Serviço Social e sua Problematização como Trabalho

Gilmaisa Macedo da Costa


Parabéns aos assistentes sociais. Hoje é um dia muito especial, dia do assistente social. Parabéns aos estudantes de Serviço Social, que escolheram essa área como seu objeto de estudo e como futuro campo de atuação. E parabéns, especialmente, ao grupo de pesquisa. Compreendo que os grupos de pesquisa têm um papel fundamental tendo em vista a produção de conhecimento. Agradeço especialmente à professora Sílvia pelo convite. A festa está muito bonita, o encontro muito bem organizado. Isso a que nós acabamos de assistir, e assistir a uma apresentação artística de nível é algo emocionante, neste caso, também muito divertida, deveria acontecer sempre antes de uma palestra dessa natureza, especialmente quando se vai falar do que eu vou falar, com um conteúdo denso. A arte é algo maravilhoso; eu penso que é esse o sonho humano, que todos cheguemos algum dia a um momento em que possamos colocar as máquinas para trabalhar para nós, e que possamos fazer, entre outras coisas, isso aí das formas mais diversas. Assim, teríamos uma humanidade escolhendo conscientemente ser humana, e a superação do trabalho, tal como se tem hoje. Eu penso que esse é o sonho da humanidade, e, quem sabe, um dia alcançaremos esse sonho. Quem tiver as vozes dessas duas meninas, terá então o privilégio de cantar. Estou falando disso para descontrair um pouco, e nesse clima de descontração lembro que hoje em dia, com a entrada da mulher no mercado de trabalho, aquela primeira canção que ouvimos, em que a mulher reclama do marido (“Abraça-me, abraça-me”) porque ele só trabalhava e ela só cuidava da casa e dos filhos, quem sabe isso se aplique bem mais aos homens na atualidade, que talvez estejam cantando a ausência da mulher e a necessidade desse afeto, o afeto hoje está reduzido a poucos espaços privados.

Solicitaram-me problematizar o Serviço Social como trabalho, um tema do debate atual no Serviço Social. Mas o professor Evaristo, aqui do meu lado, está pronto para ser o debatedor. Desde ontem que ele me disse que vai me estraçalhar, no bom sentido do debate, é claro. Mas o que traz uma professora obscura lá do interior do Brasil, de uma universidade pequena, para falar disso aqui, nesta bela cidade de Londrina? Vocês têm uma Universidade muito boa, estão bem preparados. Ontem eu fiz uma visita, e sei que aqui vocês fazem debates bastante interessantes e estão estudando temas importantes. É justamente a pesquisa que dá o rumo da interlocução entre os diversos temas e pesquisadores; nós não temos saída senão a pesquisa para dar rumo às nossas reflexões no interior do Serviço Social. No meu caso, são doze anos de pesquisa sobre o Ser Social, porque o meu objeto de pesquisa é mesmo o Ser Social em Lukács. Atualmente ando pensando o problema da individualidade.

Prosseguindo com o nosso tema “Serviço social e sua problematização como trabalho”, eu entendo que não dá para se compreender Serviço Social sem entender o ser social, o que ele é, o seu sentido ontológico preciso. Esse foi meu ponto de partida; foi por estar estudando o ser social que eu entrei no debate do Serviço Social como processo de trabalho. Esse não era o meu objeto original, não era o meu objeto inicial de pesquisa. Daquele momento até agora, muito já se avançou desde que o tema foi introduzido no debate profissional. Creio que o tema recebeu uma delimitação mais clara. Na Editora da UFAL temos inclusive um texto do professor Sérgio Lessa, que é uma pessoa autorizada a discutir sobre o ser social, porque vem refletindo sobre isso ao longo de anos de estudo. Tem até um texto dele que debate essas questões no Serviço Social.

Pediram-me para problematizar o Serviço Social como trabalho e para trazer fundamentos teóricos a respeito. Essa solicitação me foi feita quando a professora Sílvia me convidou. Eu vou dizer para vocês que, em geral, isso é dado em um curso, e não em um curso de vinte horas. O tema, como afirmei, é complexo. Portanto, eu vou pontuar apenas as questões centrais, sempre tendo claro que o debate avançou um pouco, mas algumas coisas permanecem centrais, do ponto de vista dos fundamentos.

Eu penso que o Serviço Social é uma profissão interessante, teoricamente instigante. Eu trabalhei anos como assistente social, e do ponto de vista prático ela é também desafiadora e instigante, com um cotidiano difícil. Mas do ponto de vista teórico ela nos impulsiona sempre a buscar respostas, e eu penso que talvez nenhuma outra profissão tenha se indagado tanto sobre aquilo que ela é, com relação à sua função na sociedade e o modo de operacionalizar a sua atuação. Certamente temos posições diferentes no interior da profissão. Seria um preconceito metafísico pensar que a consciência é igual em todos os indivíduos, e mesmo em grupo de pessoas voltadas a uma atividade social.  A função social para outras profissões parece estar definida naquilo que as pessoas fazem, e pronto, mas no Serviço Social, a categoria profissional, através dos seus agentes intelectuais, tem tentado ultrapassar essa parede do imediato para poder realmente compreendê-la. Na condição de professora da área, eu tenho me perguntado o porquê dessa indagação constante. Volta e meia o Serviço Social faz a indagação: o que é o Serviço Social? Na década de 80 nós refletimos o seguinte: agora temos de pensar os objetos da prática profissional. Quer dizer, tem um bocado de gente muito jovem aqui que em 80 estava engatinhando, mas quem não estava engatinhando, que é o meu caso, sabe que esse debate a partir da década de 80 era assim: chega do umbigo do Serviço Social, temos de sair dele, temos de buscar a explicação fora dele, ele não se explica por si só. Temos de pensar os objetos da prática profissional. E essa questão foi fundamental. Estava correta, precisávamos sair mesmo disso, só que volta e meia o tema retorna, e me parece que instigado pela realidade, instigado pelo momento histórico que a profissão está vivendo, pelos desafios que são postos a cada momento para o próprio Serviço Social. Eu penso que cada conjuntura acaba por requisitar novas respostas, e também a impor novas interrogações.

