O sentido da reflexão sobre autonomia no serviço social
Carla Andréia Alves da Silva *

            *Assistente Social, graduada pela Universidade Estadual de Londrina no ano de 2003. Especializanda em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná. Assistente Social do Programa Liberdade Solidária, da Fundação de Ação Social (Prefeitura Municipal) de Curitiba-PR.

 

Resumo: Este artigo constitui-se em um estudo sobre a autonomia e seu entendimento na categoria dos Assistentes Sociais brasileiros. Através de pesquisa bibliográfica, traçou-se uma trajetória histórica, desde a década de 1920 até os dias atuais, sobre o entendimento/prática do respeito à autonomia dos usuários, perpassando pelo conceito de autodeterminação dos sujeitos, bem como pela influência das correntes personalista e fenomenológica na metodologia do Serviço Social. Por fim, realizou-se uma breve explanação sobre o conceito da autonomia na teoria marxiana, seguida de uma reflexão sobre a prática dos Assistentes Sociais na atualidade, no que concerne ao respeito à autonomia do usuário, enfatizando que este respeito conduz a uma prática que propicia aos sujeitos que estes escolham quais os rumos que desejam dar às suas vidas a partir das alternativas disponíveis, ainda que estas sejam determinadas socialmente.

Palavras Chaves: Serviço Social, autonomia, ética, prática profissional.

Abstract: This article consists in the study on autonomy and its comprehension by the Brazilian social workers category. Through a bibliographical research, a historical trajectory was traced since the 1920s until the current days, about the understanding/ practice of the respect of the user's autonomy, dedicating attention to the concept of the self – determination of the citizens, as well as, for the influence of the “personalista” and “ fenomenológica” trends in the methodology of the Social Work. At last, it is presented a brief explanation about the concept of the autonomy in the theory of Marx, followed by a reflection on the practice of social workers at the present time, as concerned to the autonomy of the user, emphasizing that this respect leads to a practice which enables the users to choose which ways they desire to give to their lives based on the available alternatives, although these alternatives are socially determined.

Key Words: Social Work, Autonomy, Ethics, Professional Practice


Introdução 

     Ao pesquisar as reflexões sobre autonomia no Serviço Social pudemos constatar que pouco se falou, ou se fala, diretamente sobre o assunto na profissão. A autonomia enquanto capacidade de autodeterminação dos indivíduos pouco vem sendo discutida, embora apareça como sendo o primeiro princípio fundamental no Código de Ética dos Assistentes Sociais promulgado pelo CFESS em 1993.

     Semanticamente, a palavra autonomia provém do grego autonomia : autos – significando “por si mesmo”, “por ele mesmo”, “ele mesmo” ou “o mesmo” e nomos – significando “lei”, “uso” ou “compartilhamento”. [1] Assim, conforme Muñhoz e Fortes (1998), a autonomia refere-se ao auto governo, à autodeterminação da pessoa para tomar decisões que afetem sua vida e suas relações sociais.

       A autonomia, em seu sentido ético, tem sua fundamentação no binômio liberdade/normas. Autores como Segre, Silva e Schramm (2001), Almeida (1996) e Rouanet (1994) concordam que a construção do significado contemporâneo deste termo teve seu ápice no período do movimento iluminista (século XVIII), durante o qual valorizava-se prioritariamente a racionalidade como possibilidade da conquista da liberdade humana.

      O Iluminismo, segundo Rouanet (1994), fora marcado pela rejeição dos preceitos religiosos como fundamento da moral. No período, várias respostas foram elaboradas em contraponto à moral revelada pela fé, sendo uma delas a de Immanuel Kant. Para Kant (apud Rouanet, 1994), a moralidade se funda num procedimento interno à razão do homem. Através deste fundamento, Kant postulou algo diferente de todas as outras teorias éticas vigentes até o Século XVIII: uma ética na qual a ação humana era embasada na vontade deliberada racionalmente.

      Brito (1994) afirma que, para Kant a condição básica que possibilita à vontade dar a si a sua própria lei é a autonomia, definida como “aquela propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (...), é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional. (Kant, apud Brito, 1994, p.71).

