A gestão em sintonia com a vida

Marco Aurélio Nogueira


Parto do suposto de que a vida atual é difícil de ser vivida e mais difícil ainda de ser entendida. Estamos hoje obrigados, como intelectuais, operadores sociais e cidadãos, a enfrentar desafios de alta complexidade, tanto para organizar nossas cabeças e agendas pessoais, quanto para organizar as agendas institucionais e alcançar um posicionamento inteligente diante dos processos e estruturas com que interagimos. A própria complexidade exige que cultivemos a modéstia teórica e política, que me parece ser um valor cada vez mais indispensável.

Minha contribuição a este evento será uma tentativa de refletir, tanto quanto possível saindo das zonas mais elevadas da abstração, sobre a situação atual, buscando perceber em que medida ela produz efeitos e exigências no plano da gestão.

Para começar a enfrentar esse tema, faço uma observação bastante genérica, a partir da qual pretendo seguir em direção a uma abordagem mais sistemática da vida atual e dos problemas da gestão social.

Temos hoje uma percepção clara de que vivemos em um mundo muito diferente daquele que encontramos relatado nos livros, ou com o qual interagimos há cerca de 20 ou 30 anos. É um mundo que tem uma mola transformadora poderosa na economia, como costuma acontecer, mas que só pode ser entendido se formos além da economia. Hoje, não dá simplesmente para dizer que a economia tem poder de determinação sobre os diferentes aspectos da vida, pois a vida é complexa demais e escapa de determinações unilaterais. Não é pelo registro simplificado de que estamos em uma nova fase de acumulação do capital, por exemplo, que conseguiremos estabelecer um diagnóstico preciso da época em que nos encontramos, por mais que seja decisivo considerar o capitalismo. Temos de considerar com atenção redobrada o modo de vida sócio-cultural e pensar, a partir dele, as formas da política e da gestão. Há uma determinação econômica, com certeza, mas ela está sempre sobredeterminada pelos fatos não imediatamente econômicos.

Desejo sugerir que a grande mudança que estamos presenciando não está localizada na estrutura da economia, mas sim na estrutura da vida. O modo como estamos vivendo é novo, tem aspectos inusitados e surpreendentes, está nos forçando a renovar os parâmetros do pensamento. Estamos em um mundo paradoxal, que anuncia e nos promete muitas coisas mas que é, ao mesmo tempo, muito angustiante e difícil.

Forçando um pouco a frase, estamos passando de uma etapa em que as instituições sociais tinham alto poder de modelagem das condutas, dos comportamentos e das decisões para uma etapa em que os indivíduos são levados a se automodelar. Alguns sociólogos já chegaram a uma conclusão extremada a este respeito. Alan Touraine, por exemplo, em um de seus últimos livros (O Novo Paradigma, publicado no Brasil pela editora Vozes), chegou ao ponto de afirmar que não existe mais sociedade, que hoje o que existe são arranjos de indivíduos, formando estruturas cada vez mais fugazes e cada vez mais transitórias. Essas estruturas que derivam das individualidades desconectadas, soltas, têm um poder de agenda baixo e de curta duração. É como se estivéssemos assistindo a uma profunda dificuldade das instituições pautarem a vida da sociedade, a uma espécie de fracasso do âmbito institucional. Esta é uma frase provocativa, mas não propriamente absurda. As instituições estão falhando, a começar daquelas que são decisivas para ordenação social, como por exemplo, o governo, os diversos setores da administração, a escola, os hospitais, até ir ao nível básico da sociedade, as famílias. Não significa que estejamos indo em direção a uma época sem famílias, não, de modo algum, mas certamente estamos indo em direção a um padrão de família mais aberto, que nós ainda não sabemos bem qual será, mas que não será semelhante ao padrão no qual nos criamos.

