POLÍTICA SOCIAL: direito de cidadania?
Ednéia Maria Machado*
*Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social da UEL, Doutora em Serviço Social pela PUC-SP.

 

A política social, como uma política estatal, vem ganhando relevância nas formações econômico-sociais capitalistas. Esta relevância, que se mostra no amplo debate que envolve os mais diferentes segmentos – sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos, organizações não-governamentais, pesquisadores, tecnocratas, empresários, governo, etc. –, tem sua justificativa em dois conjuntos de questões:

a) econômicas: a crise fiscal-financeira que tem exigido a reforma do Estado e levado a uma reavaliação de todas as suas políticas.
Do lado da estrutura organizativa estatal, a política social tem sofrido significativos cortes orçamentários e programáticos;

b) políticas: a tensão existente entre as necessidades econômicas do capital e as necessidades sociais da população, colocando em discussão a função do Estado no atendimento à questão social:

“Para colocar nos termos de Castel (1995), a questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação” (Teles, 1996 : p. 85). O que se busca, em última análise, é compatibilizar as necessidades do capital – de valorização, acumulação e concentração – e as necessidades da população – de atendimento às suas necessidades básicas, sociais e pessoais.

A questão de fundo é se a ordem capitalista consegue realizar esta compatibilização. E, aí, encontramos duas respostas polares: sim e não. Mas encontramos, também, no âmbito destas duas respostas, diferentes análises e alternativas. O que está se construindo são paradigmas de análise da política social que possibilitem dar sustentação teórico-metodológica à sua existência, avaliar suas possibilidades e limites, criar e recriar respostas à questão social. Dentre os paradigmas em discussão, vem ganhando significativo espaço o paradigma da cidadania. O que significa ser cidadão?

1. O cidadão no pensamento clássico: o homem renuncia a seu poder “Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações” (Thomas Hobbes)

Os teóricos clássicos (séc. XVII e XVIII), ao fundamentarem-se em uma análise da natureza humana, do comportamento dos indivíduos e das relações que os indivíduos estabeleciam entre si, concluíram que os homens são movidos a paixões, numa busca insaciável de vantagens materiais que os colocariam uns contra os outros, resultando no controle dessas paixões. O poder não reside no homem, ou, pelo menos, não se origina no homem, ele vem de Deus, da vontade divina, que é a base de todos os direitos. Mas o homem é o depositário de todo o poder político.

Com base nessas concepções, os filósofos da doutrina clássica, desenvolveram diversas concepções sobre o homem e a necessidade de um Estado para controla-los e atender o bem-comum. Assim é que para Thomas Hobbes, o homem vive em conflito entre o seu estado de natureza – entendido enquanto a liberdade individual e o poder de tomar suas próprias decisões, obedecendo unicamente seus juízos e razão; e a conseqüências imediata de tal comportamento: a violência, a guerra e a morte. Ele desenvolve cinco explicações racionais para o comportamento do homem:

Primeiro, que os homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade [...] Segundo, ... o homem só encontra felicidade na comparação com outros homens, e só pode tirar prazer do que é eminente. [...] Terceiro, ... entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que os outros para o exercício do poder público. E esses esforçam-se por empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e outros doutra, acabando assim por levar o país à desordem e à guerra civil. Quarto, ... arte das palavras mediante a qual alguns homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando o descontentamento entre os homens e perturbando a seu belo prazer a paz em que os outros vivem. Quinto, ... o homem é tanto mais implicativo quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado (1983).

Mas o homem não está satisfeito consigo e com a permanente tensão em que vive, querendo sair desta situação. E Hobbes aponta a solução: renunciar ao poder individual em favor de um soberano, pois é melhor viver em sujeição do que morrer na guerra.