      Se a autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana, como então falarmos dela em uma sociedade onde estamos quase que inteiramente determinados socialmente? Como exercer a autonomia neste contexto e como “propiciar” aos usuários dos serviços sociais que a exerçam, quando muitos sequer têm alternativas para escolha? Tratar de tal assunto na prática do Assistente Social não é tarefa fácil.

      Pretendemos nesta breve exposição, apresentar a trajetória das reflexões sobre autonomia no Serviço Social da década de 1920 aos dias atuais, perpassando pelo Serviço Social de Casos, pela Fenomenologia, pelo Personalismo e, por fim, pelo Marxismo, tomado, este último, como corrente filosófica preponderante na profissão nos dias atuais, concluindo com reflexões sobre a prática profissional no que concerne ao exercício e ao respeito à autonomia.

A Reflexão sobre Autonomia no Serviço Social

     Como afirmamos anteriormente, ao pesquisar as reflexões sobre autonomia no Serviço Social, pudemos considerar que pouco existe registrado sobre o assunto. Dentre as fontes consultadas, encontramos as primeiras reflexões em Felix P. Biestek (1960). O autor faz uma discussão sobre o princípio da autodeterminação no Serviço Social, resgatando tal pensamento desde a década de 1920 até o período em que escrevera sua obra (início da década de 1960) [2].

      De acordo com Biestek (1960), antes da década de 20, já havia esboços sobre a formulação de um princípio de autodeterminação. Os Assistentes Sociais reconheciam que apesar da dependência de seus “clientes”, os mesmos deveriam ser reconhecidos como seres humanos, portadores de direitos inalienáveis dados por Deus para viver a sua própria vida.

      Entre os anos de 1920 e 1930, ascendeu no Serviço Social a discussão sobre o direito do “cliente” de participar ativamente das decisões e escolhas inerentes à sua vida no tratamento de caso. Esta compreensão, ainda segundo Biestek (1960), surgiu da convicção de que todos os homens são agentes livres por natureza. Outro fator que contribuiu para esta compreensão do homem enquanto ser autodeterminado foi a crença de que um tratamento de caso teria mais sucesso quando o “cliente” participasse das escolhas sobre sua vida e tomasse suas próprias decisões, percebendo estas como pertenças suas.

      Da década de 1930 a 1940, expressões como “auto-ajuda”, “fazer seus próprios planos” e “tomar suas próprias decisões” marcaram a reflexão sobre a prática do Serviço Social. Viu-se o direito do “cliente” ultrapassar o âmbito da participação: as responsabilidades para fazer planos e tomar decisões eram transferidas do Assistente Social para o “cliente”. Segundo Biestek (1960), esta prática contribuiu para o crescimento e o desenvolvimento da liberdade do “cliente”, auxiliando na maturação da personalidade humana. Neste período, acentuava-se a discussão sobre a liberdade da pessoa humana como um requisito essencial para a defesa de sua dignidade. Sobre tal assunto, Pereira (apud Guedes, 2003a, p.4), em um artigo publicado em 1940, ressaltava que em qualquer circunstância o que deve prevalecer é a “dignidade da pessoa humana, o ser livre, que deverá ser esclarecido, orientado, porém, nunca coagido.”

      Entre os anos de 1940 a 1950, de acordo com Biestek (1960), observa-se certa influência da psicologia e da psiquiatria no Serviço Social de Casos, incentivando a manutenção do princípio da autodeterminação do “cliente”. Encontrava-se ainda neste período forte influência da doutrina da igreja católica, como se pode observar nas palavras do autor:

“Como todo ser humano, o cliente tem a responsabilidade de viver sua vida de tal forma que atinja os objetivos próximos e últimos da mesma, da maneira que os concebe. E desde que cada responsabilidade venha acompanhada de direitos correspondentes, ele é dotado pelo Criador, de um direito fundamental, inalienável, de escolher e decidir os meios apropriados para atingir seu próprio destino pessoal.” (BIESTEK, 1960, p.92)

      Vê-se aqui uma noção de autodeterminação bastante próxima, ao nosso ver, daquela de livre-arbítrio, de acordo com a qual ao homem caberia decidir entre o bem ou o mal. Por esta via, o Serviço Social, inspirado no neotomismo [3], apregoava a vinculação entre a sociabilidade e a bondade natural do homem, o que levaria ao aperfeiçoamento da pessoa humana.