Minha aproximação ao tema “Trabalho e Serviço Social” foi muito impulsionada pela última revisão curricular proposta pelo MEC, e que a ABEPSS coordenou junto às escolas de Serviço Social brasileiras em debate com os assistentes sociais. Fui muito instigada por isso, porque, como eu já falei, eu tinha como objeto de estudo o ser social, e como conseqüência disso a sociabilidade capitalista. Eu me interessei por investigar o assunto, tomando a Ontologia de Lukács como referência, tentando compreender o que é o ser social, e nele, a própria inserção do Serviço Social na sociabilidade e sua identificação como complexo socioontológico.

Penso que com as transformações societárias, sob o impulso da crise capitalista, tão bem exposta ontem pela professora Sara Granemann, instaurada basicamente na década de 70, o debate sobre a centralidade do trabalho por parte das ciências sociais, as mudanças no Estado brasileiro e seus influxos sobre o Serviço Social foram catalisadores para a concepção do Serviço Social como processo de trabalho. Eu acho que essa reflexão não nasce da profissão mesma, não nasce da interioridade dela mesma. Posso estar enganada, mas é por isso que a categoria vai se voltar basicamente para o Serviço Social, e para entendê-lo e afirmá-lo como processo de trabalho.

É o que está no debate, o que está posto nas ciências sociais, a interrogação sobre o que acontece no mundo que impulsiona o processo. Que crise é essa? Que mudanças são essas que estão configuradas no Estado e na vida societária? Que resposta está sendo requisitada? E aí a própria revisão curricular vai entrar nesse processo, atualizar a proposta de formação, muito impulsionada por essas questões que estavam nas ciências sociais. A aproximação do Serviço Social com as ciências sociais, desde um tempo em que isso vem acontecendo, conduziu o Serviço Social a um intenso debate, a uma intensa reflexão teórica sobre a vida social e sobre si mesmo, que propiciou um leque de investigações em vários campos.

Vou tentar expor de modo sintético e didático algumas diferenciações que existiam nas próprias indagações a respeito do que estava acontecendo com a classe operária naquele momento, a condição de assalariado, o desemprego, as transformações societárias.  No interior das ciências sociais havia indagações sobre o destino do proletariado, pelo menos em três dimensões. Uma dimensão, política, indagava se seria correto afirmar que o proletariado é classe revolucionária ainda hoje. Há um texto clássico do André Gorz, “Adeus ao Proletariado”, que no Brasil dá início a um contraponto do Ricardo Antunes com “Adeus ao Trabalho?”, este último muito influente no Serviço Social. Sob um outro ponto de vista há o Rifkin dizendo que a era dos empregos chegou ao fim e que as alternativas de saída estariam na criação de programas de primeiro emprego, no campo dos serviços comunitários etc. Há o Castel, com uma outra tendência entendendo que o fim dos empregos cria um conjunto de desfiliados, configurando-se uma nova questão social. Está posta em debate a própria existência de uma classe trabalhadora e da centralidade do trabalho no mundo contemporâneo.

Uma indagação que vai acontecer até no interior da esquerda, do pensamento de esquerda, é: Pode-se afirmar que o proletário é a classe revolucionária ainda hoje? Essa questão se põe muito fortemente impulsionada pela diversificação das atividades sociais e pelo desemprego. Havia outra indagação, de natureza mais ontológica, ali internalizada: com as mudanças nos processos produtivos, ocorre mutação na essência das classes sociais? Essa é outra tendência de interpretação dos problemas que estavam acontecendo naquele momento e das mudanças societárias. E uma terceira, mais precisamente sociológica: O emprego foi alguma vez, ou é ainda hoje, definidor das identidades sociais? Mas isso era muito ambíguo, havia muita mistura. Havia uma grande ambigüidade na articulação dessas próprias indagações, misturando-se, às vezes, as indagações políticas com a sociológica, com a ontológica, e confundindo a centralidade do trabalho. Por isso mesmo, eu penso, a investigação do trabalho, em sua essência ontológica, tornou-se necessária. Era preciso que as pessoas fossem aos clássicos. Era a retomada dos clássicos, a retomada de Marx, a retomada de autores importantes. Ela foi necessária por causa de todas as ambigüidades. Numa hora as relações de trabalho passaram a ser chamadas de mundo do trabalho. As próprias relações sociais, as próprias relações de trabalho, sendo denominadas de mundo do trabalho, levavam a pensar o mundo da indústria, o mundo empresarial. Noutra hora a diversificação dos trabalhadores, o desemprego e novas configurações profissionais. Algumas imprecisões, eu diria até conceituais, confundiam muito o problema e se refletiram no Serviço Social.

O Serviço Social

Na aproximação com o marxismo, discutia-se desde a década de 80 que o Serviço Social era uma profissão derivada da divisão social e técnica do trabalho. Todos nós sabemos disso. Iamamoto pôs isso com muita clareza, entendendo o Serviço Social a partir da totalidade social e associando as origens do Serviço Social brasileiro à questão social. Posteriormente, José Paulo Netto aprofundou, relacionando-o ao capitalismo monopolista e às novas funções do Estado.