 Neste ponto, pode-se perguntar: "E o que isso tem a ver com gestão?" Eu diria que tem tudo a ver, porque se é verdade que estamos ingressando num padrão de vida social fortemente marcado pelo protagonismo dos indivíduos, então tudo aquilo que diz respeito a gestão, seja social, seja em qualquer outra área, ganha destaque e proeminência. Parto disso, por exemplo, para explicar porque é que o tema gestão passou a ter tanta importância no mundo atual. Não estou falando de gestão social, mas de gestão. Se formos a uma livraria hoje, por exemplo, e escolhermos a seção com mais livros, onde há mais títulos, encontraremos administração e auto-ajuda, sem nenhuma dúvida, e isso no mundo todo, não somente no Brasil. Administração e auto-ajuda são variantes da gestão. O que pretendem os livros de auto-ajuda? Querem auxiliar as pessoas a administrar melhor seus relacionamentos, suas angústias, sua vida profissional. Alguns destes livros são interessantes. Certos manuais de administração fornecem auto-ajuda, ainda que não se proclamem como tais. A ênfase que encontramos hoje neste tipo de literatura reflete a força que o tema da gestão passou a ter em nossas vidas. Como nada está sendo governado direito, nada está sendo muito bem administrado, nós, indivíduos, temos de arcar com um peso maior para dar um eixo à sociedade. Convertemo-nos nós mesmos em gestores.

Não estou sugerindo que estejamos à beira do precipício, que tudo esteja se acabando, por um fio. De modo algum. Talvez estejamos apenas experimentando as sensações de uma antecâmara, o início de um processo de melhoria substantiva das coisas. Porque também não é verdade que no padrão anterior, que me parece em franca desconstrução, as coisas estavam melhores. Não passamos uma boa parte dos últimos anos falando mal da burocracia?  A burocracia era a rainha do padrão anterior no plano administrativo, ela pilotava tudo, ela se interpunha entre os profissionais e a sociedade, no caso da gestão, por exemplo. Desde os anos 90, a burocracia virou demônio no vocabulário da reforma do Estado, foi responsabilizada por muita coisa. O que foi proposto para ser colocado no lugar da burocracia – a gestão gerencial – não deu muito certo, e foi abandonado. Voltamos a nos encontrar com uma burocracia que, combalida, ainda tem vigor para fazer determinadas coisas, até mesmo para importunar nossa existência e nosso cotidiano. Quer dizer, no passado recente também sofríamos com os problemas derivados do que estava instituído no mundo da gestão. Hoje, talvez possamos dizer que no horizonte desponta uma forma renovada de burocracia.

A transfiguração a que estamos assistindo não está a produzir um rebaixamento de tudo, está, ao contrário, complicando tudo. Para o que quer que queiramos fazer hoje, teremos de acumular mais conhecimentos, mais energia, mais disposição, mais flexibilidade, e isto significa que não há qualquer esperança de acerto na área da gestão que não parta de um bom estoque de conhecimentos e pessoas. Os sistemas podem valer bastantes, e acredito que valem muito, mas sem conhecimentos e pessoas qualificadas os sistemas não saem do lugar. Recursos humanos qualificados não significam pessoas diplomadas. Os diplomas são parte importante da vida, mas não são eles que farão a diferença. O que importa mesmo é aquilo que as pessoas acumulam em sua experiência de vida.

A gestão ocupa um lugar grande em nossa vida justamente porque a vida está meio desorganizada, em transição radical. Uma forte pressão sócio-cultural contamina o campo todo da gestão. É mais ou menos como se eu falasse assim: vivemos em um mundo fora de controle, difícil de ser controlado. Se isso é verdade, todos os que exercerem função de controle vão estar na berlinda, vão estar projetados para um âmbito de alta concentração de atenções da sociedade.

