A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: UMA ANÁLISE À LUZ DA DEMOCRATIZAÇÃO DA GESTÃO
Maria Luiza Amaral Rizotti

RESUMO

O presente artigo é resultado de pesquisa realizada por ocasião da elaboração da tese de doutorado, cujo objetivo foi analisar o desempenho da política de assistência social em nível local (região da AMEPAR), mais especificamente, a influência dos conselhos municipais de assistência social na democratização desta política. O estudo teve como marcos, a promulgação da Constituição Federal de 88 e a Lei Orgânica da Assistência Social de dezembro de 1993.


Passada mais de uma década do estabelecimento da nova ordem institucional, já podemos examinar em que medida foram eficazes os direitos sociais previstos na nova Carta Constitucional, que trouxe à luz um novo marco para a organização das políticas sociais no Brasil, apresentou novas diretrizes destinadas a estabelecer a garantia de direitos sociais no país e, por conseqüência, poderia transformar qualitativamente a cidadania de sua população.

Nossa reflexão pautou-se nas perspectivas atuais das políticas sociais no Brasil e, em especial, sobre as determinantes históricas que, tanto de um ponto de vista estrutural quanto conjuntural, demarcaram seu processo de evolução no conjunto das políticas públicas brasileiras, tomando em particular o caso da assistência social.

Nesse sentido, devemos preliminarmente apontar, como o caso particular dos municípios da região da AMEPAR-PR, a abrangência escolhida para nosso estudo que, apresenta-nos elementos comuns à da maioria de outras regiões brasileiras, tanto no que concerne à evolução do fenômeno da pobreza quanto no que diz respeito ao processo de descentralização da política de assistência social. De fato, tal como no caso geral de outras regiões e Estados do país, o aceleramento do processo de urbanização em municípios de pequeno e médio portes, especialmente a partir de fins da década de 1970, produziu na região um crescimento constante nos índices de pobreza existentes, em flagrante descompasso com a escassez de políticas sociais ofertadas à população. Além disso, a rede de serviços em funcionamento foi ampliada, em função da capacidade de arrecadação de divisas que gerava, o que convertia os serviços de assistência social numa atividade dependente de iniciativas filantrópicas da sociedade civil ou de ações eventuais do poder público local.

Com a constituição de um novo sistema de proteção social no país, no qual a seguridade passou a ser organizada sob nova égide, criaram-se as condições necessárias a coletivização do seguro social, à ampliação dos direitos da população e ao rompimento da restrição que tornavam os serviços de políticas sociais uso exclusivo do cidadão-contribuinte. Após ampla reestruturação do modelo de funcionamento das novas políticas sociais, ampliaram-se os serviços não-contributivos e vislumbrou-se no país (ainda que de início no plano meramente formal) a possibilidade de universalização de acesso a seus serviços. O novo estatuto jurídico havia terminado com a relação direta e intrínseca entre a capacidade contributiva do cidadão e a garantia de seus direitos sociais.

A inclusão da assistência social no rol das políticas públicas, regularmente desenvolvidas pelo Estado, foi expressão direta dessa mudança que descrevemos. Pela ação de grupos e movimentos sociais organizados, a reivindicação por políticas de combate à pobreza, que oferecessem respostas às demandas da população por melhores condições de vida, foi levada ao Estado, primeiramente no plano nacional, logo após em nível local. Evidentemente, a eficácia de tais reivindicações dependeu sempre, de um lado, da capacidade de negociação política instaurada entre aqueles movimentos e o poder público e, de outro, do conjunto de transformações econômicas que ocorriam no capitalismo brasileiro e influenciavam decisivamente (geralmente agravando) as condições de vida da população.

Foi em função dessas duas condicionantes que a política de assistência social não chegou a responder plenamente às demandas colocadas pelos movimentos sociais que na década de 1980 se articularam pela melhoria das condições de vida da população. De fato, o sentido das reivindicações trazidas a público por aqueles movimentos, que cobriam um vasto leque, compreendendo desde a melhoria dos serviços públicos nas áreas de educação e saúde até a luta contra a carestia e pelo aumento dos salários urbanos e rurais, dizia respeito à constituição de um sistema de proteção social comparável, em abrangência e eficácia, aos dos países capitalistas desenvolvidos. A transição iniciada com a abertura política e o avanço eleitoral das oposições, no início da década de 1980, acrescentava a esse ideário o objetivo de reconstrução do Estado de Direito no país e a busca de uma democracia substantiva, na qual não apenas os direitos civis e políticos, mas sobretudo os direitos sociais fossem garantidos ao cidadão.