Argüia-se: o que é o Serviço Social? Profissão derivada da divisão socio-técnica do trabalho, constituída na fase clássica do capitalismo monopolista. Dizia-se também que ela tinha como base de sua constituição, e como objeto de sua ação, a questão social. Que no desenvolvimento de suas atividades operacionalizava políticas e programas sociais como resposta do Estado às refrações da questão social expressas nas desigualdades resultantes das contradições das relações entre capital e trabalho. Essa interpretação veio dar alguma segurança, até para entender o próprio Serviço Social e qual o seu campo de atuação. Significa que havia uma relação entre Serviço Social e questão social, que havia uma relação entre Serviço Social e políticas sociais do Estado, que o Serviço Social era uma profissão e como tal uma atividade assalariada e como tal superava a idéia de um Serviço Social exercido fora da instituição.

Na condição de professora da área de fundamentos, eu sempre fui obrigada a pesquisar sobre as tendências de explicação do Serviço Social. Quem ensina o campo de fundamentos, sabe que se depara constantemente com esse problema, se depara o tempo todo, quer dizer, nós temos essa tarefa de ensinar para os nossos alunos não só a vida social, não só a sociedade em que vivemos, não só com quem o Serviço Social trabalha, quem são essas pessoas, quem são esses usuários, a que classe eles pertencem, que serviços buscam, que direitos têm a eles, quais são suas necessidades, mas nós temos de dar respostas com relação ao que é o Serviço Social, qual a função que ela exerce nessa sociedade. E nós nos deparamos com muitas incongruências, muitos problemas nesse campo. Quem é pesquisador, quem ensina a área de fundamentos, sofre demais, porque não é uma coisa muito fácil de ser realizada. Às vezes, as produções não dão conta logo de primeira; é processual, isso. O crescimento do Serviço Social no campo intelectual é uma coisa evidente. Hoje, a interlocução que se faz com outras áreas das ciências sociais chega ao ponto de o Serviço Social discutir e pesquisar questões tão importantes, que ultrapassam, às vezes, o nível de produção daquelas áreas que se ocupam especificamente disso. O Serviço Social, efetivamente, cresceu na interlocução com as ciências sociais, e isso é processual, isso é histórico, mas não significa que o conhecimento está pronto e acabado. Toda vez que se termina uma produção intelectual, ela é ponto de partida para ser novamente questionada e aprofundada. Toda vez que se produz alguma coisa, deve estar preparada para o debate, porque ciência se faz com investigação e com debate.

Na condição de professora da área de fundamentos, eu sempre fui obrigada a ter de pesquisar essas questões, a ter de ir ao problema do Serviço Social. Hoje mesmo eu estava conversando com o pessoal, que eu sinto falta disso. O que aconteceu ante as ambigüidades e os problemas que existem nesse campo? As pessoas, na tentativa de se dedicarem à investigação dos objetos da prática profissional, os objetos da vida social, fugiram do Serviço Social, parecendo que tudo estava resolvido. Alguns pensam como economistas, outros pensam como cientistas políticos, outros pensam o campo dos direitos mesmo, outros como filósofos e, de certo modo, abandonou-se o campo do Serviço Social. Quando eu digo “pensam” estou falando que, por mais que a gente se dedique ao estudo dessas áreas do saber, é sempre um assistente social tratando dessas questões, é um assistente social tratando de temas que interessam à área do Serviço Social. Quanto àquele questionamento de que não podemos ficar no umbigo do Serviço Social é verdadeiro, porque ele efetivamente só é explicável no contexto da totalidade social e não endogenamente, eu concordo com isso, mas vejo que essa área do significado, essência e função do Serviço Social, ficou meio que residual. Quando uma pessoa produz nessa área, acaba virando verdade, e então mais pessoas não irão se ocupar em pesquisar, investigar, aprofundar e debater, quando na realidade é essa a nossa tarefa para que o conhecimento possa avançar. O conhecimento do Serviço Social é válido não no sentido de voltar-se para si mesmo, mas porque no contexto da totalidade pode constituir avanços na explicação do real, trata-se de um momento desse real. Talvez aí esteja uma contribuição significativa da nossa área para as ciências sociais.

Sempre considerei a concepção de Serviço Social como profissão surgida a partir da divisão do trabalho bastante sustentável, tendo em vista que as profissões nascem da divisão social do trabalho. É esse o eixo gerador das profissões: toda profissão nasce da divisão do trabalho. Quando elas se tornam meio de vida das pessoas, é aqui que está o campo específico. Então essa coisa se sustenta. Quando isso vira meio de vida para um grupo de pessoas, na verdade, nós temos aí uma profissão, constituída como meio de vida para um determinado grupo que exerce uma determinada função social. O conhecimento sobre o Serviço Social e o contexto histórico do seu aparecimento, também dava conta do problema de defini-lo como profissão, de adquirir o status de assalariada com funções na operacionalização de políticas sociais do Estado ou privadas.

Mas penso que definir o Serviço Social como profissão surgida da divisão do trabalho foi importantíssimo e esclarecedor, porém insuficiente. Eu disse a vocês que eu sou uma pesquisadora, que eu estou sempre querendo mais alguma coisa, e isso não é de hoje, nem é porque eu virei professora da Universidade, nem porque eu virei pesquisadora. É muito antigo isso na minha vida. Eu sempre achei que isso explicava, mas que era insuficiente. Dizer que Serviço Social é profissão é verdadeiro, mas é insuficiente; não me diz do que é o Serviço Social. Se toda profissão nasce da divisão do trabalho, esse é o fato gerador de profissões, acaba sendo o muito que, na verdade, não diz nada, e, principalmente, não responde a uma questão essencial. Definir Serviço Social como profissão dá conta de explicar sua essência? E mais, qual a relação do Serviço Social com a questão social? Do que estamos falando? Da dimensão política dos conflitos de classe? Onde se encontra a base material dessa relação com a questão social para explicar a inserção do Serviço Social, já que tínhamos negado a relação com a assistência à pobreza? Era uma relação direta com os conflitos de classe?

