na manufatura. 

O primeiro contingente feminino que o capitalismo marginaliza do sistema produtivo é constituído pelas esposas dos prósperos membros da burguesia ascendente. A sociedade não prescinde, entretanto, do trabalho das mulheres das camadas inferiores. Muito pelo contrário, a inferiorização social de que tinha sido alvo a mulher desde séculos vai oferecer o aproveitamento de imensas massas femininas no trabalho industrial. As desvantagens sociais que gozavam os elementos do sexo feminino permitiam à sociedade capitalista em formação arrancar das mulheres o máximo de mais-valia absoluta através, simultaneamente, da intensificação do trabalho, da extensão da jornada de trabalho e de salários mais baixos que os masculinos, uma vez que o processo de acumulação rápida de capital era insuficiente a mais-valia relativa obtida através do emprego da tecnologia de então. A máquina já havia sem dúvida, elevado a produtividade do trabalho humano; não, entretanto, a ponto de saciar a sede de enriquecimento da classe burguesa (Saffioti, 1979:36)

A noção de divisão sexual do trabalho, tem sido uma importante categoria para a compreensão do processo de constituição das práticas sociais a partir de uma base material. O uso de práticas sociais aqui é usado como uma noção indispensável que permite a passagem do abstrato ao concreto; poder pensar simultaneamente o material e o simbólico; restituir aos atores sociais o sentido de suas práticas, para que o sentido não seja dado de fora por puro determinismo (Kergoat,1996).

Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho são duas proposições indissociáveis que formam um sistema, sendo que a noção de relações sociais de sexo é, ao mesmo tempo, anterior e posterior à reflexão em termos de divisão sexual do trabalho. Ela é preexistente, pois foi uma aquisição do feminismo, por meio da emergência de categorias de sexo como categoria social e de mostrar que os papeis sociais de homens e mulheres não são produto de um destino biológico, mas que eles são, antes de tudo, construções sociais que têm uma base material (Kergoat,1996).

A divisão sexual do trabalho assume formas conjunturais e históricas, é construída como prática social, ora conservando tradições que ordenam tarefas masculinas e tarefas femininas na indústria, ora criando modalidades da divisão sexual das tarefas. A subordinação de gênero, a assimetria nas relações de trabalho masculinas e femininas  manifesta-se não apenas na divisão de tarefas, mas nos critérios que definem a qualificação das tarefas, nos salários, na disciplina do trabalho. A divisão sexual do trabalho não é tão somente uma conseqüência da distribuição do trabalho por ramos ou setores de atividade, senão também o princípio organizador da desigualdade no trabalho (Lobo, 1991).

que a divisão sexual do trabalho não cria a subordinação e a desigualdade das mulheres no mercado de trabalho, mas recria uma subordinação que existe também nas outras esferas do social. Portanto a divisão sexual do trabalho está inserida na divisão sexual da sociedade com uma evidente articulação entre trabalho de produção e reprodução. E a explicação pelo biológico legitima esta articulação. O mundo da casa, o mundo privado é seu lugar por excelência na sociedade e a entrada na esfera pública, seja através do trabalho ou de outro tipo de prática social e política, será marcada por este conjunto de representações do feminino (Brito e Oliveira, 1998:252).

Gênero, classe e raça são categorias co-extensivas no dizer de Kergoat, e um nó, no dizer de Saffioti. Essas duas preposições, a nosso ver, se estendem a gênero e à divisão sexual do trabalho. A divisão sexual do trabalho, como base material do sistema de sexo-gênero concretiza e dá legitimidade às ideologias, representações e imagens de gênero, estas por sua vez fazem o mesmo movimento em relação às práticas cotidianas que segregam as mulheres nas esferas reprodutivas e produtivas, num eterno processo de mediação.

Imagens de gênero e trabalho das mulheres

Em um Congresso Canadense do Trabalho das Mulheres, um administrador de uma linha de montagem em Taiwan explicava sua preferência por mulheres da seguinte maneira: "os trabalhadores homens são demasiados inquietos e impacientes para fazer um trabalho monótono sem perspectiva de carreira. Não se submetem à disciplina, sabotam as máquinas e inclusive ameaçam o supervisor. Mas as moças, quando muito, choram um pouco.(rev.ISIS,1991).

