Os Conselhos de Direitos: do Ideal à sua Efetividade
Valdir Anhucci
Vera Lucia Tieko Suguihiro

 

RESUMO:

É com a Constituição Federal de 1988 que a sociedade brasileira passa a ter um instrumento capaz de contribuir com a consolidação do processo democrático e defesa de direitos. Trata-se dos Conselhos de Direitos, espaço público e plural, onde a partir do respeito à diversidade de idéias pode-se construir propostas efetivamente coletivas. Nesta perspectiva, em termos de democratização das decisões políticas, pode-se considerar que o Brasil avançou no que se refere ao aspecto formal. Por outro lado, a sociedade está muito distante de um real processo democrático, na medida em que espaços públicos como os conselhos continuam sendo desrespeitados e utilizados como forma que afirmar que a população tem participado de decisões tomadas no âmbito das políticas públicas.

PALAVRAS CHAVE: Conselhos de direitos, política social. 

ABSTRACT:

It is with the 1988 Federal Constitution that the Brazilian society has a capable instrument to contribute with the democratic process and rights defense. It is the Rights Counsel, plural and public space, where from the diversity of ideas, we may build collective propositions effectively. In this perspective, in terms of the political decisions democratization, we may consider that Brazil has advanced as to formal aspect. On the other hand, the society is far away of a real democratic process, the way the public spaces and counsels are still disrespected and used as a way to assert that the population has participated in the public policies decisions scope.

KEY WORDS: Rights Counsel; Social Work.


A distância entre a proposta e a efetivação dos Conselhos de Direitos

A partir de um processo de mudanças na estrutura da organização social brasileira, os Conselhos de Direitos passam a ser vistos como estruturas de uma nova organização política da sociedade, conquistada a partir da

[...] luta que se travou na Constituinte em torno da definição de novos procedimentos e regras políticas que regulassem as relações do Estado com a sociedade, visando criar uma nova institucionalidade democrática. Instrumentos de democracia direta como plebiscito, referendo e projetos de iniciativa popular, foram instituídos como mecanismos de ampliação da participação da sociedade nas decisões políticas. Nessa mesma perspectiva a Constituição Federal de 1988 estabeleceu os conselhos de gestão setorial das políticas sociais, que constituem uma das principais inovações democráticas neste campo (DEGENNSZAJH, 2000, p.62).

Nesse sentido, criam-se mecanismos e instrumentos nos quais o Estado e a sociedade civil, através da representação dos conselhos, tratam das políticas públicas. Segundo Raichelis (2006, p.110), são “[...] arranjos institucionais inéditos, uma conquista da sociedade civil para imprimir níveis crescentes de democratização às políticas públicas e ao Estado que, em nosso país, têm forte trajetória de centralização e concentração de poder”. Conforme essa análise, pode-se afirmar que os conselhos

[...] são considerados condutos formais de participação social, institucionalmente reconhecidos, com competências definidas em estatuto legal, com o objetivo de realizar o controle social de políticas públicas setoriais ou de defesa de direitos de segmentos específicos. Sua função é garantir, portanto, os princípios da participação da sociedade no processo de decisão, definição e operacionalização das políticas públicas, emanados da Constituição. Ou seja: são instrumentos criados para atender e cumprir o dispositivo constitucional no que tange ao controle social dos atos e decisões governamentais (GOMES, 2000, p.166).

Os Conselhos de Direitos como espaços públicos podem possibilitar uma relação horizontal entre Estado e sociedade civil. É uma maneira de a sociedade interferir no Estado, através de discussões e embates que possam expressar os problemas enfrentados pela população, priorizando as ações que irão atender as reais necessidades da sociedade. Dessa forma, a partir do exercício efetivo de suas atribuições, os conselhos

[...] poderão imprimir um novo formato às políticas sociais, pois se relacionam ao processo de formação das políticas e tomada de decisões. Com os conselhos, gera-se uma nova institucionalidade pública. Eles criam uma nova esfera social-pública ou pública não-estatal. Trata-se de um novo padrão de relações entre Estado e sociedade, porque eles viabilizam a participação de segmentos sociais na formulação de políticas sociais e possibilitam à população o acesso aos espaços nos quais se tomam as decisões políticas (GOHN, 2003, p.85-88). 