Vocês sabem do que eu estou falando. Se estamos diante dos conflitos de classe, através de que meios acontece essa relação? O que articulava o Serviço Social à própria questão social? Essas indagações estavam sendo bastante investigadas. Jose Paulo Netto pôs o problema em pauta e o articulou às refrações da questão social, o abandono de crianças, as condições de vida de desempregados, a falta de moradia, de saúde etc., e às respostas do Estado, mas a própria definição do que é questão social nessa relação com o Serviço Social não estava muito clara ainda para o conjunto da categoria profissional. Há um texto aí que vai às bases materiais e humanas da questão social, e eu acho que é um texto que avança bastante no sentido de superar o caráter meramente político da questão social. Ontem a professora Sara fez essa conexão de uma forma bastante lúcida, de modo que nós já avançamos um pouco nisso aí, já avançamos bastante na tentativa de superar a concepção liberal de questão social.

Pois bem, nem sequer essas indagações foram claramente debatidas, ou aprofundadas; agora acontece uma inflexão, o serviço passa a ser compreendido como o próprio trabalho. A prática profissional como processo de trabalho, e, como tal, portadora de um objeto de matéria-prima de produtos que certamente vão requerer instrumentos, meios etc., algo próximo a dizer que, na condição de assalariada, a força de trabalho dos assistentes sociais e seu processo seriam compostos por elementos simples, com um fim a atingir, com objetivos e meios. Ou seja, que na condição de assalariada a força de trabalho dos assistentes sociais seria o próprio trabalho, tendo em vista que teria valor de uso para o capitalista. Isso está muito claro no próprio projeto elaborado pela categoria profissional, que está publicado e que, suponho, todo mundo conhece.

Porém, há um problema quando se faz esse tipo de afirmativa. Lá em O Capital, e aí é preciso procurar os fundamentos mesmo, no capítulo V, Marx diz: “A utilização da força de trabalho é o próprio trabalho, os elementos simples do processo de trabalho são as atividades orientadas a um fim, ou o trabalho mesmo, seus objeto e seus meios”. Mas Marx diz também: “O trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”. Ele diz mais: “o processo de trabalho, como apresentamos em seus elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza, condição natural eterna da vida humana, e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais”. Se isso é verdadeiro lá no nosso velho Marx, a concepção de Serviço Social como o próprio trabalho, conseqüentemente, portador de elementos simples que configuram o próprio trabalho, fica difícil de ser demonstrada. Há outras questões quando se avança no estudo de O Capital que requerem debate, mas não vou tratar delas aqui.

Essa concepção do Serviço Social como processo de trabalho passou para as grades curriculares com aspectos negativos e positivos. Negativos porque a gente vê disciplinas que tentam descobrir o objeto, a matéria-prima do Serviço Social, o produto do trabalho profissional, em dimensões da vida social que nada têm que ver com a objetividade material mesma, com a apropriação do natural, como falou Marx, ou se relacionam a ela muito mediadamente e muito indiretamente. Ou seja, fica difícil construir os elementos simples do processo do Serviço Social como processo de trabalho, sem as devidas mediações e sem a devida clareza de sua função no processo social. Eu penso que esse é um problema decisivo. Não é simples, nem é simplesmente a crítica a alguém ou a alguma produção; é ir a fundo na investigação do problema.  Quando essa concepção chega à sala de aula, ela é problema para os professores que estão ensinando, porque nos debatemos com ela.

Mas não traz apenas aspectos negativos. Os aspetos positivos são no sentido de que o tema traz problemas novos a serem estudados, que impõem pesquisa de alto nível. Para responder a isso não basta reunir informações sobre o imediato. Eu não afirmo que não é importante, mas não basta reunir um conjunto de dados que dizem que em uma empresa tal, em seu processo de reestruturação produtiva, o Serviço Social faz isso e aquilo, que é uma reformulação no espaço socio-ocupacional dos assistentes sociais etc. Se essas reflexões são importantes, não bastam para explicar que o Serviço Social é trabalho. Quando se trata de afirmar que o Serviço Social é o próprio trabalho, a coisa pega, porque, no meu entendimento, é preciso ir às questões fundamentais do trabalho para uma aproximação mais precisa ao problema.

Ir a fundo nesse problema do trabalho, no meu entender, é ir aos fundamentos ontológicos do ser social. E ir a esses fundamentos é seguir na contracorrente das tendências sociais, que cada vez mais acentuam o corte com os fundamentos do que é o ser social, que cada vez mais reforçam o estudo de questões aparentes e imediatas, e as tomam como critérios de verdade, que cada vez mais tendem a identificar toda atividade assalariada com o trabalho e cada vez mais tendem a estabelecer uma identificação imediata entre trabalho e emprego; que não apenas assumem a identidade entre trabalho e trabalho abstrato, como também cancelam irrevogavelmente o trabalho como categoria fundante do ser social, e disso o Serviço Social não tem culpa particularmente. Isso está na apreensão da vida social, isso está no debate das ciências sociais e em seus influxos para explicar as mudanças contemporâneas.

Onde é que está a nossa tarefa? Investigar, pesquisar, compreender o real como o real efetivamente é, e não como aquilo que a gente gostaria que fosse. Não há problema nenhum em se falar em trabalho do assistente social, não se trata disso; trata-se de ir aos fundamentos que justificam tal concepção. Dizer que o Serviço Social não é trabalho também não desqualifica em nada a atividade profissional, mas é necessário demonstra-lo.