Harvey (1992), comenta que, nas últimas décadas houve um reordenamento não só no mercado de trabalho, mas também nas relações familiares. Valores tradicionais em relação à família, à sexualidade e à maternidade passam a ser reformulados, alterando-se práticas quotidianas e mentalidades Mas, apesar dessas transformações isso não quer dizer que a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho representou uma mudança revolucionária na vida dessas. Elas ainda continuam responsáveis  pelas  atividades reprodutivas e pelos cuidados com a casa e com os membros da família, ainda são vistas como aquelas que "ajudam no orçamento familiar",  enquanto aos homens cabe o papel de provedor.

Esses papéis, essa visão da mulher e, em especial, as conseqüências da maternidade, acabam influenciando a forma como a mulher se coloca no mercado de trabalho, a forma como os patrões e os homens em geral vão tratar as mulheres. Essa visão vai influenciar tanto nas oportunidades de acesso ao emprego, no tipo de trabalho, como nas condições  em que se desenvolve o trabalho.

Para Bruschini (1998), esta definição social dos papeis masculinos e femininos no âmbito da família têm conseqüências diferenciais sobre um e outro sexo, em sua participação no mercado de trabalho. Para a autora a constante necessidade de articular papéis familiares e profissionais limita a disponibilidade das mulheres para o trabalho, e essa disponibilidade não depende apenas da demanda do mercado e das suas qualificações para atendê-la, mas decorre de uma complexa combinação de características pessoais e arranjos no âmbito doméstico.

O estado conjugal e a presença de filhos, associados à idade e à escolaridade da trabalhadora, as características do grupo familiar, como o ciclo de vida familiar em formação, com filhos  pequenos, famílias maduras, filhos adolescentes, famílias mais velhas,  e a estrutura familiar - família conjugal, chefiada por mulher, ampliada, presença de outros parentes - são fatores que estão sempre presentes na decisão das mulheres de ingressar ou permanecer no mercado de trabalho, embora a necessidade econômica e a existência de emprego tenham papel fundamental (Bruschini, 1998:4).

A identidade da mulher como trabalhadora, portanto, vai estar sempre associada a seu papel de reprodutora. Essa imagem básica, originária da mulher família, mãe, dona-de-casa vai estar sempre na frente. O trabalho, por exemplo, é tratado no masculino e o trabalho produtivo é feito pelos trabalhadores. É ao homem que se associa a imagem de trabalhador, de provedor da família. Essa imagem da mulher vai trazer limitações a uma adequada colocação no mundo do trabalho.

Abramo (1998) constatou que a imagem básica, originária (da mulher-família, mãe, dona de casa) vai estar sempre na base - e projetando sua sombra - sobre a outra (a da mulher trabalhadora). A autora utiliza a expressão imagens de gênero como:configurações das identidades masculina e feminina, produzidas social e culturalmente, que determinam, em grande parte, as oportunidades e a forma de inserção de homens e mulheres no mundo do trabalho. Essas imagens são “prévias” a essa inserção, ou seja, são produzidas e reproduzidas desde as etapas iniciais da socialização dos indivíduos e estão baseadas, entre outras coisas, na separação entre o privado e o público, e na definição de uns como territórios de mulheres e outros como territórios de homens. Por sua vez, essas imagens condicionam fortemente as formas (diferenciadas e desiguais) de inserção no mundo do trabalho: tanto as oportunidades de acesso ao emprego como as condições em que este se desenvolve (Abramo, 1998:18).

É importante retomar o já apontado quanto ao processo de mediação que se estabelece entre essas imagens e a prática cotidiana, entre o real e o simbólico, à medida que este simbólico contribui para a concretização da exploração da mão de obra feminina, aumentando os ganhos do capital. 

Os rendimentos das trabalhadoras brasileiras são sistematicamente inferiores aos dos homens, seja segundo o setor de atividade, seja quanto à posição na ocupação ou quanto à escolaridade. Em 95, 85% dos homens receberam mais de cinco salários mínimos contra apenas 66% das mulheres, e isto entre  os que tinham mais de 15 anos de estudo (Bruschini,1998).

