A artista Marília Scarabello respondeu algumas questões feitas pela DaP também. Reside em Jundiaí  – SP e participa da 4ª exposição ARTE LONDRINA 7 – TU NÃO TE MOVES DE TI.

 

COM QUEM TEM AS MELHORES CONVERSAS SOBRE O QUE TE INTERESSA COMO ARTISTA?

Com amigos próximos que também são artistas ou que possuem interesse pelas artes. São pessoas com quem divido os processos de pesquisa, os questionamentos, as dificuldades, o cotidiano. Conversamos muito e a troca sempre é enriquecedora.

 

COMO UM TRABALHO COMEÇA?

A forma mais honesta para mim de responder essa pergunta é dizer que o trabalho começa a partir do momento em que estou vivendo a minha realidade, dentro da minha rotina, do meu entorno e das trocas que estabeleço ou não com as pessoas (a negativa neste caso importa muito).

Meus trabalhos começam de mim, do que naquele momento me punge e possuem uma relação grande com a minha percepção do território que eu habito. Normalmente uso um tempo grande do meu dia observando as tensões e contradições que acontecem ao meu redor e elas reverberam diretamente na minha produção. Agora, a forma como isso se dá varia muito, não existe uma metodologia única, cada processo é um processo e eu tento, dentro do possível, respeitar isso.

 

QUE ARTISTAS OU TEÓRICOS VOCÊ CONSIDERA IMPORTANTES? POR QUÊ?

Para ser justa precisaria escrever uma lista imensa de artistas e teóricos, porque realmente são muitos os que eu admiro e considero importantes e é difícil elencar alguns apenas. Acompanho o trabalho de muitas pessoas. Tenho, no entanto, alguns autores que eu sempre revisito, cujas obras eu considero de cabeceira, tais como Ítalo Calvino, Manoel de Barros e Fernando Pessoa.

 

O QUE VOCÊ ESTÁ LENDO?

Acabei de terminar “Fazenda Modelo” do Chico Buarque, um livro que há muito tempo queria ler e estou começando a ler outro desta lista “dos atrasados”, um livro de Albert Camus: “O estrangeiro”. Paralelamente, estou relendo o catálogo do Mam: “Gordon Matta-Clark: Desfazer o espaço”.

 

QUE TIPO DE COISA CHAMA SUA ATENÇÃO NO MUNDO?

Eu gosto de observar as coisas no geral, mas o comportamento do ser humano, como ele lida com os problemas ao mesmo tempo que os inventa tem me chamado muita atenção. Eu sou apaixonada pela natureza e pelas paisagens também, posso passar horas observando qualquer paisagem.

 

O QUE VOCÊ ESTÁ PRODUZINDO AGORA?

Estou focada em duas séries de trabalhos que abordam a ideia de fronteira de formas distintas e possuem uma ligação muito forte com a maneira como meu corpo se desloca pelo território. São trabalhos que estão sendo desenvolvidos dentro do grupo de acompanhamento “Meios e processos de criação em arte” na Fama em Itu que eu participo desde agosto deste ano. Eles possuem um vínculo forte com a série “Intervalo”, talvez sejam uma continuidade dela.

 

QUE MÚSICA VOCÊ OUVE?

Eu escuto muita música, depende demais do meu momento e da minha energia. Vou tentar uma lista, mas vou deixar 80% de fora: escuto muito Zé Ramalho, Tom Zé, Cartola, Chico, Caetano, Gil, Gal, Tim Maia, Tom Jobim, Ney Matogrosso, Toquinho, Cícero, Neil Young, Dave Matthews Band, Eric Clapton, sou apaixonada por Jeff Buckley, escuto bastante música clássica e quando estou inspirada deixo tocar Sigur Rós.

 

QUE EXPERIÊNCIA FOI IMPORTANTE PARA QUE VOCÊ SE ENTENDESSE COMO ARTISTA?

Penso em duas importantes: quando eu era criança e sabia que era isso que queria fazer, porque simplesmente fazia compulsivamente muitos e muitos desenhos e realmente me sentia bem com isso. E quando, bem mais velha, entendi que precisava redirecionar minha vida ao encontro da pessoa que eu havia deixado para trás (desta criança), porque não estava bem fazendo somente o que fazia.