Hobbes é acompanhado por Locke em alguns aspectos do seu pensamento. Locke entende que a condição política original do homem é o “estado de natureza”, onde o homem vive em perfeita liberdade, é dono de si e autor de seus direitos. Todos os homens são iguais no “estado de natureza”, mas ele pode degenerar em guerra se um homem tentar submeter outro homem a seu poder. A solução apresentada por Locke é diferente da de Hobbes, ainda que também pressuponha que os homens devem entregar seu poder a outrem, que pode ser representado por um único homem ou por vários homens, mas que devem agir pela vontade da maioria e com o consentimento dos homens:

“Sendo todos os homens, como dissemos, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de suas terras e submetido ao poder político de um outro sem dar consentimento ... Quando qualquer número de homens, pelo consentimento de cada indivíduo, constituíram uma comunidade, fizeram dessa comunidade, por isso mesmo, um só corpo, com o poder de agir como um só corpo, isto é, somente pela vontade e determinação da maioria” (in Chauí, 1985 p. 254-256).

O fato de os homens transferirem para outros o seu poder, não significa perder a liberdade que possuía no estado de natureza mas “Esta seria ainda uma liberdade tão grande quanto a que possuía antes do pacto, ou que qualquer outro possui no estado de natureza onde pode submeter-se e consentir a quaisquer atos que julgar convenientes” (in Chauí, 1985, p. 254-256). Locke prevê a necessidade de um corpo de leis, regulador das relações entre os homens e do poder dos homens. Em Locke aparece a preocupação com a preservação da propriedade, de onde ele entende que “... os indivíduos que têm direitos políticos são todos proprietários, um grupo relativamente homogêneo”. Para ele, a desigualdade entre os homens reside no estado de natureza, e a sociedade civil é o contraponto necessário contra a desigualdade e, “a posse da propriedade é a base de uma sociedade civil justa e eqüitativa”. Assim é que, para Locke, as mulheres e os trabalhadores assalariados não detêm poder político.

Se para Locke é a propriedade que garante uma sociedade justa, para Rousseau ela é a causa de toda a desigualdade, de toda a corrupção. Rousseau considera que o Estado foi criado pelo rico para se manter enquanto classe dominante, e os homens, vítimas de sua ignorância, entregaram ao Estado a sua liberdade e aceitaram a sociedade civil. Rousseau elabora o Contrato Social, que, para ele, é a solução para o problema fundamental de

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” (in Chauí, 256/258).

Defendendo que o poder reside no povo, “que renunciou à sua liberdade em favor do Estado e este, por sua vez, é a vontade geral”, entende que “o poder do Estado reside na cidadania e somente na cidadania, porém nem todos os cidadãos são iguais”. Como alternativa à desigualdade, e como uma possibilidade de igualdade entre os homens, Rousseau afirma:

“Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conserva o que se tem”, e continua, “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo”.

Mesmo tendo considerado que a propriedade era a origem da desigualdade, Rousseau a defende e a considera como “o mais sagrado de todos os direitos dos cidadão, e mais importante, em certos aspectos, que a própria liberdade”. Na doutrina clássica, portanto, o homem apresenta-se em um estado de plena liberdade e plenos poderes sobre si, seus desejos, suas paixões. Mas, por outro lado, o homem não tem condições de, por si só, fazer bom uso desse “estado de natureza”, devendo, assim, renunciar a ele, transferir para outrem os seus poderes, se submeter ao Estado, como forma de preservar a sua vida, a propriedade e o bem-comum. E os filósofos oferecem diferentes formas de controlar o poder do homem, visto que ele só pode ser usado para a guerra e para a sujeição de outros homens, se não for submetido a um controle superior.

Essas formas correspondem a uma resposta de como organizar a sociedade, que tipo de Estado melhor corresponderia às necessidades humanas. Se para Hobbes e Locke o poder dos homens deve ser transferido a um soberano ou a um grupo de indivíduos, para Rousseau o poder permanece nos cidadãos, ainda que nem todos sejam cidadãos, e o Estado nada mais faz do que exprimir a vontade geral. Outra preocupação significativa desses filósofos é a preservação e a defesa da propriedade, que também representa a base da doutrina liberal. É tendo por base esses pensadores que se desenvolve a Teoria do Estado Liberal.