O que se verifica nessa citação é que os conselhos contribuem para o fortalecimento da esfera pública, à medida que esses espaços favorecem a participação coletiva, ao estabelecer uma ligação entre governo e governados, propondo novas formas de políticas públicas. Esse é espaço de viabilização do debate público, uma vez que as decisões políticas podem ser negociadas, acordadas de forma coletiva e transparente. Nesta perspectiva, o objetivo dos conselhos, nos dizeres de Degennszajh (2000, p.66), é de “[...] penetrar na lógica burocrática estatal para transformá-la e exercer o controle socializado das ações e deliberações governamentais”.

O que se pretende não é negar o papel do Estado. A sociedade emergente, que buscou organizar-se através dos seus mais variados atores coletivos, estabelecendo lutas sociais e reivindicação de direitos, tem a perspectiva de construir outras maneiras de regulação social, que nos dizeres de Telles (1994, p.12), se dão “[...] através dos ‘rituais da negociação’, ancorados no terreno dos conflitos, abertos à pluralidade de problemas e temas emergentes que não encontram lugar no espaço unitário estatal”. Neste aspecto, trata-se de uma questão que diz respeito,

[...] à possibilidade da construção, entre Estado, economia e sociedade, de arenas públicas que dêem visibilidade aos conflitos e ressonância às demandas sociais, permitindo, no cruzamento das razões e valores que conferem validade aos interesses envolvidos, a construção de parâmetros públicos que reinventem a política no reconhecimento dos direitos como medida da negociação e deliberação de políticas que afetem a vida de todos (TELLES, 1994, p.12).

A nova relação entre Estado e sociedade civil implica o entendimento de novos conceitos. A partir do processo de institucionalização dos conselhos, o tema controle social passou a ter um novo significado, uma vez que a participação exercida nos referidos espaços públicos

[...] adquiriu uma direção de controle social posta pelos setores progressistas da sociedade, ou seja, de controle por parte dos segmentos organizados da mesma sobre as ações do Estado no sentido de este, cada vez mais, atender aos interesses da maioria da população, em reverso ao período ditatorial de controle exclusivo do Estado sobre a sociedade cerceando qualquer expressão desta (CORREIA, 2004, p.149).

Logo, a sociedade civil precisa passar por um processo de mudança, de modo a construir pactos coletivos que superem os interesses particulares e corporativos. As discussões, no âmbito dos conselhos, devem ser de caráter público, na construção de propostas de interesse comum, visando ao atendimento das demandas populares. Na concepção de Castro (1999, p.16), “[...] a efetiva atuação dos sujeitos coletivos podem elevar o atual modelo de espaço público ao espaço da cidadania como sendo do aparecimento, da visibilidade”.

A partir da criação dos conselhos, a proposta remete à discussão sobre o termo publicização, que

[...] funda-se numa visão ampliada de democracia, tanto do Estado quanto da sociedade civil, e na implementação de novos mecanismos e formas de atuação, dentro e fora do Estado, que dinamizam a participação social para que ela seja cada vez mais representativa da sociedade, especialmente das classes dominadas. [...] é um processo construído por sujeitos sociais que passam a disputar lugares de reconhecimento social e político, e adquire assim um caráter de estratégia política (DEGENNSZAJH, 2000, p.63-64).

Como se pode perceber, o conselho é o locus adequado para a publicização, pois este permite que os mais variados atores sociais enfrentem-se e confrontem-se, a fim de construir um consenso que vá na direção da universalização dos direitos. A partir dessa reflexão, pode afirmar que os conselhos

[...] devem ser visualizados como locus do fazer político, como espaço contraditório, como uma nova modalidade de participação, ou seja, a construção de uma cultura alicerçada nos pilares da democracia participativa e na possibilidade da construção da democracia de massas (BRAVO, 2002, p.47-48).