Isto aconteceu quando decidi, após a graduação em arquitetura, fazer um curso de cenografia teatral. Foi um reencontro que começou através do teatro e um processo que durou pelo menos seis anos, incluindo muitos cursos, um mestrado e muita reflexão sobre o que eu intuitivamente vinha produzindo. Eu na verdade ainda me considero neste processo, acho que ele não tem um fim né?

 

COMO O CONCEITO DE APROPRIAÇÃO SE DÁ NO SEU TRABALHO?

Talvez por no meu ofício como arquiteta e urbanista (que eu ainda exerço) eu sempre estar carregando nas mãos as questões dos outros (terrenos, sonhos, problemas burocráticos, expectativas), o processo de me apropriar destas coisas todas tenha sido tão natural. Estas questões, com o passar dos meses, tornavam-se as minhas questões também e diziam muito, traduziam para mim, sobre uma realidade muitas vezes difícil de aceitar, seja ela social, burocrática, cultural ou urbana. Da apropriação destes documentos para o de gestos de pessoas que eu não conheço e de “prints” da internet, por exemplo, foi um movimento natural. Claro que também fui e sou influenciada por muitos artistas que fazem isso genialmente. Ao mesmo tempo, apropriar-se dos gestos do outro me pareceu a maneira mais honesta para tentar lidar com as questões externas a mim que me afligiam. Não é uma tentativa de responder a isso, mas de construir, talvez, outras perguntas.

 

COMO VÊ A DILUIÇÃO DE SIMBOLOS, DE APARÊNCIA E SIGNIFICADO RÍGIDOS, COMO A BANDEIRA DO BRASIL, NAS DEMANDAS COTIDIANAS?

Considero necessária a diluição dos símbolos de aparência para que efetivamente a sociedade possa se olhar sem filtros. Isso é muito importante e impacta tudo, inclusive as demandas mais simples, do cotidiano. Não é fácil e não é agradável, mas é o caminho para o nosso crescimento, penso.

“Bandeira”, por exemplo, é um trabalho que se coloca como uma possibilidade de reflexão sobre isso, são vozes múltiplas desconstruindo uma ideia de unidade rígida que não condiz com o país absolutamente diverso e continental que habitamos.

 

VOCÊ ENTENDE OS HIATOS ENTRE O QUE ESTÁ DOCUMENTADO E A REALIDADE EFETIVA COMO UMA OUTRA REALIDADE? QUAL A RELAÇÃO DESTE FATO E O BRAILLE, NO SEU TRABALHO?

Sim. Para mim a série toda de imagens de “Intervalo” acontece nesta espécie de realidade paralela invisível e truncada. Uma realidade imaginada e, justamente por ser imaginada, incontrolável.

As duas peças de “Intervalo” presentes na exposição apresentam a linguagem braille como uma espécie de “caminho do meio” entre duas formas de documentar a realidade que se contradizem completamente, ainda que carreguem a verdade dentro de suas instâncias. O braille é a ponte para esta realidade que eu chamei de paralela.

Se uma casa ainda consta como existente em um documento de propriedade, mesmo que ela fisicamente não exista mais, e se é preciso que se peça a sua demolição dentro de órgãos públicos, cumprindo todo o rito para que sua demolição seja atestada, como transportar essa casa invisível, mas que ainda existe burocraticamente, para a imagem, uma vez que a fotografia por si só não dá conta de atestar/registrar tudo o que ali existe? Escrever em braille sobre a imagem pareceu-me a maneira mais honesta de tentar devolver a casa à imagem, a casa ao terreno. É uma tentativa que expõe também os limites disso.

Falar de algo invisível, que eu também não acesso, só parecia possível a partir de uma linguagem que trabalha a visão em um outro lugar, que constrói imagens a partir do tato e das palavras, em um processo absolutamente individual, imaginativo. Não sei como era a casa, é um hiato imaginado e por isso mesmo infinito e incontrolável. Cada um enxerga a casa que quer ou pode enxergar.

 

O ateliê da artista

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