2. O cidadão na teoria liberal: a cidadania pela propriedade “A cidadania conceptualizada pela teoria liberal é impensável sem a propriedade” (Netto, 1986). Os teóricos citados no item anterior fazem parte da tradição liberal, numa perspectiva clássica; ressalvando-se Rousseau, que não faz parte da tradição liberal. A teoria liberal apresenta outros desenvolvimentos, mas baseando-se, fundamentalmente, nos direitos individuais, na ação do Estado, na defesa e preservação da propriedade privada e do livre mercado. Portanto, não é possível entender a teoria liberal como uma teoria linear. Macpherson (1978), ao analisar a teoria liberal constrói e utiliza modelos que mostram o desenvolvimento dessa teoria, e de como ela vai se conformando social e historicamente. Entretanto, a concepção de cidadão, ainda que nuançada por conjunturas sócio-históricas específicas é, sempre, parametrada pela ordem burguesa, pelo modo de produção capitalista. É a teoria liberal que funda a idéia do cidadão. E o cidadão é o indivíduo com direitos políticos legitimados, e que são legitimados pela propriedade. Em outras palavras, é a propriedade que garante o status de cidadão.

Macpherson, (1978), desenvolve quatro modelos de análise da teoria liberal:

Modelo 1 - A Democracia Protetora, cujos teóricos representativos são Bentham e James Mill;

Modelo 2 - Democracia Desenvolvimentista, a partir das idéias de John Stuart Mill;

Modelo 3 - Democracia de Equilíbrio, baseada nas idéias de Joseph Schumpter; e,

Modelo 4 - Democracia Participativa, que se desenvolve a partir da década de 60.

Destacamos, a seguir, as idéias desses teóricos que desenvolveram a teoria liberal, incluindo, entre eles, Adam Smith que, segundo Carnoy (1986), representa um dos pensamentos de base da teoria liberal. Adam Smith: ele mantém a idéia de que o homem é marcado pelo individualismo, e sua justificativa para esse comportamento reside numa fundamentação econômica. Por fundamento econômico, ele entende que o homem é movido pela busca do ganho material. Atingindo o objetivo econômico, o homem atingiria a fama, sendo esta seu objetivo último: “... não mais tornar-se independente, mas tornar-se um simples instrumento do desejo de consideração”. Para ele, a realização do bem-estar social coletivo é conseqüência da ação individual dos homens em busca do seu próprio bem-estar. E a possibilidade de atingir-se o bem-estar social está no funcionamento livre e ilimitado do mercado. Nesse sentido, as relações sociais estabelecidas entre os homens, independe de um Estado, ou de uma “vontade geral”, como afirmava Rousseau. Ainda que fosse necessária um comunidade, como forma de manter os homens coesos, o Estado não é fundamental e não deve intervir nas relações econômicas. Segundo Carnoy (1986),

A honestidade, o senso de dever, o amor pela nação, e a solidariedade pelos concidadãos, que são essenciais para a reprodução social, são, portanto, parte inerente da maioria dos indivíduos numa sociedade competitiva e de livre empresa. Nessa sociedade, baseada nos ‘direitos naturais’ dos indivíduos, é o indivíduo que é o portador da melhoria não intencional da condição social, bem como da coesão social deliberada. Os indivíduos, para Smith, são inerentemente seres sociais.

Jeremy Bentham e James Mill: eles procuram enfrentar o problema dos conflitos existentes numa sociedade de classes.

Nesse sentido, eles consideram que só o Estado burguês é que tem condições de garantir a igualdade e a segurança da propriedade ilimitada e da empresa capitalista. O Estado tem, na defesa da propriedade e da empresa a sua mais importante função. Mas o Estado pode ser corrupto, os governos podem agir em seus próprios interesses, assim é que as eleições e uma imprensa livre são importantes para propiciar o controle do governo pelos eleitores. O poder, portanto, reside, no limite, nos eleitores, mas nem todos os cidadãos eram eleitores e nem deveriam ser. Sugere, então, que sejam formados grupos de eleitores.