Essa nova modalidade de participação diz respeito a

[...] um formato de exercício democrático que questiona tanto a tradição elitista do fazer político no âmbito da sociedade política quanto sugere repensar as práticas de precária experiência democrática, predominantes na sociedade civil (CAMPOS E MACIEL, 1997, p.150).

Portanto, o espaço, tanto pode manter o que está colocado, como pode alterar por completo uma dada realidade. Mas, o conselho continua sendo um espaço democrático, mesmo que este, segundo Correia (2002, p.133), seja um local “[...] onde vence a proposta do mais articulado, informado, e que tem maior poder de barganha [...]”. É nesta arena que ocorrem os embates que orientam uma dada política pública e que deve ser ocupada com competência política, para que não sirva somente para legitimar os atos do poder constituído.

Neste sentido, o interesse da maioria está presente nos processos de decisão, cuja dimensão política é baseada na valorização e na aceitação de que todos devem participar da vida pública. Compreendido enquanto um espaço contraditório e de exercício democrático das divergências, os conselhos não podem ser entendidos como a soma de interesses de grupos ou de segmentos. Segundo Gomes (2000, p.166), “[...] deve expressar a construção de interesses coletivos, processada a partir das diversas e diferentes experiências e interesses ali representados”.

Assim, por se tratar de um espaço em que as relações devem ser transparentes, de forma que os conflitos sejam levados à cena pública, Degennszajh (2000, p.64) entende que o conselho “[...] é o espaço por excelência no qual os projetos sociais podem se confrontar e os consensos e alianças podem ser estabelecidos”. É na esfera pública que a política está presente e as ações são visíveis, “[...] aonde tudo que vem a público pode ser visto e ouvido por todos”. A noção de esfera pública parte da idéia de que:

[...] sua constituição é parte integrante do processo de democratização, pela via do fortalecimento do Estado e da sociedade civil, expresso fundamentalmente pela inscrição dos interesses das maiorias nos processos de decisão política. Inerente á tal movimento, encontra-se o desafio de construir espaços de interlocução entre sujeitos que imprimam níveis crescentes de publicização no âmbito da sociedade política e da sociedade civil, no sentido da criação de uma nova ordem democrática valorizadora da universalização dos direitos de cidadania (RAICHELIS, 2000, p.27-28, grifo do autor).

A partir dessa visão de esfera pública, pode-se despertar a possibilidade de alterar a posição secundária atribuída à sociedade civil no campo das decisões políticas, através do fortalecimento de instrumentos democráticos que determinam um novo relacionamento entre o público e o privado.

No que se refere às decisões sobre uma dada política pública, os conselhos têm caráter deliberativo, além de exercer o controle sobre sua gestão. Este caráter de decisão garante que o debate ocorra nesse espaço público e, principalmente, de forma plural. Tais atribuições exigem autonomia do conselho, embora isso nem sempre ocorra. Neste aspecto, a referida autonomia está condicionada a alguns fatores, ou seja, dependendo

[...] do grau de unidade das forças da sociedade civil nele presentes, e da natureza das forças políticas dominantes, esse grau de autonomia poderá ser ou não ampliado. Trata-se, pois de uma nova institucionalizada porque não decorre meramente da lei ou da discussão no parlamento: a esta procede todo um processo de debate público nos espaços societais, na interlocução de diferentes atores, até constituir um conjunto de proposições que servem de balizamento para as esferas da decisão formal (TEIXEIRA, 1999, p.27).

Portanto, o atendimento dos interesses das classes populares depende do grau de organização que a sociedade tiver na ocupação dos espaços públicos. Por outro lado, o fortalecimento dos conselhos depende do incentivo e das condições oferecidas pelo poder constituído.