Outra conseqüência é a desqualificação do trabalho da mulher.  As habilidades manuais das mulheres reduziram-se a atividades desvalorizadas e geralmente relacionadas a certos saberes femininos considerados naturais, como, por exemplo, a destreza manual, a atenção a detalhes, a paciência para realizar tarefas monótonas e repetitivas. Essa visão é  aproveitada pelos patrões  que colocam as mulheres em  funções como, por exemplo montagem de peças miúdas e embalagens na industria eletroeletrônica,  costura nos ramos têxteis, digitação nos bancos. 

É importante esclarecer que nem todas as mulheres têm ou desenvolvem essas habilidades e características, mas como estão associadas ao gênero feminino e à natureza feminina, é pressuposto que não precisam de treinamento, nem de capacitação. Além disso, a desqualificação não é só porque o que as mulheres fazem é resultado de habilidades naturais, mas também porque são discriminadas por serem mulheres. Por definição elas não são reconhecidas como qualificadas. Elas continuam sendo consideradas cidadãs de segunda categoria.

Um recorte na atualidade: a reestruturação produtiva e o trabalho feminino

A questão da chamada "flexibilização" ou "acumulação flexível" tem ganhado destaque e importância para o entendimento das relações de trabalho e a organização da produção.

Segundo Hirata (199l) e Elson (l995)[2], o tema da flexibilidade se refere de fato a diferentes dimensões do sistema econômico: flexibilidade na forma de produção, com alteração na divisão técnica do trabalho; flexibilidade na estrutura organizacional das empresas, com redes de sub-contratação e sociedade entre empresas; flexibilidade no mercado de trabalho, com crescentes desregulações e alterações nos contratos, costumes e práticas que organizam o mercado de trabalho, facilitando a contratação e a dispensa de trabalhadores. 

O modelo ainda não se dá de forma homogênea. Sua penetração varia significativamente de um setor para outro, de acordo com o modo de inserção na economia mundial, e se a mão de obra é masculina ou feminina.

Segundo Harvey (1992), a acumulação flexível:

é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimentos de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimento desigual tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado "setor de serviços", bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas  (Harvey, 1992:140).

Convém assinalar que Harvey (1992) não compactua com a posição de que a acumulação flexível já é totalmente hegemônica e possua elementos novos que rompem com antigos paradigmas da acumulação capitalista. Para ele a acumulação flexível deve ser considerada uma combinação particular e, quem sabe, nova de elementos primordialmente antigos no âmbito da lógica geral da acumulação do capital.

O autor aponta algumas das péssimas conseqüências da flexibilização, como os níveis altos de desemprego estrutural, a rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos de salários reais e o retrocesso do poder sindical - uma das colunas políticas do regime fordista – e a  redução do emprego regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou sub-contratado, que  afeta principalmente as mulheres.

Ainda para Harvey (1992), mesmo com a diminuição do poder sindical, reduzindo o poder dos trabalhadores brancos do sexo masculino do setor monopolista, não é verdade que os excluídos desses mercados de trabalho - negros, mulheres, minorias étnicas de todo tipo - tenham adquirido uma súbita paridade, exceto no sentido de que muitos operários homens e brancos tradicionalmente privilegiados, foram marginalizados unindo-se aos excluídos.[3] 

Apesar do acesso de algumas mulheres a posições mais privilegiadas, principalmente em postos tradicionalmente ocupados por homens, de maneira geral, as novas condições do mercado de trabalho acentuaram a vulnerabilidade de grupos tradicionalmente discriminados como as mulheres.

Harvey (1992), analisa a situação das mulheres mostrando que, as novas estruturas de mercado de trabalho facilitam muito a exploração da força de trabalho das mulheres em ocupações de tempo parcial, substituindo  trabalhadores homens melhor remunerados e mais difíceis de serem admitidos, pelo trabalho feminino mal pago. Também o retorno dos sistemas de trabalho doméstico e familiar e a sub-contratação permite o ressurgimento de práticas e trabalhos de cunho patriarcal feitos em casa. Esse retorno segue paralelo ao aumento da capacidade do capital multinacional de levar para o exterior sistemas fordistas de produção em massa, e ali explorar a força de trabalho feminino, extremamente vulnerável em condições de remuneração baixa e pouca segurança no emprego.          