Se considerarmos com maior particularidade a gestão social, quais são as fontes de pressão que a atacam hoje? Várias delas são bem conhecidas, seja na atividade prática, seja na reflexão teórica. Uma é a profunda insatisfação da sociedade com a gestão pública. Muitas coisas melhoraram na área pública, em termos de serviços e atendimento, mas isso não foi suficiente para que diminuísse a insatisfação difusa das pessoas. As pessoas continuam achando que a fonte principal de sua desgraça é Deus, em primeiro lugar, ou o diabo, e em segundo lugar o Governo. Não é verdade que achem que a fonte dos seus problemas é o capital. As pessoas sequer têm idéia do que significa o capital, mas jogam suas pedras no governo, no funcionário do posto de saúde que não atende direito, no professor, no agente previdenciário, e assim por diante. Isto é verdade sobretudo se levarmos em conta que há uma fabulosa demanda reprimida no Brasil. 80% da renda brasileira são apropriados por 10% da população. Isso cria um problema complicadíssimo de demanda social, que seguramente explode no âmbito da gestão. No mínimo congestiona os sistemas dedicados à gestão, que recebem reivindicações em volume expressivo.

Outra fonte de pressão, que tende a ser crescentemente perturbadora, tem a ver com o modo de vida atual. Trata-se de um reflexo da fragmentação, da diversificação e da aceleração geral da vida. Hoje vivemos em alta velocidade, turbinados, queremos que tudo aconteça anteontem, não gostamos de esperar, não estamos treinados para esperar, a paciência para nós é um valor difuso. Quando entramos no âmbito da gestão, isso tem um efeito. As pessoas chegam aos lugares e não querem fazer fila, não aceitam esperar. Não estou dizendo que seja razoável fazer fila durante um ano para poder ser atendido, isso é ridículo, não faz nenhum sentido. As pessoas incrementam sua insatisfação diante de qualquer lentidão. Nos casos em que a lentidão é excessiva – casos esses, como se sabe, bastante numerosos – o cidadão volta para casa com a certeza de que aquele serviço não presta, ou de que ele, cidadão, não vale nada. Os setores sociais que dispõem de maiores recursos de persuasão, de reflexão e de reverberação, operam como demolidores da área pública. Fornecem combustível adicional para a efervescência gerada pelo contraste entre a lentidão dos sistemas e a aceleração das expectativas, criando uma fonte que desorganiza ou ajuda a desorganizar a gestão.

Há pressão derivada, ainda, daquilo que poderíamos chamar de "crise das verdades", ou de "crise dos paradigmas". Hoje nós vivemos em dúvida crônica. Falo em paradigmas pensando nas grandes estruturas metodológicas e doutrinárias que vieram do século XVIII, XIX e XX, e que se encontram hoje postas em xeque, abordadas por uma intensa discussão, abandonadas parcial ou completamente, ainda que não sejam consideradas em bloco como mortas. Mas o mais interessante é pensarmos nos pequenos “paradigmas”, nas certezas tradicionais, nas orientações que recebíamos prontas para tocar a vida. Como devo namorar? Devo ou não casar? Meus pais devem participar do meu planejamento familiar, da minha decisão de ter ou não ter filhos? Devo ou não comer ovos, se preciso controlar o colesterol? Vivemos imersos nessas dúvidas existenciais. O sistema médico, a profusão de exames laboratoriais, as sucessivas descobertas químicas, os novos tratamentos, a facilidade com que se encontram informações, tudo faz com que fiquemos reflexivamente em estado de alerta e dúvida permanente. As coisas mudam tão depressa que não há mais muita certeza sobre o que deve ou não deve ser feito. Óbvio que existem o bom senso, o conhecimento, a sabedoria espontânea, as práticas tradicionais, o que nos fornece alguns bons parâmetros, mas esse estado manifesto de dúvida é uma característica da vida atual que também ajuda a complicar a gestão. De que maneira devo organizar as atividades? De que maneira proceder para que os serviços aconteçam? Deve ou não existir uma hierarquia nos lugares?