Os conselhos de direitos têm um importante papel político, uma vez que ao envolver novos atores sociais na discussão sobre as políticas públicas fortalece a sociedade civil. Tal fortalecimento se dá à medida que, além de obter informações, consenso, negociação e poder, a sociedade poderá interferir, a partir da efetiva participação, na formulação das políticas. As necessidades que são discutidas no âmbito dos conselhos, segundo Teixeira (1999, p.29), “[...] podem tornar-se políticas públicas e, portanto, as ações governamentais podem ser orientadas para o atendimento do conjunto e a regulação que cabe ao Estado não mais se fará sem que a representação social a discuta e formule proposições”.

Outro aspecto importante diz respeito ao papel político dos conselhos na distribuição de poder. Assim, pode-se afirmar que os conselhos destacam-se como instrumentos de democratização do poder, quando as decisões de políticas sociais

[...] passam pelo crivo da discussão e da interlocução entre atores diferenciados e podem ser aprimorados por proposições resultantes desse processo, antes de passar pelos canais tradicionais de decisões políticas: partidos e parlamentos. Os conselhos são órgãos de participação cidadã se são pensados como espaços de partilha de diferentes visões e interesses de segmentos da sociedade. Desde que os mandatos da representação social tenham vinculação com sua base e com a sociedade como um todo e possam ser revogados, tornam-se responsáveis política e eticamente (TEIXEIRA, 1999, p.29).

A democratização do poder depende da efetiva participação da sociedade ao exigir que essa partilha materialize-se. A presença ativa dos cidadãos, no âmbito dos conselhos, pode contribuir, em grande parte, para que os atores sociais sejam reconhecidos como sujeitos sociais e políticos fundamentais para uma efetiva gestão pública.

Ainda no que se refere ao papel político dos conselhos, destacam-se as ações de controle social que são executadas pelo Estado e pela sociedade civil. Esta função torna-se relevante porque cria condições para que a sociedade disponha de um instrumento de avaliação, de fiscalização e, principalmente, de proposição de políticas públicas, capazes de atender às suas demandas, mediadas pelos conselhos.

Isso significa vislumbrar a construção de outra cultura política democrática, permitindo que a população participe das decisões sobre as mais variadas questões sociais, com objetivo de eleger prioridades que se configurem e se materializem em serviços públicos. Assim, os mais variados atores sociais devem se apropriar dos espaços dos conselhos para o exercício da prática da democracia, na implementação de políticas públicas capazes de viabilizar direitos. Para que se possa pensar os Conselhos como possibilidade de edificar uma nova cultura sustentada por uma democracia participativa, é preciso

[...] compreender que o novo é uma construção histórica ingente. Reclama a construção de referenciais teóricos, de valores éticos e práticos sociopolíticos que suplantem o divórcio entre o pensar e o agir. Significa ter como desafio permanente destruir, também no âmbito da sociedade civil, as práticas de delegação sem representatividade legítima e da representação sem delegação democrática. Para a efetividade deste novo paradigma é indispensável o combate aos comportamentos identificados e reiteradores da acomodação, da indiferença e do niilismo (CAMPOS E MACIEL, 1997, p.150-151).

Os conselhos, diante deste novo paradigma, passam a ter um expressivo espaço de gestão dos recursos públicos. Por outro lado, não se pode acreditar que a participação e o controle social possam ser efetivados somente a partir da implementação dos conselhos. É imprescindível a construção de outros espaços coletivos que contribuam com uma gestão pública participativa, capaz de pôr em prática políticas sociais efetivamente públicas.

Não se pode atribuir somente aos conselhos, o papel de garantia de direitos, até porque, por si só, estes não são suficientes para tamanha tarefa. Os conselhos constituem-se em um dos instrumentos que a sociedade possui para a viabilização de direitos. É fundamental a utilização de outros meios, como o Ministério Público, os conselhos profissionais, as redes de comunicação, entre outros, de modo a expressar, no trato da coisa pública, os interesses das massas populares, uma vez que:

[...] os conselhos não podem ser considerados como únicos condutos de participação política e nem exemplos modelares de uma sociedade civil organizada. Esta é uma das formas que o movimento social conseguiu conquistar, que precisa ser acompanhada e avaliada atentamente, e combinada com outras modalidades de organização e mediação política (DEGENNSZAJH, 2000, p.67).

