v. 17 n. 34 (2022): Eu Canto Porque o Instante Existe e Exige: as poéticas da voz no período pandêmico
Nos últimos dois anos, a atipicidade do período pandêmico reconfigurou as relações humanas. Nossa proximidade com a morte ficou menos estranha, as tecnologias se fizeram mais presentes e o home office se tornou um termo mais familiar, um cúmplice inseparável, inclusive nas manifestações da arte em geral. Nesse panorama, a recepção desse momento pelos poetas da voz não ficou alheia. Assim, questiona-se: como se deram estas relações na produção poética de base oral? De que forma e em que níveis o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 durante, pelo menos dois anos, impactou as relações entre os artistas, poetas e de mais profissionais da voz (cantores, cantadores, repentistas, cordelistas, aboiadores, professores(as), etc) durantes este período? E em termos da organização dos mesmos enquanto grupo social, houve mudanças significativas? De que natureza? Como tais relações aconteceram, por exemplo, na sala de ensino remoto? Como compreender a performance, nos moldes zumthoniano, nestas circunstâncias de produção e recepção?
Essas temáticas são flexíveis para epistemologias diversas, apesar de alguns campos reflexivos privilegiarem as mesmas, a exemplo da interdisciplinaridade da primeira geração dos Estudos Culturais como instituição acadêmica, simbolizados nos pais fundadores: Raimond Williams, Edward P. Thompson, Richard Hoggart e Stuart Hall. Além do olhar inter e transdisciplinar, a marginalidade institucional e a ponte entre cultura e suas relações de poder são relevantes para a temática proposta.
Se o tema envolve a poética da voz, essa voz evoca a própria presença mesmo estando ausente, pois, não é captada apenas por meio da escuta, mas através de todos os componentes que a constituem: os elementos linguísticos, a tradição, os movimentos físicos e até mesmo sua interferência em relação ao corpo no tempo e no espaço. Essas circunstâncias estão relacionadas ao que Paul Zumthor compreendeu como um efeito sensorial: uma palavra ao ser pronunciada demonstra capacidade de preencher, como uma representação do corpo que a produz em seus aspectos não apenas biológicos, mas históricos, mitológicos e literários.
É nesta perspectiva, portanto, que este dossiê se propõe: aceitar pesquisas inseridas no grande guarda-chuva que acolhe as múltiplas faces das poéticas das vozes, quase sempre invisibilizadas pelo cânone poético tradicional, e impactadas pela pandemia da Covid-19; vozes de borda, latentes, presentificadas, reprimidas e silenciadas, inclusive na sala de aula; vozes (de)cantadas, (re)inventadas por força da tradição oral; vozes que, ao ecoarem no outro, se refratam, se ressignificam, denunciam e se transformam.