Um dos problemas gravíssimos desta crise dos grandes e pequenos paradigmas é a colocação em dúvida do valor da autoridade. Quem tem a última palavra? Alguém deve ter a última palavra? É razoável a gente aceitar que alguém, seja ele o mais velho, o mais sábio, o mais competente, o mais legítimo, o mais sedutor, possa dar a última palavra? Ou temos de decidir tudo mediante assembléias permanentes?

Antes, a participação das pessoas era um programa político. Desejava-se, por exemplo, fazer gestão participativa porque isso era um valor. Hoje, a participação continua sendo um valor, mas ela está posta numa esfera de exigência da vida. As pessoas são impelidas a participar, os gestores são impelidos a “convocar” os interesses para com eles compartilhar determinadas decisões. Como há mais “liberdade” de ação, menos respostas prontas, todos têm informações e tudo é muito mais complexo, a composição das decisões governamentais depende em boa medida do envolvimento dos setores sociais mais mobilizados, ou organizados, ou dispostos a agir em defesa de seus interesses.

Trata-se de uma perspectiva interessante e positiva, mas que inevitavelmente transfere tensão e turbulência para o plano da gestão. Irrompendo em um ambiente repleto de pressões, carências e falta de referências, a “hiper-participação” ajuda a tumultuar a vida das organizações, ainda que também seja um imprescindível fator de revitalização e renovação.

Como sugeri no livro Um Estado para a sociedade civil (Editora Cortez), estamos em uma época de sofrimento organizacional. As organizações estão sofrendo. Para produzirem pequenos fatos, precisam gastar energia descomunal. Para uma universidade hoje produzir alguns diplomas de graduação, por exemplo, ela precisa gastar uma fábula de energia, não somente em termos financeiros, mas de tudo, de saliva, discussão, reflexão, tempo. As organizações gastam excessiva energia para funcionar e adquirir estabilidade, mas não conseguem eliminar a insatisfação e a apatia que tomam conta de seus integrantes.

 Tal fato, somado à estrutura da vida atual, produz um ambiente geral de desajuste e ausência de eixo. Que consensos existem hoje na sociedade brasileira? Que os acordos são hoje prevalecentes? Consideremos os problemas. Que consenso existe, por exemplo, em relação à pobreza e à sua eliminação no Brasil? Deveria ser fácil chegar a uma abordagem consensual sobre isso, mas se formos à literatura, à imprensa, aos ambientes acadêmicos, encontraremos vários conceitos de pobreza. Pobreza como sinônimo de falta de renda ou de poder de compra, pobreza cultural, pobreza como sinônimo de exclusão de certos circuitos, por exemplo, pobreza informacional, exclusão digital. É claro que, se nos esforçarmos um pouco, chegaremos a uma idéia de que todas essas nuanças façam parte da mesma coisa, mas não é isso que importa. O importante é que quando o técnico do IPEA e o técnico do Ministério da Ação Social se encontram, eles divergem em relação ao que é ser pobre no Brasil. Dependendo da visão que vence, tem-se mais bolsa-família ou mais previdência social. Como os recursos são escassos, essas coisas são importantes.

A dificuldade de se ter consensos é generalizada. A gente sai da pobreza e vai para desenvolvimento, por exemplo. Todos concordam que o Brasil precisa crescer. Isso porém não resolve nada, não é um consenso, é uma obsessão. Consenso é chegar ao estabelecimento de um padrão de desenvolvimento. Vamos ter desenvolvimento e respeitar o ambiente, ou não? Aceitaremos alguma inflação para acelerar o desenvolvimento? Vamos desenvolver o país e manter as reservas indígenas, ou não? Há quem ache, por exemplo, que para se ter desenvolvimento com segurança é preciso acabar com as reservas indígenas, ou pelo menos reduzi-las ao mínimo necessário. Outros concebem o desenvolvimento como dependente de uma sustentação que parte precisamente da mobilização de setores sociais ampliados, entre os quais se poderiam incluir os povos indígenas. O consenso sobre o desenvolvimento está ausente entre nós. Não é por isso que não temos desenvolvimento, mas é provavelmente por isso que não temos uma política de desenvolvimento.