      Colocava-se naquele período uma forte ênfase sobre a questão da responsabilidade, explicitando-se que a autodeterminação era uma forma de exercício da responsabilidade individual, conforme as palavras que seguem:

“O exercício da responsabilidade é uma das fontes principais para o desenvolvimento e maturidade da personalidade. Somente através desse exercício em decisões livres, pode o cliente esforçar-se para adquirir a maturidade de sua personalidade intelectual, social, espiritual e emocional. Especialmente na qualidade de cliente, necessita de liberdade para escolher por si mesmo, os meios viáveis para tornar eficiente o auxílio do serviço social de casos.” (BIESTEK, 1960, p.93)

      Durante os períodos estudados até aqui, a autodeterminação não era um princípio absoluto. Não se defendia esta idéia, pois o mesmo autor coloca as limitações ao exercício deste princípio: a) limitações relacionadas à capacidade individual de tomar decisões positivas e construtivas; b) limitações originadas da lei civil; c) limitações originadas da lei moral; e d) limitações originadas da função da “agência”.

      Nos anos 50, encontram-se registros dispersos do princípio de autodeterminação na obra de Gordom Hamilton (1958), que perduraram até a década de 1960 no Serviço Social de Casos norte-americano, incorporado pelo Serviço Social brasileiro. A autora afirmava que, para uma prática profissional eficiente [4], seria necessário respeitar a pessoa humana, conforme as palavras a seguir:

“Para ajudar eficientemente aos outros, é preciso respeitar a pessoa humana, isto é, o seu direito de viver a própria vida, de usufruir de liberdade pessoal e política, de buscar a felicidade e de procurar valores espirituais que aspira. A aplicação deste princípio significa que os assistentes sociais não devem impor aos clientes seus próprios padrões de comportamento, suas soluções e princípios morais, mas sim conceder ao cliente o direito de ser ele mesmo e de tomar suas decisões.” (HAMILTON, 1958, p.19)

      O Serviço Social neste período, segundo o mesmo autor, baseado no pensamento de Mary Richmond, poderia ser definido como a “a arte de ajudar às pessoas a ajudarem a si mesmas”. Sendo assim, o maior benefício que o profissional poderia trazer ao seu cliente seria a consciência de que era possível “reformar-se” e “aperfeiçoar-se”. Caberia então ao assistente social a tarefa de atuar como “conselheiro” ou “terapeuta”, mostrando ao “cliente” novos rumos e perspectivas, mostrar a capacidade do cliente progredir e adaptar-se à realidade, mas sempre deixando que este fosse o decisor.

       Em todos os períodos até aqui estudados, conforme Guedes (2003a) vê-se a forte influência da doutrina católica, inspirada no neotomismo, expressa na preocupação fundamental do respeito à dignidade da pessoa humana. Via-se nestes pressupostos uma pretensa idéia de prática profissional dotada de duas dimensões: o cuidado do corpo e da alma.

       Na década de 70 podemos encontrar, conforme afirma Guedes (2003b), forte influência do Personalismo [5] no Serviço Social, expressado no Código de Ética do Assistente Social de 1975. Tal teoria tinha como premissa básica a “construção de uma sociedade da pessoa humana” (Mounier, apud GUEDES, 2003b). Mounier afirmava que a existência humana estava condicionada à sua ação, ou seja, o homem só existe quando age no mundo. Guedes (2003b) relaciona cinco parâmetros fundamentais, pensados por Mounier, que devem subsidiar e fortalecer as atitudes da pessoa humana: a) a comunicação – desobstrução dos canais de comunicação entre os homens; b) a conversão íntima – seria uma atitude de rompimento e superação da vida imediata; através da conversão o homem descobre a sua finalidade no universo e decifra as suas vocações, estabelecendo uma relação entre sua vida interior e exterior, dando assim sentido à sua existência pessoal; c) o afrontamento – após converter-se e conhecer-se, torna-se possível ao homem afrontar a realidade posta, romper com as determinações impostas por ela; d) exercício da liberdade – quando rompe e diz não à sociedade, o homem pode exercer a liberdade, que para Mounier é imprescindível à condição de pessoa humana, associada ao exercício da vontade e do querer; e e) respeito à dignidade – seria o caminho para se atingir à condição de pessoa. Dentro destes pressupostos, ao meu ver, ao movimento personalista caberia promover esta conversão, no sentido de caminhar para a ruptura com as determinações sociais, promovendo a liberdade, o exercício da vontade e das verdadeiras vocações da pessoa humana.