No entanto, a cultura política antidemocrática, consolidada no Brasil, tem criado obstáculos à implementação de práticas participativas e organizativas, capazes de implementar as ações do poder público em favor dos interesses populares.

A institucionalização e a garantia legal dos conselhos não têm sido suficientes para que tais espaços consolidem-se na sociedade brasileira. Os conselhos foram instituídos por uma questão burocrática, não sendo reconhecidos pela sociedade como um espaço de luta dos interesses públicos. Em muitos municípios, os conselhos, na concepção de Gohn (2003, p.89), “[...] têm sido apenas uma realidade jurídico-formal, e muitas vezes um instrumento a mais nas mãos dos prefeitos e das elites, falando em nome da comunidade, como seus representantes oficiais”. O exercício da função dos conselhos está intimamente ligado com o respeito que lhes é assegurado, para que o mesmo possa funcionar de maneira a desempenhar o seu papel político.

Outra questão importante a ser discutida, é o fato de o setor público ainda se pautar em atitudes clientelistas, patrimonialistas e autoritárias. O poder constituído tem dificultado a divisão do poder com a sociedade civil, resistindo a todo e qualquer controle dos conselhos sobre o poder público. Segundo Martins (2004, p.196), “O Poder executivo vem se apresentando como uma instância que opera de maneira relevante (porém não determinante) no fortalecimento ou no enfraquecimento do conselho”.  Cumpre lembrar que:

[...] os conselhos, instâncias por excelência do fazer político, não podem ser confundidas com uma confraria de amigos, com um palco de conciliações, como desejam muitos governantes. Por outro lado, também não deve ser entendido como fórum de discórdia e da oposição sistemática, como desejam alguns esquerdistas (CAMPOS E MACIEL, 1997, p.154).

Comumente, há uma separação entre o saber técnico e o saber popular, no momento em que as atividades são divididas entre os conselheiros. Desta maneira, há a subalternização de algumas práticas, na medida em que, segundo Campos e Maciel (1997, p.154), “[...] o trabalho de reflexão, de argumentação, de representação pública tem sido predominantemente dedicado aos representantes governamentais ou a intelectuais conselheiros”. Já a parte pesada do trabalho, como a mobilização, tem sido destinada aos representantes não-governamentais. Esta postura antidemocrática e conservadora leva ao entendimento de que:

Tais comportamentos colidem com a perspectiva de construção de um exercício de gestão democrática descentralizada e representativa. Militam a serviço do fortalecimento de comportamentos e práticas conservadoras no âmbito da administração pública (CAMPOS E MACIEL, 1997, p.154).

Se a lógica dos conselhos é proporcionar a edificação de uma nova cultura política, sendo essa modernização perseguida pela sociedade, não há dúvida que os grupos sociais resistirão a tais mudanças porque, há séculos, tais grupos apropriaram-se da coisa pública. A sociedade civil organizada, que deseja um novo modelo de relação com o Estado, precisa somar esforços para que não haja a desqualificação da proposta para consolidação dos conselhos deliberativos.

Os diversos instrumentos de participação política, sejam eles de caráter formal ou informal, muitas vezes, são prejudicados por não ter um trabalho contínuo que ofereça resultados satisfatórios. Para Telles (1994, p.13), é importante ressaltar que, nestas experiências, “[...] não estão ausentes ambivalências derivadas de lealdades políticas locais, resistências às práticas de negociação, persistência de mecanismos clientelistas tradicionais”. Além disso, são grandes os desafios para a integração de grupos sociais pouco organizados e com pequena capacidade de reivindicação. Neste sentido, autora ressalta a necessidade de se dizer que:

[...] essas (e outras) experiências são muito fragmentárias e descontínuas e que as conquistas são incertas, pois processam-se em um terreno minado por práticas autoritárias e excludentes, além de não atingirem muitos (na verdade, a maioria) dos que se encontram fora das arenas organizadas da vida social (TELLES, 1994, p.13).