Essa ausência de consenso brota do tipo de vida que estamos vivendo. É reflexo também desse problema das organizações no âmbito daquele espaço que produz consenso, que é o espaço político, porque em nenhuma sociedade, a não ser as mais tradicionais, o consenso brota espontaneamente. O consenso é uma criação, uma criação política. E se os personagens do mundo político não têm potência para produzir consensos, os consensos não existirão. E quem são os principais personagens do mundo político? Continuam a ser os partidos, ou seja, estruturas associativas que estão hoje com a língua de fora, que se ressentem de clareza programática, pujança doutrinária, coesão interna e capacidade de interação com a sociedade. Com as dificuldades múltiplas que estão a encurralar os partidos, com as mudanças profundas que impactam a estrutura de classes das sociedades contemporâneas, passamos a nos ressentir da falta de articuladores coletivos, de operadores capazes de produzir consensos e, portanto, projetos de sociedade.

Continuamos convencidos de que “planejando tudo é possível". Precisamos mesmo tentar seguir este princípio, mas não escapamos de uma pergunta que não cala: é possível planejar no quadro em que vivemos? Algum planejamento é certamente possível, sobretudo se abandonarmos as visões tradicionais e incorporarmos alguns parâmetros do planejamento estratégico, que é um planejamento aberto, que se reformula ao longo do tempo e não segue procedimentos excessivamente técnicos ou formalizados. Mas o mundo atual – o mundo das relações internacionais, do mercado global, das sociedades nacionais concretamente estruturadas – é um mundo que se mostra tão forte, tão “irracional” e tão “irresponsável” que parece desafiar qualquer plano ou tentativa de coordenação. Nele, como escreveu certa vez Manuel Castells, “o poder dos fluxos é maior do que os fluxos do poder”. Isto não significa que tenha deixado de existir o poder em geral ou o poder político em particular, mas sim que o fenômeno do poder se complicou bastante e não mais depende de operações centralizadas tidas como imprescindíveis. O próprio Estado-nação, que encarnou quase à perfeição o poder político-jurídico-administrativo no mundo moderno, não ocupa mais o centro da vida. Perdeu centralidade, ainda que mantenha sua relevância. O sociólogo inglês Anthony Giddens, por exemplo, sugere que vivemos num mundo em descontrole, título de um de seus livros. Zigmunt Bauman, cientista social polonês, fala em modernidade e em vida “líquidas”, com o intuito de destacar a dificuldade de se apreender, traduzir, organizar e dirigir o mundo atual.

Como planejar vida líquida? Poder-se-ia pensar na imagem da jaula, do aquário ou do container, algum recipiente hermeticamente fechado. Mas não há como trancafiar a vida atual. Qualquer tentativa neste sentido, além de atentar contra a democracia, implicaria em produzir mais tensão e explosão. Quem aceitaria permanecer trancado em uma garrafa como o gênio da lâmpada, à espera de alguém que a destampe? Se não aceitamos sequer as autoridades básicas, não aceitaríamos o cerceamento da liberdade. E não tanto por opção política: é que não podemos viver em ambientes “líquidos” sem nos mover e movimentar o tempo todo, sob pena de afogarmos. Se para se obter controle for preciso limitar a movimentação, não teremos controle, porque o modo de vida atual é refratário a limitações.

É verdade que sistematicamente são postas em curso inúmeras operações de controle e repressão. A maior parte delas, no entanto, não passa de pirotecnia, são para dizer que algo está sendo feito, que os poderes estão atentos e vigilantes, que não devemos nos esquecer deles. No fundo, porém, é como se se estivesse tentando bloquear um jato d’água impulsionado por extrema pressão. Efetivamente não se está controlando muita coisa. A burla e o repto aos sistemas de vigilância encontram mil maneiras de se manifestar.