       Dentre os autores que recorreram ao personalismo, estão aqueles que o incorporavam vinculado ao humanismo cristão e à fenomenologia, caracterizando um ecletismo na recorrência a estas três fontes teóricas. Podemos encontrar exemplo de tal situação na obra da Dra. Anna Augusta Almeida, datada de 1977, tratando da formulação de um modelo teórico-metodológico para a prática do Serviço Social brasileiro, na qual encontramos as seguintes afirmações:

“Nossas preocupações fundamentais estão apoiadas em critérios a partir da compreensão de homem e mundo, orientada numa hermenêutica da realidade pela teoria personalista do conhecimento, por uma fenomenologia existencial e por uma ética cristã motivamente . E, se elas parecerem exageradamente apoiadas na visão personalista , devemos confirmar que foi esta a nossa intenção. Estamos convencidos de que a fenomenologia em muito nos pode ajudar no difícil caminhar em busca da compreensão de como trabalhar em Serviço Social , pensando a história humana em sua significação mais profunda.” (ALMEIDA, 1989, p. 1-2) (grifo nosso)

      Também na década de 1970 e início dos anos 80, encontramos forte influência da Fenomenologia [6] no Serviço Social, tendo como um dos principais expoentes Ana Maria Braz Pavão (1981). De acordo com esta autora, neste paradigma o incentivo ao exercício da autodeterminação ressalta-se ainda mais. A autora dá a este uma importância fundamental na prática profissional, colocando-o como premissa para a profissão:

“Para o Serviço Social, o princípio da autodeterminação é básico e expressa o reconhecimento do direito à liberdade do homem, necessário e fundamental, que decorre de sua dignidade inerente como ser humano.” (PAVÃO, 1981, p. 35)

       Considerava-se que o princípio da autodeterminação deveria ser observado no nível dos valores, pois era este que traduzia a possibilidade de o homem exercer a sua liberdade de ser homem. Este “ser homem”, sujeito, implicaria necessariamente ser livre para agir, incluindo assim uma certa autonomia para “querer” e “escolher”. Complementando tal argumento a autora utiliza uma citação que pode melhor esclarecer-nos :

“A fé de que se pode confiar no homem, quando livre, para crescer e desenvolver-se nas direções desejáveis, é provavelmente a mais alta expressão de fé na dignidade humana.” (BARLET, apud PAVÃO, 1981, p.67)

       Para ela, este princípio só seria viável através da conscientização, de uma atitude crítica e reflexiva do mundo, na qual o homem como ser atuante e participante possa tornar-se “ser-consciente-no-mundo”. Seria no exercício da autodeterminação que o homem poderia conhecer a si mesmo e sentir-se responsável por suas escolhas. Nesta concepção, caberia então ao Assistente Social auxiliar seus “clientes” a fazer escolhas, preservando seu direito a autordeterminação como princípio básico para resguardar a sua identidade. Assim, o Serviço Social teria sua atenção voltada para as pessoas, através de uma ação com intuito de ajudá-las a se integrarem no grupo ou na comunidade, desenvolvendo nelas a capacidade de tomar suas decisões. A autora afirmava que ao participar das decisões, o indivíduo compromete-se com elas e assume suas conseqüências. O profissional estaria incumbido de mostrar os caminhos viáveis para uma tomada de decisão :

“Cabe ao Assistente Social, na sua relação com os clientes, fazer com que exerçam seu direito de autodeterminação, lutando com que obtenham o máximo de satisfação dentro dos limites prefixados, mas expandindo esses limites naquilo que eles têm de fluido e indefinido. Face a isso, a atuação do Assistente Social será no sentido de procurar perceber aquilo que não pode mudar, mas com a preocupação de lutar por aquilo que é possível transformar, tendo sempre como fundamento para essa ação, a fé no valor da dignidade humana.” (PAVÃO, 1981, p.73)

     Da década de 80 em diante, pouco se pode encontrar na literatura do Serviço Social sobre o princípio da autonomia ou autodeterminação como até então era chamado.