O autor cita o exemplo do programa maquiladora, que permite que administradores e a propriedade do capital norte-americano permaneçam ao norte da fronteira mexicana enquanto se instalam as fábricas, que empregam principalmente mulheres jovens. Lobo (1991), analisando a mesma experiência, afirma que a desterritorialização no processo de trabalho aparece claramente como uma forma de expropriação do saber e controle das trabalhadoras em face do seu trabalho. Também, a partir da individuação  da força de trabalho se constrói uma força de trabalho coletiva e sexuada, sem identidade profissional, que produz um produto final que não conhece. As condições ótimas de produtividade são socialmente recriadas através da hierarquia de gêneros, que faz das mulheres trabalhadoras "dóceis", "baratas", "disciplinadas".

Abramo (1998), considera que uma série de estudos empíricos realizados na América Latina parece indicar que o novo modelo de flexibilização, para as mulheres, passa pela utilização intensiva de formas de emprego precárias, como contratos de curta duração, empregos em tempo parcial e/ou trabalho em domicilio. A autora chama a atenção para uma das formas como se manifesta esse fenômeno, que é a concentração da presença feminina no que ela chama empresas “mão” dos novos encadeamentos produtivos, ou seja, aquelas onde predomina o trabalho instável, pouco qualificado e mal pago, em oposição às empresas “cabeça”, na qual se concentraria o trabalho mais bem qualificado, mais estável e melhor remunerado.

A autora utiliza a análise das cadeias produtivas[4], porquanto essa perspectiva  evidencia a presença feminina nos processos produtivos e, mais do que isso, contribui para  esclarecer o sentido dessa presença nos atuais processos de reestruturação. Ajuda a entender, por exemplo, o trabalho em domicilio, ou aquele realizado nas pequenas oficinas informais, não como esfera separada da economia e do mercado de trabalho, como força de trabalho secundária, atípica, marginal e eventual, mas sim como parte de uma cadeia produtiva que têm na outra ponta empresas formais, modernas, inseridas no mercado internacional. Essas análises mostram também que, conforme se desloca das empresas-cabeças para as empresas-mão, observa-se uma progressiva precarização das condições de emprego e trabalho fortemente marcado pela variável gênero.   

O contexto brasileiro

A sociedade brasileira nas últimas duas décadas passou por significativas transformações de ordem social, econômica e demográfica. A expansão da economia, a crescente urbanização e o ritmo acelerado da industrialização marcaram um momento de crescimento econômico, consolidando sua industrialização e modernizando o aparato produtivo. 

Todo este processo, porém, não modificou o quadro de exclusão social, de baixos salários, ao contrário, aumentou as desigualdades sociais e a concentração de renda, já que estas transformações se deram nos marcos, já colocados, de uma nova organização do trabalho e de uma reestruturação produtiva que vem provocando o declínio de formas protegidas de emprego, o desemprego e o surgimento de novas alternativas de trabalho, em geral, sem cobertura legal. 

No Brasil, essas transformações da economia contribuíram para aprofundar a crise local, que se acirrou na década de 90, cujos sintomas principais foram a perda de postos de trabalho na indústria, a perda da qualidade dos empregos e o aumento da informalidade (Bruschini, 1998).

Para as mulheres houve transformações importantes: aumento acentuado da participação feminina no mercado de trabalho, principalmente nas regiões urbanas e a permanência da atividade feminina neste mercado, ou seja, apesar da crise que marcou os anos 80, as mulheres se mantiveram no mercado de trabalho. Mas como observa Hirata (1997), o forte aumento da taxa de atividade feminina no Brasil coincide com o importante aumento da precariedade do emprego no mesmo período. 