 Vivemos em um mundo que se movimenta cada vez mais. A cada dia, por exemplo, há mais turistas perambulando, mais comerciantes e trabalhadores à procura de emprego, mais intelectuais indo a congressos. Isso tudo é reflexo de alguma coisa. Se considerarmos os “deslocamentos” que são feitos no ciberespaço, mediante uso de tecnologia de informação e comunicação, toda a movimentação atual parece indicar que vivemos em um mundo de territórios imprecisamente demarcados e controlados. O antropólogo indiano Arjun Appadurai fala, por exemplo, em "soberania sem território". Jürgen Habermas, o grande filósofo do nosso tempo, emprega o conceito de “constelação pós-nacional" para indicar a emergência de um mundo no qual os territórios nacionais têm menos importância e são sobrepujados – como modeladores da experiência social – por empresas, organizações, forças sociais e indivíduos que vão criando novos espaços e aprofundando os limites de atuação dos Estados-Nação. O sociólogo espanhol Manuel Castells, por sua vez, tem insistido sistematicamente na idéia de que o Estado, hoje, precisa se estruturar em rede e compartilhar sua soberania se quiser continuar a cumprir uma função de relevo na vida das pessoas. Ou seja, precisa desistir da soberania absoluta e negociar sua soberania com outros Estados e outros entes.

Quando hoje pensamos em gestão, em qualquer área, mas especialmente na área social, não temos com fugir do efeito amplificado de todos estes processos e transformações. A gestão centralizada, duramente procedimental, hierarquizada e formalista não parece, por exemplo, aderir ao mundo atual. O universo da gestão está sendo invadido, e não de hoje, por outros critérios e valores: participação, descentralização, busca de resultados, novos modelos de organização. Na área social, não se faz muita coisa sem diálogo e sem apelos à participação dos cidadãos.

Isto tem no mínimo um desdobramento. É que não pode haver gestão participativa de fato se não houver investimento educacional, atenção dedicada à educação das pessoas. Todos se converteram em gestores, e não podem agir sem alguma qualificação adicional. Isto é assim sobretudo se imaginarmos um modo de vida essencialmente participativo, no qual todos se co-responsabilizam ou se envolvem com a tomada de decisões. A participação é uma forma democrática de controle. Quando se chama o cidadão para participar, ele está sendo responsabilizado pelo que se faz com os recursos da sociedade. E precisa estar qualificado para isso, de modo a agregar valor e potência à gestão.

Era esta a expectativa quando se inventou o orçamento participativo no Brasil. Por que ele surgiu no âmbito municipal? Porque o âmbito municipal é um âmbito mais frágil tecnicamente e, ao mesmo tempo, está mais “ao alcance da mão” e é mais rico em termos de proximidade e engajamento. Hoje, o orçamento participativo é praticamente uma palavra de ordem da gestão municipal no Brasil todo, não é mais bandeira exclusiva do PT. Trata-se de um experimento que já ultrapassou a fase da euforia e saiu de moda. Ingressou em uma etapa de avaliação crítica, até mesmo com o propósito de ser aperfeiçoado. Não é mais uma idéia que gere engajamentos coletivos ardorosos ou que sirva para eleger alguns candidatos. Houve até certo ponto um refluxo, forçado pelas próprias dificuldades da fórmula e pela dinâmica da vida contemporânea, que dispersa e sobrecarrega as pessoas de demandas, desafios e focos de interesse.

Para tentar sintetizar o argumento até aqui desenvolvido e sugerir alguma conclusão, creio ser possível dizer que estamos hoje sob impacto permanente de processos que são em si mesmos perturbadores.

O primeiro deles é a redução das margens de soberania, coordenação e controle. Isso tanto no âmbito do Estado Nacional, dos estados e dos municípios, quanto no âmbito das organizações em geral, da família à escola, da empresa ao sindicato de trabalhadores, das associações culturais aos partidos políticos.