John Stuart Mill: Mill considera a desigualdade como acidental, sendo passível de correção. O processo democrático é que possibilita a construção de uma sociedade justa e eqüitativa. Ele entendia, também, que a desigualdade fundava-se na propriedade, porém, que era o tipo de distribuição feudal da propriedade que havia gerado a desigualdade, e que o capitalismo estava reduzindo essas desigualdades, seja no que concerne à propriedade, renda ou poder. É de se ressaltar que Mill reconhecia a impossibilidade de a classe trabalhadora desenvolver-se frente à forma como estava distribuída a riqueza e o poder econômico:

que o produto do trabalho seja distribuído como agora o vemos, quase na razão inversa do trabalho – dando-se as maiores porções a quem jamais trabalhou de modo algum, em seguida àqueles cujo trabalho é quase nominal, e assim por diante em escala decrescente, minguando a remuneração à medida que o trabalho fica mais duro e mais desagradável, até que o mais cansativo e exaustivo trabalho corporal não possa ter como certo que o trabalhador ganhe inclusive o indispensável para a vida”. (in Machperson, 1986, p. 57)

Esse pensamento de Mill nos remete a Locke, onde o trabalho é que fundava a propriedade, e a propriedade é que fundava a cidadania.

Coerente com essa perspectiva, Mill afirmava que o direito de voto, e o peso eleitoral de cada indivíduo na sociedade, deveria basear-se na contribuição que cada indivíduo dava à sociedade. O poder, portanto, fica nas mãos de uns poucos e, por isso ele defende que o ideal seria que o poder político atingisse uma ampla parcela da população. E sugeria, também, formas de organização social que possibilitasse o acesso dos trabalhadores ao status de capitalista.

Fazendo uma correlação entre a doutrina clássica e a doutrina liberal, percebe-se que a doutrina clássica afirmava o poder do homem, ainda que defendesse que esse poder deveria ser transferido para outrem, ou para o Estado. Na doutrina liberal, reconhece-se o direito de alguns homens terem poder, com fundamento na posse da propriedade. Começa-se, então, a estabelecer critérios para o exercício da cidadania, a questionar-se se todos os indivíduos devem ter poder, e, fundamentalmente, a questionar-se se, caso todos os homens tivessem poder, não se colocaria em risco o fundamento do Estado burguês, que é a propriedade. Trata-se, então, de através do poder, retirar dos homens o poder que lhes era inerente, não para transferi-lo para o Estado, mas para concentrá-lo nas mãos dos proprietários.

Joseph Schumpter sintetiza essa nova posição:

sustenta que a democracia direta não é possível porque nem todos na sociedade estão no mesmo estágio de desenvolvimento cultural. Existem os líderes e os seguidores, os que não estão interessados e os que são mal informados ... os objetivos da sociedade devem ser formulados pelos líderes – por uma elite que seja politicamente atuante, que possa devotar-se ao estudo dos problemas sociais relevantes e seja capaz de compreendê-los” (in Carnoy, 1986, p. 50)

Mas, se por um lado, dentro da tradição liberal, busca-se limitar e cercear o poder dos indivíduos e circunscrever e delimitar o alcance da cidadania, por outro lado, numa postura antagônica a essa, o objetivo é ampliar os direitos de cidadania, que é o pensamento que se situa dentro da tradição marxista, ainda que não seja um debate exclusivo desta tradição.