Penso que nesse âmbito teórico de fundo é preciso delimitar dois aspectos relacionados ao trabalho, se quisermos equacionar essa aproximação com o Serviço Social. O primeiro problema diz respeito ao caráter ontológico mais decisivo, do ponto de vista dessa categoria do trabalho, como momento central da atividade humana. Nesse sentido, a aproximação com o pensamento de Lukács é importante, especialmente, porque esclarece a posição do trabalho na perspectiva da universalidade da história humana. Ele diz que existe um gênero humano em processo de constituição, uma constituição inacabada, porque o homem viveu até hoje apenas a pré-história da humanidade, tal como Marx entendeu, e que o capitalismo não é o fim da história, mas um momento particular do processo de desenvolvimento humano genérico. Se temos um processo de humanização um gênero humano em processo, em constituição, a partir do trabalho, temos no capitalismo um momento particular desse processo do desenvolvimento humano. E isso vai contra a tendência daquelas posturas que entendem ser o capitalismo o fim da história, que a história humana acaba aqui, pois atingiu sua finalidade. Teríamos agora, apenas, de lutar para melhorar esse capitalismo, porque daqui não se vai para lugar nenhum, até porque as experiências socialistas que foram vivenciadas constituíram-se num fracasso.

O pensamento de Lukács, repetimos, segue na contratendência dessa apreensão, apontando para a gênese da humanidade, no sentido mais universal possível. O trabalho é o momento, exclusivamente humano, que caracteriza a passagem, o salto ontológico, de uma particular espécie existente na natureza para um novo ser, o ser social. É a partir do trabalho que o homem inicia o seu processo de humanização, de constituição enquanto gênero humano. Trata-se da interação entre homem e natureza, quando o homem, a sociedade, interage com a natureza para produzir e reproduzir sua existência. O único pressuposto para a existência humana é que os homens precisam produzir para sobreviver, mas, além disso, que o trabalho dá origem a um novo gênero humano, inicialmente um gênero ainda não explicitado inteiramente, mas dotado de uma consciência antes inexistente na natureza, de uma consciência que estabelece uma finalidade em resposta as suas necessidades. Isso foi um processo que levou milênios para acontecer. Isso representou um salto ontológico para o ser social.

Em suma, como diz Lukács, “o homem é um ser que responde”, transformando suas necessidades em respostas objetivamente existentes a partir do trabalho. Esse é o sentido estrito, exato, preciso, do trabalho. Uma interação entre homem e natureza que reorganiza a objetividade natural em formas inteiramente novas, para satisfazer as necessidades, ou seja, produz objetividades com valor de uso para os homens. Além disso, o trabalho real efetivo, ontologicamente compreendido, só existe no processo de reprodução. Não há trabalho sem reprodução. Não existe o trabalho como categoria puramente abstrata, solta, individualizada, fora do processo de reprodução. O trabalho só adquire sentido real no processo de reprodução. É no processo de reprodução que ele ganha existência e, efetivamente, produz coisas novas. E esse processo desenvolve nos homens novas habilidades e novas capacidades, de modo que tanto os objetos criados pelo homem são permanentemente recriados, servindo de base a novos produtos, quanto as individualidades aí constituídas tornam-se crescentemente mais ricas e mais desenvolvidas. Nas palavras do próprio Lukács: “O trabalho é capaz de suscitar no homem novas capacidades e novas necessidades, as conseqüências do trabalho vão além do quanto nele é imediata e conscientemente posto, faz nascer novas necessidades e novas capacidades de satisfazê-las, e enfim – no âmbito das possibilidades objetivas de qualquer formação determinada – na ‘natureza humana’ esse conhecimento não encontra limites traçados a priori”.

É com o processo de trabalho que passamos a nos constituir como seres humanos para criar a sociabilidade e a nos criarmos como seres humanos, como pessoas, como indivíduos. Sua dinâmica conduz, necessariamente, à conexão real entre gênero humano, inicialmente ainda um gênero mudo, e o indivíduo, impulsionada originalmente pela capacidade do trabalho de remeter para além de si próprio, de tornar social todo ato singular. O trabalho, assim compreendido, é criador da humanidade. É diferente do trabalho abstrato, indiferenciado, carente de qualquer determinação. No capitalismo, a força de trabalho, transformada em mercadoria com valor de troca, é trabalho para o capital. Não há identidade entre trabalho em seu sentido preciso e trabalho abstrato.

A generidade do homem está organicamente vinculada a sua existência como membro de uma sociedade. Através dessa relação orgânica ocorre uma superação histórico-social do gênero mudo. Da mesma forma, no processo histórico, pertencer ao gênero faz do ser humano, mediante a consciência de sua prática, não mais simplesmente um mero exemplar singular, mas uma autêntica individualidade. O processo social é constituição da sociabilidade e ao mesmo tempo somos nós nos tornando cada vez mais em individualidades. Cada vez mais complexas ficam as nossas individualidades, cada vez mais nós nos constituímos indivíduos. E não está se falando aqui do indivíduo egoísta, da individualização egoísta, mas da constituição de singularidades altamente complexas.  Nós somos, hoje, altamente complexos em relação aos homens do passado. Muito mais complexos como individualidades, como seres humanos singulares, e também como sociabilidades, como sociedades complexas.