      Sabe-se que, conforme Yasbek (2000), no início dos anos 80, após o Movimento de Reconceituação do Serviço Social, a profissão iniciou uma interlocução com a teoria social de Karl Marx, buscando uma ruptura com o conservadorismo. O debate centralizado na “pessoa humana” deslocava-se agora para a discussão do “ser social”.

      Marx (apud LUKÁCS, 1997), em sua fundamentação sobre o ser social, afirmava que todo ser existente fazia parte de um complexo concreto. O ser em seu conjunto seria entendido como um processo histórico. A consciência humana seria o produto do desenvolvimento do ser material. Daí o fundamento da “prioridade ontológica do ser sobre a consciência” defendida por Lukács (1997), baseando-se na premissa marxista de que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser social; é o ser social que, inversamente, determina sua consciência” (MARX, 1983, p.24). O indivíduo estaria subordinado e determinado pelas leis históricas vigentes, e, no período contemporâneo, pelas do modo capitalista de produção.

       Seguindo o mesmo argumento, pode-se afirmar que o movimento histórico no qual se situa o homem e as determinações sociais é dialético, conforme explica Marx (1978, p.9) : “O caráter social é, pois, o caráter geral de todo o movimento: assim como é a própria sociedade que produz o homem enquanto homem, assim também ela é produzida por ele.”

      Lukác (1997) afirma que para Marx o ser social distancia-se daquele homem simplesmente orgânico, através do trabalho, ou seja, o indivíduo se faz homem a partir do trabalho, no qual é possível transportar as representações de sua consciência para produtos reais, revelando assim sua capacidade criadora. Entretanto, todo trabalho na sociedade capitalista tem uma finalidade social ditada pelas leis gerais do capital e, por mais que o homem execute seu trabalho consciente, nem sempre estará em condições de ver os condicionamentos de sua própria atividade e suas conseqüências. E aqui é inevitável passar pela discussão sobre alienação. Em tal contexto, Marx (1978, p.8-9) afirma que “a propriedade privada material, imediatamente sensível, é a expressão material e imediata da vida humana alienada. Seu movimento – a produção e o consumo – é a manifestação sensível do movimento de toda a produção passada, isto é, da efetivação ou efetividade do homem”. Ainda sobre alienação, Marx disserta:

“A alienação exprime-se (...) em modo tal que quanto mais o operário produz tanto menos tem para consumir, em que quanto mais valores ele cria tanto mais desvalorizado e indigno se torna, em que quanto mais formado o seu produto mais deformando o operário, em que quanto mais civilizado o seu objeto tanto mais bárbaro o operário, que quanto mais poderoso o trabalho tanto mais impotente o operário, em que quanto mais sem espírito o trabalho tanto mais sem espírito e servo da natureza se torna o operário.” (MARX, 1993, p.64)

      Para Marx (1978) então, o homem estaria condicionado às determinações sociais, impedido assim de exercer a sua plena liberdade. Reconhecia que todas as ações do ser social eram frutos de uma decisão, porém, as alternativas postas para escolha estariam sempre determinadas pelas necessidades e finalidades do capital. Assim, na interpretação de Lukács (1997), o homem não faz escolhas, mas sim, dá respostas.

      Seguindo tal argumento, Marx (1978, p. XXIII) explicita que “os homens fazem sua própria historia, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

        Assim, podemos afirmar que para tal autor a forma de o homem ser livre para exercer a sua autonomia [7] inerente ao gênero humano, seria através da superação do modo capitalista de produção e da alienação humana dele advinda:

“A superação positiva da propriedade privada como apropriação da vida humana é por isso a superação positiva de toda a alienação, isto é, o retorno do homem da religião, da família, do Estado, etc., ao seu modo de existência humano, isto é, social.” (MARX, 1978, p. 9)

      Interpretando e complementando tal afirmativa marxiana, Lukács explica:

“Só quando o trabalho for efetiva e completamente dominado pela humanidade e, portanto, só quando ele tiver em si a possibilidade de ser” não apenas meio de vida “, mas o” primeiro carecimento da vida”, só quando a humanidade tiver superado qualquer caráter coercitivo em sua própria autoprodução, só então terá sido aberto o caminho social da atividade humana como fim autônomo.” (LUKÁCS, 1997, p. 40).