3. O cidadão no pensamento marxista: a transformação social passa pela cidadania?

“... a democracia, introduzida o mais completa e consistentemente que se possa imaginar, converte-se de democracia burguesa em democracia proletária”. (Lenin, apud Carnoy, 1986, p. 83) Marx realiza uma profunda reflexão sobre a sociedade burguesa. E, nessa reflexão, fica claro que o sistema de produção capitalista têm, inerente à sua estrutura, a desigualdade social. Ao dividir a sociedade em proprietários dos meios de produção e proprietários da força de trabalho, a burguesia divide a sociedade em classes sociais, sendo que duas classes são fundamentais: a burguesia e o proletariado. E a sociedade é produto das ações recíprocas dos homens, que envolve a sua produção e a reprodução. Essa produção/reprodução é material e espiritual. Mas, as ações dos homens não são homogêneas, elas são complexas, contraditórias e perspassadas por diversas conotações: religiosas, políticas, econômicas, morais, etc. Assim, é que a relação entre o homem e a sociedade é uma relação dialética, onde o homem se coloca como sujeito de sua história. E, nesse sentido, o homem, não enquanto ser individual, mas como ser coletivo, como classe social, tem poder de transformar a estrutura social. Marx utiliza o termo cidadão. Mas, na sua análise, ele mostra que o que é próprio da sociedade burguesa, específico da sociedade burguesa, é a distinção clara, nítida, entre esfera pública e esfera privada, entre o público e o privado. E é desse elemento constitutivo da vida sócio-política na sociedade burguesa, que é da cisão entre o Estado e a sociedade, que emerge a distinção entre o indivíduo e o cidadão. Em Marx fica muito clara a idéia de que a noção e a realidade da cidadania só tem sentido em uma sociedade onde o público está dissociado do privado. Como a perspectiva da cidadania vincula-se, estreitamente, à questão da democracia, ressalte-se que Marx e Engels apresentavam a democracia como contraditória em si mesma: se, por um lado, a classe dominante cria mecanismos que visam oferecer à população uma ilusão de participação, por exemplo, as eleições; por outro, ela viabiliza a organização da população para ampliar as formas democráticas, adentrando na luta por direitos de uma participação política efetiva.

Nesse sentido é que o debate sobre cidadania e democracia ocupa um importante espaço dentro da tradição marxista. Se houve um momento em que os pensadores marxistas consideravam que toda e qualquer conquista da Revolução Burguesa deveria ser eliminada numa nova sociedade; a conjuntura sócio-histórica demonstrou que a tese deve ser outra, ou seja, se as conquistas da Revolução Burguesa, não todas, mas algumas, devem ser preservadas. Essa linha de raciocínio não se baseia na idéia de que a sociedade burguesa é democrática, mas que, justamente por ela envolver a dominação numa capa democrática, abre espaços para que a luta pela democracia se efetive. Assim é que Norberto Bobbio, segundo Carnoy (1986, p. 203), entende

que as condições objetivas do desenvolvimento capitalista moderno são cada vez menos democráticas. Por conseguinte, a democracia está cada vez mais colocada contra a dinâmica do desenvolvimento capitalista e, portanto, representa um elemento essencial na contra-transformação da sociedade capitalista.

A luta pela democracia, pela conquista de direitos de cidadania, apresenta-se, dessa forma, como um instrumento das classes dominadas contra o sistema de opressão a que estão submetidas. Segundo José Paulo Netto (1980, p. 65-66),

a estratégia democrática não se viabiliza (nem viabiliza um) em qualquer processo de ruptura – ela também é função do nível de complexidade social dado nas particularidades históricas. Ou seja, a teoria setorial da transição socialista deve conceptualizar o fenômeno histórico de que formas histórico-sociais heteróclitas podem suceder à ruptura com o sistema capitalista. E deverá concretizar que, também, nessas formas heteróclitas o problema da transição socialista estará condicionado à implementação de uma estratégia democrática – que, então, colocará problemas concretos sensivelmente diversos.

Portanto, a questão da democracia, da cidadania, e sua vinculação com a transição socialista, é um debate em aberto. Mas é um fato inquestionável a luta pelos direitos de cidadania. Essa luta passa pelos mais diferentes segmentos sociais, têm ressonância nos partidos políticos, nos meios intelectuais, etc. Portanto, coloca-se como problema que merece a atenção dos pensadores marxistas. Sendo a cidadania fundada pela teoria liberal, tendo por fundamento primeiro a propriedade privada, o problema que se põe refere-se aos limites e possibilidades da própria cidadania no interior do sistema capitalista e na superação deste. As reflexões, sobre esse problema, colocam que a luta pela cidadania é uma luta pela conquista e/ou ampliação da democracia. E, nesse sentido, desmistifica-se a democracia burguesa enquanto tal, expõe os seus limites, na medida em que não se trata de discutir os direitos dos proprietários, mas de discutir os direitos dos não proprietários. Assim, busca-se transcender o fundamento da propriedade, presente na concepção liberal de cidadão, pelo fundamento do trabalho.