O trabalho, pelo seu caráter de ato consciente, é o momento predominante na constituição da sociabilidade, impulsionando ao desenvolvimento das forças produtivas e da individuação humana, mediante o afastamento das barreiras naturais, que Lukács busca em Marx para falar de um processo social, que ocorre por dois caminhos: o desenvolvimento das forças produtivas, e a constituição das individualidades humanas. É um processo de sociabilidade e de individuação que se dá a partir do trabalho, mediante o afastamento das barreiras naturais. Nós nos tornamos cada vez menos animais, e cada vez mais sociais, ainda que hoje sejamos individualidades lamentáveis. Não estou falando de nós indivíduos, singularmente, mas das individualidades sociais médias, pessoas matando seus filhos, abandonando seus velhos, violentando, são individualidades lamentáveis. E isso porque esse homem só se constrói enquanto indivíduo nessa conexão com a sociedade na qual ele está vivendo e agindo.

Essa sociedade é ruim, eu estou pondo um juízo de valor conscientemente, ou seja, no sentido de que ela não permite que as individualidades cresçam no mesmo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Basta ver que as forças produtivas, hoje, são tão extraordinárias, capazes de produzir três mil vezes mais alimentos do que seria necessário à humanidade, entretanto se tem aí uma suposta crise de alimentos, e pessoas no mundo morrendo literalmente de fome, porque a produção é dirigida aos interesses do capital e não da humanidade. E se tem os indivíduos reduzidos à média daquilo que a sociabilidade capitalista nos impõe. Nós não conseguimos ir além da mera particularidade capitalista; só conseguimos nos constituir como pessoas no nível médio dessa sociabilidade. Alguns indivíduos, muito especiais, conseguem ir além dessa sociabilidade, no plano da consciência, mas não o conjunto da sociedade.

Essa concepção de trabalho, como momento central da sociabilidade humana na interação com a natureza, é muito próxima daquilo que está em Marx, no capítulo V de O Capital, quando ele fala do trabalho enquanto eterna necessidade humana. E isso traz algo importante, porque além de Lukács identificar que Marx foi o primeiro pensador a equacionar precisamente a teleologia, o ato de consciência que põe finalidade, como um momento do trabalho, da vida social, portanto, um momento exclusivo do homem, também indica que nesta obra de Marx a base ontológica da troca orgânica com a natureza delineia o caráter essencial do trabalho e de sua função no mundo dos homens.

Mas o debate hoje tende a afirmar que o trabalho não é troca orgânica com a natureza, que o trabalho não é a apropriação do natural, que o trabalho hoje é imaterial etc. A tendência também é homogeneizar toda atividade humana como trabalho. Eu vi aqui pessoas, e às vezes se fazem simplificações ao dar exemplos, mas quando eu estava saindo encontrei um pedreiro consertando uma parede, quando eu entrei aqui encontrei três jovens fazendo aquela exposição musical. São, talvez, duas expressões de atividade assalariada, mas a função daquele pedreiro é a mesma dos jovens artistas? E, no entanto, as pessoas homogeneízam tudo, vira tudo uma coisa só. Não se faz diferença entre arte, trabalho e política, por exemplo, ou entre as funções do médico, do advogado, do assistente social, do político, do trabalhador fabril, do comerciário, do pedreiro. Com isso perde-se também o sentido das diferenças de classe e de função social.

Não temos, simplesmente, como associar Serviço Social com isso aí, com o trabalho nesse sentido, e eu penso que ninguém faz isso conscientemente. Eu penso que ninguém pretende dizer que o Serviço Social funda a sociedade.  Eu posso dizer, a partir daí, que Serviço Social é trabalho? Efetivamente, não. O Serviço Social não pode ser entendido como trabalho nesse sentido preciso, estrito, da troca orgânica com a natureza, e de ato fundante do ser social, especialmente se levarmos em consideração a complexidade do processo de produção na atualidade e a complexidade dos problemas na sua apreensão. Por isso eu penso que aquela concepção de Serviço Social põe novos problemas que precisam ser aprofundados.

O segundo aspecto que eu quero ressaltar nessa questão do trabalho enquanto atividade fundante é que o trabalho é o modelo de toda prática social, de toda prática humana. Talvez por isso o pessoal consiga associar aquela questão de objetos, meios e fins, porque o trabalho, de fato, é modelo de toda prática social, mas ele é o chamado pôr teleológico primário, e dele deriva um outro pôr teleológico, o secundário. Neste último operam posições que em vez de estarem dirigidas à objetividade material, natural, têm por finalidade as relações entre os homens. Desse modo, Lukács entende que a totalidade humana é composta por essas posições teleológicas. Isso não significa que existam completamente independentes umas das outras, mas também nos diz que a totalidade social não pode ser reduzida ao trabalho.

Se reduzirmos tudo ao trabalho, o trabalho simplesmente não existe. Se tudo é trabalho, o trabalho não existe. Esse é um problema de fundo. Eu estou tentando fazer uma aproximação para ver se essas coisas se tornam um pouco mais leves, mais claras, para serem compreendidas. Mas, nem para Marx, nem para Lukács, pode-se reduzir a totalidade social ao trabalho. A totalidade social é um complexo de complexos, e todo complexo só pode existir em relação a outro se ambos forem diferentes. Eu só posso existir em relação a você porque eu sou diferente de você. Tudo que existe no social é ser e é um complexo, é um conjunto de relações que está em completa interação. Um complexo só existe em relação a outro. Se eu reduzir tudo a uma coisa só, os singulares, os particulares, os individuais deixam de existir porque são carentes de determinação. Se reduzirmos tudo ao trabalho, o trabalho simplesmente não existe, do mesmo modo que se afirmarmos que todas as funções realizadas por todos os trabalhadores são trabalho, no preciso sentido de que todos produzem igualmente a riqueza material, simplesmente eliminamos toda distinção de classe que possa existir entre eles.