Por outro lado, a construção de arenas públicas, construídas na interface entre Estado e sociedade,

[...] permitem tornar a gestão pública permeável às aspirações e demandas emergentes da sociedade civil, retirando do Estado o monopólio exclusivo da definição de uma agenda de prioridades e problemas pertinentes à vida em sociedade. E isto significa um outro modo de se construir uma noção de interesse público: uma noção plural e descentrada, capaz de traduzir a diversidade e complexidade da sociedade, rompendo, por isso mesmo, com uma versão autoritária, solidamente enraizada na história política do país, sinonimizada com a razão do Estado e identificada com a imposição autoritária da lei (TELLES, 1994, p.13).

Como se pode perceber, o espaço público é contraditório e está em construção, permeado de posições antagônicas, mas que possibilitam a consolidação da democracia por representar o âmbito das negociações, em que se expressam diferenças e divergências. Trata-se, portanto, na concepção de Telles (1994, p.13), de um espaço onde “[...] valores circulam, argumentos se articulam e opiniões se formam; no qual parâmetros públicos podem ser construídos e reconstruídos como balizas para o debate em torno de questões relevantes”.

Nesta perspectiva, os conselhos são espaços inerentes à conduta democrática na sociedade. Importante torna-se considerar a peculiaridade desses espaços, que segundo Telles (1994, p.13), “[...] é a possibilidade da construção negociada de parâmetros que balizam a deliberação política, a arbitragem de interesses envolvidos e a definição dos critérios para os usos dos recursos públicos”.

O espaço público tem o papel de eliminar todo e qualquer privilégio individual ou de um grupo, e é aí que pode estar o seu grande valor, uma vez que tais espaços sinalizam

[...] para uma nova institucionalidade que se abre a espaços de representação, interlocução e negociação. É uma institucionalidade construída através de regras formais ou informais da convivência pública, sob formas codificadas ou não, permanentes ou descontínuas, mas que, de alguma forma, projetam os direitos como parâmetros que balizam o debate sobre o justo e o injusto, o legítimo e o ilegítimo, nas circunstâncias e acontecimentos que afetam a vida dos indivíduos, grupos e classes e mesmo de uma população inteira (TELLES, 1994, p.13).

Assim, são grandes as possibilidades dos conselhos de direitos em se constituírem enquanto ferramentas necessárias para a democratização da coisa pública, contribuindo para um efetivo processo democrático. Por outro lado, tal proposta não tem se concretizado como realidade diante das experiências equivocadas de conselhos que não tem se efetivado como espaços públicos.

Considerações Finais

Ao serem desvalorizados, e, muitas vezes desqualificados enquanto espaço público, os Conselhos de Direitos perdem sua importância, não sendo reconhecidos pela população como instrumentos importantes na luta pela garantia de direitos. Neste sentido, os mesmos são apropriados pelos gestores públicos, a fim de legitimarem decisões que são tomadas de cima para baixo.

O exercício da participação e do controle social tem sido fragilizado, na medida em que a população pouco tem interferido nas decisões que são de interesse coletivo. Embora o discurso valorize um processo participativo, na prática o poder constituído tem se utilizado de artifícios para dificultar a interferência da sociedade na condução da coisa pública.

Diante da realidade é fundamental implementar medidas que propiciem o exercício cotidiano de uma participação que interfira nas decisões no âmbito das políticas públicas, e, que principalmente, possibilite o controle social sobre a coisa pública. Para isso, todo espaço público deve ser entendido, tanto pela sociedade como pelo poder público, como um instrumento que contribua para a democratização daquilo que é de interesse público.

O desafio,  portanto, está na superação da cultura política anti-democrática que ainda prevalece e que tem dificultado, dentro dos conselhos, ações que efetivamente privilegiem o debate plural e transparente, capaz de propiciar o atendimento dos interesses coletivos.

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