4. Cidadania: paradigma de análise da Política Social A questão da cidadania põe, em destaque, a discussão fundamental da relação dos indivíduos com a sociedade, do Estado com a sociedade. Essa relação se circunscreve no âmbito da sociedade burguesa, que coloca em marcha processos de transformações econômicas, políticas, sociais, culturais, cria uma nova sociabilidade, pautada no modo de produção capitalista, cujo fundamento é a propriedade privada. A burguesia, alçada à condição de classe dominante, estabelece regras que delimitam e circunscrevem as relações Estado-Sociedade, de tal forma a manter o seu poder de classe. Poder, esse, que é exercido sobre as demais classes sociais que compõem o Estado Nacional, através da manutenção das desigualdades sociais, políticas, econômicas, culturais. Para se consolidar, se manter e se legitimar enquanto classe dominante, a burguesia faz uso de diversos mecanismos, o Estado assume diversas características, mas, nesse processo, integra algumas reivindicações das classes subalternas, negocia, estabelece pactos, desde que não se coloque em questão a ordem burguesa estabelecida. Se, por um lado, o Estado burguês homogeneiza os indivíduos num cultura geral, que se traduz na língua nacional, nas relações de parentesco, nos símbolos nacionais, nos costumes, nos limites territoriais, etc.; por outro, ele se funda na desigualdade.

A desigualdade é contextualizada pela propriedade privada dos meios de produção, pela apropriação desigual do produto nacional. A revolução burguesa cria a sua própria dominação e o seu antagonismo, representado pelos dominados. Essa característica contraditória da sociedade burguesa é que faz com que convivam, num mesmo espaço e ao mesmo tempo, os instrumentos de dominação e os instrumentos de superação da dominação. Portanto, as relações estabelecidas entre Estado e Sociedade são contraditórias, ambíguas, tornando o espaço nacional um espaço de lutas entre classes sociais antagônicas.

À desigualdade corresponde o seu oposto – a igualdade, o que coloca o estatuto da cidadania como a igualdade possível. A transformação do indivíduo em cidadão, ainda que represente uma conquista fundamental da Revolução Burguesa, busca transcender a desigualdade de classe social pela igualdade da cidadania. Isso significa que, para se entender a concepção de cidadania, não se pode desvinculá-la da ordem burguesa estabelecida, e nem dos fundamentos da teoria liberal, onde o pressuposto da cidadania é a propriedade privada. E nem se pode supor que a cidadania preconizada pela teoria liberal tenha, no limite, o objetivo de acabar com as desigualdades. Macpherson, (1978, p. 112), analisando a ampliação da cidadania no Estado de Bem-Estar Social, afirma:

mais redistribuição do estado de bem-estar da renda nacional não é bastante: seja quanto for que ele diminua as desigualdades de classes quanto à renda, não atingirá as desigualdades do poder de classes.

Portanto, ainda que os direitos de cidadania se desenvolvam na sociedade burguesa, eles têm seus limites estabelecidos pela manutenção do poder nas mãos da burguesia. E, para acompanhar o desenvolvimento dos direitos de cidadania na sociedade burguesa, é importante recorrer a Marshall, que representa o fundamento teórico-metodológico da cidadania como paradigma de análise da política social.

Marshall divide a cidadania em três elementos:

Elemento civil: composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade, e de concluir contratos válidos e o direito à justiça: é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminhamento processual. Elemento político: o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. Elemento social: se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (1967, p. 63-64).