Trabalho é atividade fundante, ou seja, o pôr teleológico primário a partir do qual se desdobra o desenvolvimento humano, mas não é o único tipo de ato realizado pelos homens.  Os homens estabelecem relações com a natureza e uns com os outros no seu processo de produção, de tal modo que existe um outro tipo de pôr teleológico, chamado secundário, porque derivado do trabalho, básico na constituição de outros complexos sociais, e que no desenvolvimento social adquire uma relativa autonomia. Por exemplo, se pensarmos no direito, que surgiu derivado da divisão do trabalho, em conseqüência do próprio processo de desenvolvimento das forças produtivas. O direito se constitui como resposta aos problemas que se põem socialmente. Em determinado momento da história humana não era possível levar adiante o próprio desenvolvimento do processo produtivo se não houvesse a constituição do direito, mas se trata de uma posição derivada do trabalho, com uma função diferente do trabalho e uma posição distinta do trabalho, tendo adquirido na estrutura social uma relativa autonomia. Observa-se a luta o tempo todo entre o campo da política, o campo do direito, o campo da produção, porque entre eles há uma relativa autonomia, embora sejam todos derivados da mesma base estrutural, econômica.

Essas posições teleológicas secundárias são complexos sociais que não têm como fim agir sobre a objetividade material real, natural, ou mesmo aquelas objetividades já produzidas pelos homens como matéria-prima, mas agir sobre os próprios homens, sobre suas consciências, para pôr em movimento posições teleológicas desses mesmos homens, seja no sentido de conservar, seja no sentido de transformar a realidade existente. Esses dois tipos de ações estão presentes nos processos produtivos e também em outras instâncias da vida social, configurando aquela superestrutura ideal, que emerge da base material, no sentido posto por Marx. Atos dessa natureza, em vez de porem em movimento os nexos ontológicos da objetividade material para responder às necessidades dos homens, induzem os homens a agir conforme uma finalidade desejada, pondo em movimento outras posições teleológicas.

Se quisermos fazer com que as pessoas ajam, vamos pensar na educação, nos processos educativos; se quisermos que um aluno passe a estudar, devemos mostrar o problema do conhecimento para ele, bem como a necessidade que ele tem de fazer isso. Mas eu tenho de pôr em movimento a consciência daquele aluno para que ele execute outras posições teleológicas. No campo da política é assim também. Conduzir as pessoas a agirem conforme determinada finalidade é uma posição teleológica secundária que põe em movimento os atos de outras pessoas. E então elas só agem de acordo com a consciência delas, se elas quiserem e decidirem agir, escolhas realizadas sempre em circunstâncias determinadas socialmente. O processo de aprendizado só se dá se o aluno quiser e diante das condições objetivas existentes. O movimento dos trabalhadores só se dá se as outras pessoas envolvidas quiserem pôr em movimento aquelas ações, senão a coordenação daquele processo político que põe a posição inicial fica lá falando sozinha. É disso que Lukács está falando: a relação entre os homens é composta de posições distintas do trabalho, ainda que derivadas dele, porque o objeto sobre o qual incide a ação do sujeito é diferente da simples materialidade.

Nesse campo se encontram complexos sociais, que são momentos efetivamente existentes na vida social, como o direito e a política, a filosofia e a arte. Nós vimos um exemplo hoje aqui, aqueles atos realizados eram sobre a consciência, o que eles provocavam em nós, emoções, o prazer de ouvir algo inteiramente humano e de nível elevado. Isso quer dizer que a função do trabalho na ação sobre a materialidade é distinta de outras funções sociais que agem no estabelecimento das relações entre os homens. E penso que, muito provavelmente, o Serviço Social se enquadra nesse campo das posições secundárias. Isso é uma interpretação minha. Creio que não precisamos ir muito longe. A aproximação com a gênese do Serviço Social, seguida do momento em que se dá a apropriação da força de trabalho dessa parcela de pessoas, que faz da prestação de serviços sociais um meio de vida, tornando-se assalariadas, é instrutiva no sentido de ver que sua função está vinculada às relações entre os homens, ou seja, que o Serviço Social, enquanto um complexo pertencente à materialidade do ser social, contribui para a reprodução material e espiritual da força de trabalho, bem como dos contingentes populacionais que se encontram fora dos espaços da produção propriamente dita.

Se formos verificar o momento da constituição da gênese do Serviço Social, veremos quais eram as ações que estavam sendo propostas, e isso ocorreu, se José Paulo Netto estiver certo, na fase clássica do capitalismo monopolista. Sua institucionalidade aconteceu nos Estados Unidos, embora todo o processo de gênese se constitua desde a Europa. É lá nos Estados Unidos que ocorrerá efetivamente a institucionalização e a regulação, digamos, acadêmica do próprio Serviço Social, e que acaba por se disseminar no processo de expansão capitalista. Se formos verificar essas ações, como elas eram realizadas, com que finalidade, e ao que elas estavam vinculadas, veremos que constituem posições secundárias.

Naquele primeiro momento do desenvolvimento do capitalismo monopolista, além de promover a renda do trabalhador, convinha ao sistema estimular o consumo de massa e uso do dinheiro de forma prudente. Assim, o problema da adaptação social e psicológica dos trabalhadores aos novos tempos não era simplesmente uma questão cultural, mas um requisito para o equilíbrio social que impunha uma atuação em termos sociopedagógicos. Aquilo que foi denominado de dimensão educativa da prática profissional. Tornava-se necessário formar um trabalhador dócil, com vistas à garantia da alta produtividade. A mão-de-obra americana, levando-se em conta a particularidade, era difícil e não se adaptava tranquilamente ao modelo de produção e controle do trabalho, de modo que os mais adaptáveis eram os imigrantes, e estes enfrentavam problemas de ordens diversas. Reações às relações de classes existentes no mundo eram intensas. A consciência dos homens em relação aos mecanismos de exploração alcançara franco desenvolvimento desde o século XIX e não favorecia sistemas apoiados em uma rotina de trabalho na qual o trabalhador constituía mero apêndice da máquina, descartando a especialização e a habilidade tradicional.