      Correlacionando a teoria social de Marx com o Serviço Social, localiza-se no Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais de 1993, como primeiro princípio fundamental e norteador da prática profissional:

“Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais.” (CRESS 7ª REGIÃO, 1993)

       Maria Lúcia Barroco (1993), um dos expoentes da discussão ética no Serviço Social hodierno, explica que este Código de Ética está inteiramente fundamentado na ontologia social marxiana [8]. Portanto, a liberdade nele tratada não se refere àquela concebida como capacidade nata do homem, mas sim, como uma capacidade construída/conquistada através do trabalho humano livre e consciente. Ainda na mesma fonte, observamos a afirmação de que a moral tem a vinculação central com a liberdade, pois o homem se utiliza de sua capacidade de autodeterminação para fazer escolhas de valores e agir de acordo com estas escolhas. Porém, nas condições da sociedade burguesa, esta autodeterminação estaria condicionada a uma moral alienada, que segundo a autora “contribui para a reprodução de um ethos funcional à ordem social reificada.”(BARROCO, 2003, p. 58). Neste sentido, encontramo-nos diante de uma contradição, de um antagonismo entre a liberdade e as necessidades determinadas sócio-economicamente. O homem é livre para fazer escolhas, porém, estas escolhas estão fundadas nas suas necessidades construídas historicamente. Sobre estas necessidades, Mészáros explica:

“as necessidades do homem como membro da sociedade não se tornaram necessidades interiores no verdadeiro indivíduo, mas permaneceram externas a ele, como necessidades da sociedade (...) se fossem ‘necessidades interiores' do homem, então não haveria necessidade de impô-las externamente.” (MÉSZÁROS, apud BARROCO, 2003, p. 59)

      Desta forma, nossas decisões estariam vinculadas a estas necessidades que nos são impostas “de fora para dentro” através das leis e normas socialmente impostas.

     Refletindo tais posições abstraídas da teoria social de Marx, chegamos às seguintes indagações: o que fazer enquanto não ultrapassamos o capitalismo, enquanto continuamos determinados pelas leis gerais e pela moral capitalista? Como seria possível defender a autodeterminação em tal contexto? Como falar em liberdade em uma sociedade na qual o trabalho humano não é criador, onde o homem encontra-se alienado, expropriado do produto do seu próprio trabalho?

      Pudemos encontrar pontos de partida para responder tais perguntas na literatura do Serviço Social, através de Netto (2000). Para o autor, o indivíduo encontra-se sim subordinado a padrões de comportamento socialmente estabelecidos. O ser social só se reconhece no imediatismo, na sua singularidade e por isso perde a noção de homem genérico [9]. Esta dimensão humano genérica aparece subsumida na vida cotidiana. A dinâmica da sociedade exige dos homens apenas respostas funcionais, que não demandam conhecimento de sua interioridade. Assim, em nossa interpretação, o homem genérico torna-se mecânico; distancia-se de sua capacidade de se auto-legislar: de tanto reproduzir, acaba por deixar de ter vida própria e, mesmo acreditando que a tem, não percebe que apenas reproduz aquilo que já lhe fora previamente ensinado, tornando-se “repetidor” de atos.

      Para Netto, mesmo diante de tal situação, nem tudo estaria perdido, pois aponta possibilidades (através da mediação) para o homem ver-se como inteiramente homem :

“A consciência humano-genérica (...) só se dá quando o indivíduo pode superar a singularidade, quando ascende ao comportamento no qual joga todas as suas forças, mas não toda a sua força numa objetivação duradoura (...). Trata-se então, de uma mobilização anímica que suspende a heterogeneidade da vida cotidiana – que homogeneíza todas as faculdades do indivíduo e direciona num projeto em que ele transcende a singularidade numa objetivação na qual se reconhece como portador de consciência humano-genérica. Nesta suspensão (...) o indivíduo se instaura como particularidade, espaço de mediação entre o singular e o universal e comporta-se como inteiramente homem.” (NETTO, 2000, p.69)

      Continuando tal argumentação, o autor expõe que quando o indivíduo consegue suspender a imediaticidade e atingir a consciência humano genérica, isto não significa que este esteja ultrapassando ou eliminando a vida determinada pela sociedade capitalista, mas sim, que ele se torna um indivíduo “refinado” e “educado”, por fim, modificado, consciente de si mesmo e de suas possibilidades e capacidades enquanto homem. Assim, ao nosso ver, o homem estaria apto, mesmo sob limitações determinadas histórica e socialmente, a exercer a sua autonomia.