Calcado numa análise histórica, Marshall vai demonstrando o desenvolvimento desses direitos, e como a cidadania se configura enquanto um processo cumulativo de conquistas de direitos, em dois sentidos: primeiro, enquanto aquisição de novos direitos; e, segundo, enquanto ampliação dos direitos para camadas da população que encontravam-se excluídas desses direitos. Assim é que é a sociedade burguesa que, no seu processo histórico, desenvolve e efetiva os direitos de cidadania, e, essa perspectiva evolutiva fica clara no quadro traçado por Marshall:

.. os direitos civis surgiram em primeiro lugar e se estabeleceram de modo um tanto semelhante à forma moderna que assumiram antes da entrada em vigor da primeira Lei de Reforma, em 1832. Os direitos políticos se seguiram aos civis, e a ampliação deles foi uma das principais características do século XIX, embora o princípio da cidadania política universal não tenha sido reconhecido senão em 1918. Os direitos sociais, por outro lado, quase que desapareceram no século XVIII e princípio do XIX. O ressurgimento destes começou com o desenvolvimento da educação primária pública, mas não foi senão no século XX que eles atingiram um plano de igualdade com os dois outros elementos da cidadania. (1967, p. 75). E é aí que ele entende que a sociedade burguesa é o palco, por excelência, dos direitos de cidadania, que supera a desigualdade total inerente ao sistema de classe social: ... a igualdade implícita no conceito de cidadania, embora limitada em conteúdo, minou a desigualdade do sistema de classe que era, em princípio, uma desigualdade total. Uma justiça nacional e uma lei igual para todos devem inevitavelmente enfraquecer e, eventualmente, destruir a justiça de classe, e a liberdade pessoal como um direito universal deve eliminar a servidão (1967, p. 77).

Subjacente a esse raciocínio está a idéia de que é possível reduzir as injustiças sociais pela redistribuição, ainda que parcial, do produto social. Fica claro, também, que ele não se propõe a ilusão de que a cidadania vá acabar com a desigualdade, mas que ela coloca a possibilidade, que é concreta, de atenuar a desigualdade. A crítica que ele faz ao sistema de classe, é que ele propõe uma desigualdade total e insuperável na sociedade burguesa, enquanto que, para Marshall, a cidadania representa a possibilidade de uma superação dessa desigualdade. Outro pensamento significativo em Marshall, é o que se refere à cidadania social. É à cidadania social que ele credita a possibilidade de uma ordem social mais justa, e não à cidadania política. Entra em questão, então, o Estado de Bem-Estar Social, onde as conquistas sociais tendem a obscurecer a cidadania política, o que Marshall não questiona.

E é a questão da cidadania política, que é, no limite, a cidadania propriamente dita, na medida em que os cidadão têm poder de interferir decisivamente nas questões nacionais, que Marshall não coloca. Mesmo porque ele entende que a desigualdade tem alguns aspectos que são legítimos e, por isso, ele afirma:

Nosso objetivo não é uma igualdade absoluta. Há limitações inerentes ao movimento em favor da igualdade, que opera em parte através da cidadania e, em parte, através do sistema econômico. Em ambos os casos, o objetivo consiste em remover desigualdade que não podem ser consideradas como legítimas, mas o padrão de legitimidade é diferente. No primeiro, é o padrão da justiça social; no último, é a justiça social combinada com a necessidade econômica (1976, p. 109).

Com fundamento nestas idéias, é que se propõe que, no âmbito das políticas sociais, deve-se incorporar a cidadania, entendendo o processo de desenvolvimento das políticas sociais numa perspectiva que as conceba como processo de evolução da cidadania (Vasconcelos, 1988, p. 22).

Dado o reconhecimento, pelo seus próprios teóricos, de que a cidadania apresenta problemas teóricos e conceituais na sua definição, a proposta fundamental é de que a cidadania se constitua em um princípio universalizante de implementação, execução e avaliação das políticas sociais. Nas palavras de Parker, (1979, p. 145 apud Coimbra, 1987, p. 85):