Essa função de controle e adaptação coube a outros assalariados, entre os quais os assistentes sociais, e não ao que chamamos de classe trabalhadora, operária, no preciso sentido do termo, mas ao assalariamento de outras categorias profissionais que pudessem cumprir aquelas funções. Uma observação mais cuidadosa dos elementos presentes na prática e nas idéias reinantes no interior das atividades dos assistentes sociais daquele momento, formados ainda sob a prerrogativa da Igreja, mostra que, aliada à assistência material, havia dimensões preventivas, socializadoras, psicologizantes e moralizadoras ante os indivíduos e os grupos de risco, como mães solteiras, trabalhadores, desempregados, imigrantes, famílias em crise. Se nós fizermos alguma aproximação com os dias atuais, será que é muito diferente? Quando muito está voltada à luta por serviços e direitos sociais. Atividades que, em geral, ficam ora sob a responsabilidade do Estado, ora sob a responsabilidade de organizações sociais, e se distribuem por diversos espaços socioocupacionais. Até mesmo no campo da indústria trata-se de um tipo de prática heterogênea em relação ao trabalho operário, da qual não resulta um produto, mas processos educativos e de controle sobre os comportamentos de outros trabalhadores com a finalidade de assegurar o bom desempenho da empresa. A sofisticação das empresas modernas inclui, aliada ao policiamento à expansão dos serviços sociais e outras atividades do gênero, a contenção do caráter antagônico das relações de produção, próximo talvez do trabalho improdutivo que, se participa, não produz mais-valia para o capital.

Não cabe discutir aqui, em profundidade, a aproximação do Serviço Social com o trabalho abstrato e suas subcategorias de produtivo e improdutivo, mas o que eu quero dizer, para concluir, é que sob o ângulo do que eu estou defendendo, com apoio em Marx e Lukács, não é possível diluir a classe operária no conjunto dos assalariados, de modo que permanece a distinção ontológica entre o intercâmbio orgânico da natureza com as outras atividades, que até podem gerar mais-valia, mas não produzem o conteúdo material da riqueza social. No capitalismo desenvolvido, nem toda produção do valor para o capital resulta da troca orgânica com a natureza. Penso que isso é decisivo se quisermos entender o problema.  Entretanto, todo conteúdo material da riqueza capitalista é produzido na esfera da produção, e isso vai, às vezes, de encontro a muitas tendências que pensam diferentemente. Ao contrário de tais tendências, Mezários diz que “quanto mais nos aproximamos dos estágios mais desenvolvidos do capitalismo avançado, mais pronunciada é a mudança na direção das constituintes não produtivas e parasitárias que compõem a estrutura de comando do capital, como capital das indústrias, ou como guardiões políticos do Estado burguês. Esses podem se elevar ao status de criadores da riqueza e se apropriam de uma porção do produto social para a qual não contribuem com nenhuma substância”. Isso diz respeito aos falsos custos de produção, que são vitais ao processo de reprodução capitalista, configurando o trabalho improdutivo nas funções de controle, administração, especialistas em relações sindicais, agentes publicitários, políticos etc. A forma mais extrema é a financeirização, aquilo de que a professora Sara estava falando ontem, com seu caráter especulativo global.

Penso que as mudanças no interior dos processos produtivos não eliminaram os caracteres essenciais das classes sociais, ainda que tenham propiciado sua diversificação. Além de sua diversificação acentuada e da expansão do contingente assalariado, que sobrevive de atividades dessa natureza, ocorre sua ampliação quantitativa; aliás, é essa característica de diversificação, associada à redução do operariado, que tem sido freqüentemente entendida por vários autores como o fim do trabalho, com a diluição das especifidades ontológicas das múltiplas atividades sociais.

Enfim, entendo que a expansão do espaço socioocupacional do Serviço Social também não significou modificação de sua função essencial, como posição teleológica secundária, porque aquilo que ele é decorre das condições objetivas de sua inserção na sociedade. Embora devamos considerar que, informados por novos referenciais teóricos, os assistentes sociais podem conduzir suas ações no sentido oposto à conservação social.  Nesse sentido, ainda que as transformações no campo das relações sociais capitalistas tenham trazido problemas novos, inclusive para o Serviço Social, não existe a possibilidade de sua identidade com o trabalho, troca orgânica com a natureza, ou com o trabalho realizado pela classe operária, ainda que tenha adquirido a condição de trabalhador assalariado. Pertencemos aos extratos assalariados médios e exercemos funções na reprodução social como um complexo da totalidade social capitalista, componente da superestrutura ideal. Esse é o meu ponto de vista.

Os assistentes sociais lidam no cotidiano com os efeitos perversos da desumanização, particularmente na operacionalização de políticas sociais, e isso decorre da funcionalidade do Serviço Social ao capital e de sua relação com o Estado. Historicamente, fizemos crítica a essa funcionalidade da profissão, e minha posição é que sigamos em frente, realizando nossas atividades junto aos indivíduos, às famílias e aos movimentos sociais, buscando sempre o conhecimento da boa teoria para a realização de uma boa prática. Nós somos necessários ao povo, queiramos ou não, no exercício de atividades ligadas às políticas sociais. Então, são essas questões que trago, esperando contribuir para o debate “Serviço social e sua problematização como trabalho”.

Muito obrigada pela atenção.

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