O segundo processo prolonga o primeiro. Trata-se do decréscimo em termos de regulação. Hoje é muito difícil regular, no sentido rigoroso da palavra. Quando falamos em hegemonia do mercado, por exemplo, estamos falando disso. O mercado hoje está desregulado, escapa da regulação. Não escapa totalmente, mas o suficiente para dar o tom da vida atual, para ser hegemônico. Há como que uma espécie de desistência generalizada de regulação do mercado. Ele faz o que quer fazer com a vida das pessoas.

O terceiro processo é a desorganização dos pactos e acordos. Pactos e acordos são a base da vida em sociedade. Podem estar inscritos em constituições, como acontece nas sociedades modernas, ou podem ser vividos sem leis escritas. Seja como for, no mundo atual isso tudo está problematizado. Pactos existem, mas são fugazes e não vinculam de fato as pessoas em uma “comunidade de destino”, como se falava antes. O que se tem é uma espécie de entendimento de senso comum, que é um passo além do estado de natureza, é um estado civil em nível preliminar, que só é bom porque nós, pessoas, indivíduos, ricos, pobres, temos capacidades armazenadas. Sabemos falar, temos informação, sabemos até onde podemos ir. Mas não é muito simples, tanto que o mundo assiste à sucessão rápida e surpreende de coisas escabrosas e se mostra como que anestesiado diante delas.

O quarto processo pode ser associado ao profundo desgaste que se registra no plano da representação política. Por que isso ocorre? Trata-se de uma conseqüência do rebaixamento da qualidade dos políticos? Eles é que não valem nada? Será que tem a ver com a má qualidade do cidadão? Ou será que se trata de um defeito sistêmico? Sistemas e agentes formam um conjunto, e é difícil estabelecer qual dessas duas pontas tem maior poder de determinação. Porém, se aceitarmos a hipótese de que vivemos em uma época de “crise” mais abrangente, na qual a vida social no seu todo está a se transfigurar, então seria razoável admitir que o mal-estar que se nota nas relações entre pessoas (cidadãos) e sistemas (Estado) reflete uma imposição da realidade. Se tudo se “desorganiza”, por que o sistema representativo permaneceria intacto, por que deveria funcionar bem, sem máculas ou tropeços?

Estamos imersos em um processo de “desorganização” que opera de modo progressivo, atacando os centros nervosos e minando o organismo aos poucos, nos pontos estratégicos. Mas não se trata de um processo que caminha em mão única ou que seja exclusivamente destrutivo. Ao mesmo tempo em que arrasa ou inviabiliza certos núcleos vitais dos sistemas, também produz outros novos, recria aquilo que inviabiliza, força à revisão daquilo que deixa de funcionar. O organismo não está necessariamente fadado à morte, precisamente porque está se recompondo e assistindo ao surgimento de núcleos novos que o dinamizam de outra maneira.

Seja como for, a representação política está fraquejando. Persiste, hoje, pendurada por um fio muito tênue, o que ameaça inclusive a reprodução e o alargamento da própria vida democrática. O mau funcionamento das casas legislativas, por exemplo, tende a induzir as pessoas a pensar que sem políticos talvez as coisas melhorem, que o “custo” do Congresso Nacional é alto demais vis-à-vis os benefícios que produz, que seria possível cogitar de uma sociedade que funcione sem políticos, movida a empreendedorismo, mercado, concorrência. Não precisamos, evidentemente, admitir que esta idéia venha a se generalizar e a se converter em opinião pública ativa para reconhecer que o atual estado de coisas não é bom, especialmente quando se trata de pensar em um sistema que viabilize o processamento das demandas e dos interesses de sociedades complexas e dinâmicas, como é a nossa.

Se articularmos e combinarmos estes quatro processos, podemos encontrar alguma explicação para o fato de a gestão ter passado a adquirir grande relevância nos dias atuais. Sem gestores, a rigor, nada pode funcionar hoje, em nenhum plano ou dimensão que se queira, até mesmo na vida pessoal. Tudo se tornou complexo demais para ser simplesmente “vivido”. Estão aí os especialistas para atestar isso e para nos impor esquemas e soluções para problemas que eram, até então, equacionados e resolvidos segundo critérios de bom senso ou inteligência operacional.