defender uma distribuição de serviços e recursos baseada nos princípios da cidadania é afirmar que as condições individuais de vida devem ser protegida por decisões políticas que garantam níveis aceitáveis de cuidados médicos e sociais, de educação, de renda e assim por diante, independentemente do poder de barganha de cada indivíduo. Todos teriam de ter os mesmos direitos de compartilhar de tudo aquilo que fosse fornecido, nos mesmos termos que qualquer outra pessoa. Necessidades iguais teriam de receber tratamento igual, sem nenhuma discriminação a favor ou contra quaisquer grupos sociais, econômicos, políticos e raciais. A idéia de cidadania implica que nenhum estigma seja associado ao uso dos serviços sociais, quer seja por atitudes populares de condenação da dependência, quer originados de práticas administrativas ou padrões inferiores de previsão de serviços. A qualidade dos serviços públicos teria de ser a melhor possível, levando-se em conta a escassez dos recursos públicos.

Portanto, o princípio organizador da política social deve ser a cidadania. A avaliação da eficiência e eficácia da política social deve passar pelo confronto com o princípio da cidadania, assim como a implementação de novas políticas. Para Vasconcelos, (1989, p. 89), “.. a luta pelos recursos oriundos do denominado salário social passa exatamente pela forma de estruturação da cidadania.

[...] Isso significa que a luta própria a este campo não se restringe apenas à esfera da luta política e ideológica, de forma direta, mas também à esfera econômica, na medida em que se refere ao nível de distribuição da sociedade”.

O estudo, análise e definição da política social a partir do paradigma da cidadania implica em vincular a cidadania aos direitos sociais. E implica, também, em vincular a cidadania à democracia. A importância do paradigma da cidadania reside no fato de, ao não privilegiar o conflito capital-trabalho, numa sociedade onde grandes contingentes de indivíduos encontram-se fora do mercado formal de trabalho, afirmar-se que os direitos sociais que, historicamente, foram construidos para proteção ao trabalho, sejam reconhecidos como direitos de toda a população. As categorias fundamentais para tal paradigma são: igualdade, democracia, direitos sociais, necessidades sociais. A partir destas categorias pode-se delimitar a cidadania e as possibilidades e limites de acesso a ela. E, a partir daí, estabelecer as possibilidades e limites da política social, e das políticas sociais específicas. O que se tem a nosso ver, é um descolamento das necessidades sociais das demais necessidades – civis e políticas; estabelecendo-se uma relativa autonomia do social sobre as demais esferas da vida social -– o que implica em tornar a cidadania um valor ético-moral superior. Essa relativa autonomia é dada pela possibilidade de se atender as necessidades sociais – ou de cidadania - sem romper com a estrutura econômico – social.

Como já mostramos, a desigualdade é o fundamento das sociedades burguesas capitalistas contemporâneas. A raiz da desigualdade funda-se na propriedade privada, e a propriedade privada é o que define e circunscreve a política social. Portanto, para estabelecer como paradigma da política social a cidadania, seria necessário, em primeiro lugar, um conceito de cidadania que transcendesse os limites burgueses a ela colocados – uma concepção de cidadania que não tivesse por fundamento a propriedade privada. Mas isto, por si só, já significaria uma ruptura com o próprio conceito de cidadania. Significaria, também, conceitualizar uma cidadania abrangente, onde direitos civis e políticos estabelecessem um movimento dialético com os direitos sociais. Entendemos que a segmentação entre direitos civis, sociais e políticos, é uma segmentação que responde, de imediato, às necessidades do capitalismo. Abre possibilidades para debates e campanhas que chamem a atenção para a solidariedade e para valores subjetivos calcados numa natureza humana independente da forma como os homens produzem a sua vida material. Abre possibilidades para que o debate sobre a política social permaneça no âmbito das necessidades individuais e coletivas, e não no âmbito da construção da sociedade. Na verdade, esta é uma característica fundamental da política social na perspectiva capitalista: ela responde a situações individuais, pessoais, de grupos e segmentos específicos, e não a necessidades nacionais ou de classes sociais.

O paradigma da cidadania só reforça a perspectiva da classe burguesa: a abertura de oportunidades aos desiguais, via política social, não significa outra coisa senão a institucionalização da desigualdade ao invés de sua extinção. (Potyara, 1986, p. 80).


BIBLIOGRAFIA

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