Ocorreram também modificações importantes no nível organizacional do capital, de um lado, e, de outro, reformulação nas práticas ocupacionais das mulheres. Lobo (1991), mostra que este contexto foi influenciado por dois tipos de fatores: os fatores econômicos que influenciam a posição das mulheres na hierarquia da produção e os não-econômicos, que operam de forma autônoma, as práticas das mulheres nas famílias, suas práticas com relação ao trabalho e aos empregos. Os fatores econômicos implicam basicamente  modificações no processo de trabalho, em que a desqualificação e fragmentação de tarefas coincidem com a expansão do emprego feminino.

No caso brasileiro, o crescimento da oferta de emprego feminino nos anos 1970 se deu pela expansão de ramos industriais que tradicionalmente empregam mulheres, coincidindo com uma relativa escassez de mão-de-obra nos centros onde a expansão era mais acelerada como no caso de São Paulo. Ao mesmo tempo observa-se a degradação do salário mínimo e a conseqüente reformulação das estratégias de sobrevivência familiar: mulheres e menores integram-se ao mercado de trabalho industrial.

Podemos apontar alguns fatores que contribuíram também para a expansão do trabalho feminino e sua permanência: em primeiro lugar  a necessidade econômica que se intensificou com a deterioração dos salários dos trabalhadores e que obrigou as mulheres a buscar uma complementação para a renda familiar, sendo que não só as mais pobres entraram no mercado de trabalho, mas também as mais instruídas e das camadas médias. Em segundo lugar  a crescente urbanização, trazendo milhares de pessoas do campo para a cidade e o ritmo acelerado de industrialização favorável à incorporação de novos trabalhadores, incluindo os do sexo feminino. Um terceiro fator refere-se  as mudanças nos padrões de comportamento e nos valores relativos ao papel social da mulher para as quais contribuíram os movimentos feministas e a presença feminina cada vez mais atuante nos espaços públicos, facilitando a oferta de trabalhadoras. Como quarto ponto destacamos  a queda da fecundidade que reduziu o número de filhos por mulher, sobretudo nas cidades, facilitados pelo acesso a métodos como pílula e laqueadura, liberando a mulher para o trabalho fora de casa; e por fim a expansão da escolaridade e  acesso das mulheres às universidades.

Outro elemento  importante para explicar a permanência das mulheres no mercado de trabalho é a divisão sexual do trabalho que manteve a concentração das trabalhadoras em guetos ocupacionais que se expandiram apesar da crise econômica, como é o caso do setor terciário, e dentro dele a prestação de serviços, onde se encontram alguns dos empregos de mais baixo prestigio e remuneração.

Segundo o setor de atividade, as mulheres estão concentradas na prestação de serviços, no setor social, na agricultura, no comércio e na indústria. Outro setor em expansão, marcado pela presença de mulheres foi o emprego público, incluindo atividades de ensino, saúde e previdência.

Essas ocupações tidas como “trabalhos de mulher” são consideradas de menor prestígio, com salários inferiores aos dos homens, refletindo a condição de gênero.  É importante mostrar que a cor/raça, quando associada ao sexo, é a que mais interfere na determinação de desigualdades sociais. Trabalhadores pretos e pardos ganham em média, menos que os homens brancos e mulheres brancas, mas são as trabalhadoras não-brancas as mais discriminadas de todos os grupos em todas as regiões do país. 

A permanência das mulheres em guetos ocupacionais, apesar de uma crescente participação em funções e setores antes pouco acessíveis, é produto da socialização para os chamados papéis femininos que se reproduzem através da família, da escola, dos meios de comunicação e, que buscam orientar as escolhas das ocupações “próprias para as mulheres” e o próprio limite colocado para as mulheres ao tentar conciliar profissão e trabalho doméstico. 

Lobo (1991) também destaca um aspecto relevante quanto à concentração do trabalho feminino no setor terciário: os critérios que determinam a divisão sexual das ocupações, nesse caso, remetem tanto ao nível das representações simbólicas que identificam as mulheres com os serviços sociais (educação, saúde, assistência social) quanto à desqualificação e fragmentação no processo de trabalho (bancárias).

Na indústria, embora a mulher trabalhadora tenha ingressado em ramos dos quais até então estava ausente, como o elétrico e o eletrônico, sua participação ainda é mais intensa na industria do vestuário.(Bruschini, l998).