       Finalizando, expondo como uma espécie de “válvula de escape” a esta situação de determinações sociais que permeiam nossas escolhas a todo o tempo, utilizamo-nos das palavras de Netto, que servem-nos para uma reflexão da prática profissional, no que concerne ao respeito à autonomia dos usuários:

“Enquanto a organização capitalista da vida social não invade e ocupa todos os espaços da existência individual, ao indivíduo sempre resta um campo de manobra ou jogo, onde ele pode exercitar, mesmo que minimamente, a sua autonomia e o seu poder de decisão, onde lhe é acessível um âmbito de retotalização humana que compensa e reduz as mutilações do prosaísmo da divisão social do trabalho e do automatismo que ela exige e impõe.” (NETTO, 2000, p. 86)

      Assim, entendemos que mesmo diante de todas as limitações, sejam elas sociais, institucionais ou profissionais, ainda existe este “espaço de manobra”, no qual caberia a nós, Assistentes Sociais, orientar os usuários à abertura de “caminhos” nos quais possam exercer seu auto governo de acordo com seus valores, crenças, anseios e aspirações.

 

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NOTAS

[1]Conforme Segre, Silva e Schramm (2001).

[2] Lembrando apenas que Felix Biestek, autor canadense, discute em sua obra o Serviço Social de Casos.

[3] Movimento de retorno à filosofia de São Tomás de Aquino, no âmbito da cultura católica, oficializado pela encíclica Aerteni Patris (Para Leão XIII – 04/08/1879). (GUEDES, 2003a)

[4] A “prática eficiente” entendida pelo próprio autor seria aquela que reajustasse o indivíduo aos parâmetros socialmente determinados, porém, de forma com que o indivíduo chegasse a partir de conclusões próprias a esta consciência de necessidade de ajustar-se.

[5] Personalismo: doutrina idealizada por E. Mounier, que viera a fundamentar o Código de Ética do Assistente Social, datado de 1975. (GUEDES, 2003b)

[6]Fenomenologia, segundo Pavão (1981), é uma teoria filosófica que consiste no estudo daquilo que surge à consciência como fenômeno, no sentido de explorar e descrever a essência desse fenômeno.

[7]Sobre a concepção de autonomia em Marx, encontramos tal afirmação, a qual consideramos importante destacar: “Um ser só se tem por autônomo desde que se ergue nos seus próprios pés, desde que a si mesmo deve a sua existência. Um homem que viva da graça de outro se considera como um ser dependente. Mas eu vivo completamente da graça de um outro se não lhe dever apenas o sustento da minha vida, mas também se, além disso, ele ainda tiver criado a minha vida.” (MARX, 1993, p.102)

[8] A qual já abordamos anteriormente a partir de Lukács.

[9] A idéia de homem enquanto ser genérico advém da teoria marxiana. Para Marx (1993), o homem é um ser genérico porque pertence a uma espécie/gênero: a raça humana. É o homem gerado por outro homem, enquanto gênero vivo, como um ser universal e livre, que tem necessidades e características próprias de sua espécie. O caráter humano genérico está no modo de suas atividades vitais: atividades livres e conscientes. “A vida produtiva é a vida genérica. É a vida que gera vida. No modo de atividade vital reside todo o caráter de uma species, o seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem (...). O homem torna a sua própria atividade vital objeto do seu querer e da sua consciência (...). Precisamente por isso ele é um ser genérico. Ou ele é um ser consciente, i.é, a sua própria vida para ele é objeto, precisamente porque ele é um ser genérico. Só por isso sua atividade é atividade livre.” (MARX, 1993, p.67)

      

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