O fato de a complexidade ser alta, no entanto, não significa que apenas os especialistas devam participar dela. Ao contrário, justamente pela complexidade ser alta, a gestão só pode ter êxito se ao lado dos especialistas estiverem massas expressivas de não-especialistas, conquistadas para a tarefa mesma da gestão. É por aí que avança a idéia de participação. Os interessados não precisam se envolver em conselhos ou assembléias deliberativas, podem fazer isso de várias outras maneiras. Conselhos e orçamentos participativos são formas fáceis de envolvimento, pois estão institucionalizados e conhecem alguma rotina. É um paradoxo, mas talvez seja por isso mesmo, ou seja, por estarem institucionalizados, que têm fôlego curto, que terminem, depois de certo tempo, por não conseguir mais manter o envolvimento dos interessados. Uma gestão de novo tipo, sintonizada com a vida atual, precisa ir além da participação.

 A complexidade produz essa exigência, e produz, por extensão, a exigência de um gestor de qualidade diferente. Um técnico, com certeza, no sentido de que não há como “fazer coisas” sem algum tipo de conhecimento operacional especializado. Mas também uma pessoa dotado de recursos críticos abrangentes, capaz de avaliar situações, desenhar alternativas, imaginar cenários futuros consistentes. Por fim, o gestor de que se necessita é alguém que possui, em doses elevadas, um estoque de recursos políticos, cívicos, com os quais seja possível incrementar e melhorar a convivência e a interação das pessoas.

Não é evidentemente fácil materializar essa perspectiva ou agregar pessoas capazes de reunir a razão operacional com a razão crítica e a razão política. Primeiro, porque sempre é difícil, ou seja, trata-se de uma tarefa difícil em si mesma. Segundo, porque o jogo social de hoje – a modernidade periférica radicalizada, a vida complexa em que nos encontramos – cria obstáculos adicionais complicados. Ao mesmo tempo em que exige coisas, a vida atual bloqueia o alcance destas coisas. Dificulta, por exemplo, mediante o desencadeamento espontâneo de múltiplas dinâmicas de fragmentação, de aceleração, de velocidade, de conectividade em tempo real – o que complica a assimilação dos tempos necessários para que se produzam determinados resultados, exponencia as demandas, separa e isola as pessoas, seduzindo-as pelas facilidades da vida virtual, e assim por diante.

A combinação cruzada dos processos típicos da modernidade periférica radicalizada problematiza toda tentativa de decidir e organizar mediante modelos e argumentos de autoridade. A saída é praticar democracia e pagar seu preço, sobretudo o preço do tempo, porque a democracia opera com tempos longos, não no curto prazo. Temos de aprender a equilibrar os diferentes desafios e exigências da vida atual e a compensar as falhas dos sistemas, tanto as dos sistemas administrativos quanto, especialmente, as dos sistemas políticos, que deveriam mas não conseguem organizar melhor o governo e a administração.

Mas a nossa é uma época de movimento e autonomia, e não há porque negar que esta seja uma época potencialmente virtuosa. Temos de aprender a lidar com solicitações e demandas de todo tipo – as exigências do trabalho, os apelos culturais, as seduções do entretenimento e do consumo – e por isso mesmo estamos aprendendo a negociar e dosar os nossos engajamentos. Não há muito mais espaço para que se atue como “soldado” de causas ou ordens superiores. Precisamos nos engajar consciente e criticamente, de modo ativo, não passivo. Pode ser difícil, mas é uma enorme vantagem.

A gestão está em nossas mãos, a mudança de qualidade depende de nós. Não é razoável pensar que virá uma proposta suficientemente diferente de gestão que altere todo esse quadro. Mas vivemos em ambientes que têm potência política armazenada e muita qualidade reflexiva, e podemos usar isso para alterar a situação.

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