A ampliação da presença feminina no segmento formal, no entanto, não modificou o quadro da participação das mulheres no segmento informal da economia, tendência que analisamos, citando Harvey, quando ele  aponta que uma  das conseqüências da   redução do emprego regular é o crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado, que  atinge principalmente as mulheres.

Conforme Bruschini (1998), um número muito mais elevado de mulheres que homens, trabalham em casa. Entre as mulheres que trabalham no domicílio encontram-se tanto as empregadas domésticas quanto as trabalhadoras domiciliares autônomas ou subcontratadas para a indústria, as quais, através da costura, da produção de alimentos e de inúmeras outras atividades informais, contribuem para a renda e sustento da família.

Bruschini  verifica que embora as mulheres predominem, tal como os homens, entre os empregados/assalariados e os trabalhadores por conta própria são as trabalhadoras (quase 40%) que ocupam posições precárias no mercado de trabalho, seja como trabalhadoras domésticas (emprego doméstico remunerado), seja como não- remuneradas e como trabalhadoras para o auto-consumo.  A atividade não-remunerada predomina no setor agrícola e, em menor escala, no comércio, sendo que a produção para o auto-consumo na agricultura é realizada majoritariamente pelas mulheres.

Informações sobre local onde as trabalhadoras desempenham suas atividades, mostram como a desigualdade de gênero continua a demarcar o mercado de trabalho brasileiro e a confirmar como o trabalho feminino é mais precário. Bruschini (1998) verifica que, embora mais da metade das mulheres ocupadas, como ocorre com os homens, trabalhem em lojas, oficinas e escritórios, um percentual considerável delas trabalha no próprio domicilio ou no domicílio do patrão, sendo estas cifras bem mais elevadas que a dos trabalhadores na mesma situação.

No primeiro caso, a grande maioria é composta por autônomas (mais de 68%)  que trabalham por conta própria no domicílio, ou porque não conseguem emprego no mercado de trabalho, ou por preferirem a atividade domiciliar como estratégia para conciliar a atividade econômica com as tarefas domésticas.  A autora chama a atenção para os efeitos da flexibilização das relações de trabalho até mesmo no interior de uma atividade prioritariamente informal, quando revela a redução de empregadas e aumento de autônomas entre as trabalhadoras domiciliares.

Quanto a salários e rendimentos, as mulheres continuam ganhando menos que os homens. Em relação ao ganho médio, as mulheres obtêm cerca de 64% dos salários masculinos. 

Essa defasagem geralmente é atribuída ao número de horas trabalhadas, ao tipo de vínculo ou posição ocupada, à qualificação/escolaridade. Esses argumentos são facilmente derrubados, quando se analisam os dados que cruzam rendimentos com essas variáveis[5]. Destacando o exemplo que remete ao número de horas trabalhadas, Bruschini (1998) mostra que na faixa de 40 a 44 horas semanais, que corresponde ao período regular de trabalho no setor formal da economia, 46% das mulheres e 39% dos homens ganham até 2 salários mínimos. Na faixa de 16 a 39 horas, na qual estaria incluído o trabalho em tempo parcial ou meio período, quase metade das mulheres que trabalham durante esse período ganhava até 2 salários mínimos em 1995 e apenas 40% dos homens recebem essa importância. 

As tabelas analisadas indicam que parcela significativa de ambos os sexos que trabalham até 14 horas semanais tende a fazê-lo sem remuneração. Entretanto, o contingente de mulheres que trabalha esse número de horas é três vezes maior que o dos homens (3,4 milhões de mulheres e 1,0 milhão de homens) e 2/3 delas trabalham sem remuneração (Bruschini, 1998).

Quanto ao argumento de que as mulheres não estão devidamente preparadas para o desempenho de funções de maior qualificação, os dados analisados por Bruschini (1998)  mostram que homens e mulheres com igual escolaridade obtêm rendimentos diferentes. Enquanto metade dos trabalhadores com 11 a 14 anos de estudo ganham mais de 5 salários, apenas 23,5% das trabalhadoras, nas mesmas condições, ganham o mesmo. A disparidade aumenta entre as pessoas de maior escolaridade; se 2/3 dos homens com 15 anos e mais de estudo ganham mais de 10 salários mínimos, apenas 1/3 das mulheres com o mesmo nível de escolaridade têm rendimentos equivalentes.

Embora tenhamos dado mais destaque aos aspectos que mostram as condições  de precariedade  da atividade laboral feminina é importante destacar que houve um crescimento da presença das mulheres em atividades de maior prestigio e rendimentos como a arquitetura, a medicina, o direito como mostram pesquisas recentes de Bruschini (2000 ). Interessa-nos aqui, no entanto, explicitar as condições em que está a maioria da população feminina no mercado de trabalho.

Considerações finais

Através das pesquisas de Bruschini (1998), constatamos que mesmo com a ampliação da presença feminina no segmento formal e em setores tradicionalmente ocupado por homens, a participação das mulheres no segmento informal da economia é acentuada. Um número muito mais elevado de mulheres que homens trabalham em casa. Entre as mulheres que trabalham no domicílio encontram-se tanto as empregadas domésticas quanto as trabalhadoras domiciliares autônomas ou subcontratadas para a indústria, as quais, através da costura, da produção de alimentos e de inúmeras outras atividades informais, contribuem para a renda e o sustento da família.

O novo modelo de flexibilização, para as mulheres, passa pela utilização intensiva de formas de emprego precárias, como contratos de curta duração, empregos por tempo parcial e/ou trabalho em domicilio.  Uma das formas como se manifesta esse fenômeno, como vimos a partir de Abramo (1997) é a concentração da presença feminina nas chamadas empresas “mão” dos novos encadeamentos produtivos (ou seja, aquelas onde predomina o trabalho instável, pouco qualificado e mal pago), em oposição às empresas “cabeça”, onde se concentraria o trabalho mais bem qualificado, mais estável e mais bem remunerado.


NOTAS

[1] Citação retirada de Marx em “O Capital”, Livro 1, Volume 1, p: 451, Editora Civilização Brasileira,  s/d.

[2] Citado por Abreu e Sorj in El Trabajo de Las Mujeres en el Tiempo Glogal p.81-82.

[3] Afirma Hirata (1997) “tarefas que exigem iniciativa, responsabilidade, conhecimento técnico, foram abertas às mulheres com a introdução da informática nos serviços ou mesmo no setor industrial: analistas de sistemas,  programadoras,  técnicas, etc. Mas tais postos são em número limitado,  e preenchidas majoritariamente, por trabalhadores do sexo masculino. Eles não são propícios ao exercício da criatividade e autonomia, consideradas essenciais na realização de novos modelos produtivos”.

[4] Terminologia usada por Castillo J.J.& Santos M. e exemplificada a partir de uma pesquisa realizada por estes autores no complexo produtivo localizado em Arganda (norte de Madri), Espanha, usada como referencia por Abramo em sua análise sobre o trabalho feminino. Para maiores detalhes sobre a pesquisa de Castillo e Santos ver “La Cualificacion Del Trabajo Y Los Distritos Industriales in: Revista de Economia Y Sociologia Del Trabajo, num. 21-22- Espanha.1993.

[5] Maiores detalhes in Bruschini op.cit. Fonte de consulta FIBGE,PNAD, 1995 tabelas 4.27-4.22-4.10


ABSTRACT

The productive rebuilding and the changes that it causes on the market and organization of the work inside the actual economic globalization environment, have ben fill analyzed from the point of view of gender differences. However, the productive rebuilding impacts over the work conditions and health depend on the gender and the nature of labor.
The new flexible model, for the women, pass through the intensive utilization of precarious jobs, like temporary job, partial time job and/or domicile work. One of the ways of manifestation of this phenomenon, is the concentration of women in companies called "hand" of the news productive chaining (that is, those where the unstable , low specialized and bad remunerated job, is predominant), in the other hand of the companies called "head", where there is a concentration of high specialized, more stable and best remunerated jobs.

Key-words: Sexual Harassment. Gender. Sexuality. Female Work.


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