Com efeito, apesar do importante avanço conquistado por seus preconizadores, durante o período da Assembléia Nacional Constituinte, que resultou na circunscrição da assistência social entre o conjunto de políticas componentes do sistema de seguridade social brasileiro, somente no ano de 1993, quando da aprovação e sanção da legislação infra-constitucional destinada a sua regulamentação, a abrangência e o funcionamento da assistência social foram estabelecidos. Nesse ínterim, entretanto, o cenário político nacional havia sofrido importantes modificações, os movimentos sociais haviam perdido seu ímpeto anterior e sua capacidade de barganha política havia minguado, diante do avanço das forças políticas conservadoras. Por sua vez, essas forças iniciaram no aparelho do Estado uma reorganização destinada a implementar os princípios da política neoliberal, que professavam ao mesmo tempo que se aprofundava a crise fiscal das três esferas de governo. Como conseqüência, não apenas a regulamentação da assistência social foi continuamente postergada, mas sua forma final mostrou-se amplamente insuficiente para produzir respostas às demandas colocadas pelos movimentos sociais, que se organizaram em torno de sua reivindicação.

Desse modo, é lícito concluirmos que, no plano nacional, tal como o entusiasmo da abertura democrática e as esperanças de que através dela se produziriam melhores condições de vida e maior igualdade social não se concretizou. Também, a consolidação da assistência social, como política pública universal, descentralizada e participativa soçobrou – ao menos até o presente – em face dos obstáculos políticos e administrativos que se opuseram a sua efetivação. No campo dos entraves administrativos, podemos destacar a subordinação da estrutura de gestão de assistência social como um apêndice do Ministério da Previdência Social, à alocação de políticas destinadas a segmentos alvos da assistência social em órgãos estranhos a sua gestão, da qual a subordinação da política de atenção à criança e ao adolescente ao Ministério da Justiça é o exemplo mais evidente e, por fim, o traço particularista imprimido pelo governo federal nas ações de assistência social que desenvolve – do qual, o programa “Comunidade Solidária” é o ponto culminante (PEREIRA, 1998).

De modo geral, essas condicionantes administrativas resultaram de opções políticas, cujo sentido último é a manutenção do conteúdo privativista e voluntarista na política de assistência social, possibilitando o uso clientelista de seus serviços, tanto na relação entre o poder público e as instituições prestadoras de serviço quanto no trato dos serviços com os usuários aos quais se destinam. Além disso, a opção do governo federal por centralizar, em sua esfera de decisão, a realização de ações assistenciais de intervenção direta, em flagrante contradição com o disposto na LOAS, deixa entrever a intenção governamental de impingir à assistência social um modelo autoritário de administração, que anula a possibilidade de representação legítima da sociedade civil, na esfera federal, na gestão da assistência social, e impede a formação de uma base social articulada em torno de suas reivindicações.

Nos municípios, o rebatimento dessas opções políticas pode ser observado num nível bastante imediato. É na esfera local que se materializa a contradição existente entre a garantia formal dos direitos sociais aos cidadãos e a insuficiência dos serviços e políticas sociais disponibilizados para o atendimento à população. É também nos municípios que se sofrem os efeitos da modernização econômica em curso, através de expressivos aumentos nos índices de exclusão econômica e social entre seus habitantes. Entretanto, a despeito disso, os municípios brasileiros pouco puderam fazer historicamente, no sentido de ampliar o sistema de proteção social, fragilizados que estão pela ausência de autonomia financeira e pela premente necessidade de equilíbrio orçamentário, que a crise fiscal impõe ao setor público brasileiro.

Soma-se às dificuldades financeiras dos municípios a hegemonia de concepções políticas conservadoras, que repudia a assistência social, enquanto política legítima de desenvolvimento, tolerando-a apenas como medida paliativa e compensatória aos desequilíbrios econômicos e sociais gerados em seu curso. O percurso histórico de implantação da assistência social descentralizada nos municípios brasileiros passa necessariamente pela superação de tais concepções, a fim de alcançar a formação de um consenso político – ainda que relativo – que justifique e dê sustentação aos novos paradigmas existentes na legislação social em vigor. Em suma, a possibilidade de implantação com sucesso de políticas de assistência social descentralizadas nos municípios requer a formação de uma base social local, capaz de legitimar, por sua ação política e institucional, a aplicação de recursos escassos em novos programas e serviços destinados a uma população de não-contribuintes.

Três condicionantes antagônicas influíam sobre a formação da demanda por políticas locais de assistência social e das condições de sua execução. De um lado, a forte limitação de recursos financeiros disponíveis – que tanto mais se agrava quanto menor e mais pobre fosse o município em questão – e o generalizado sucateamento da estrutura de serviços públicos – que, no caso da assistência social, deságua na obsolescência do corpo técnico existente nas prefeituras e, em grande morosidade, no aprimoramento administrativo necessário à implementação dos novos serviços previstos pela LOAS – impunham severas restrições às possibilidades de desenvolvimento de uma política de assistência social abrangente e eficaz em âmbito local; de outro, o aumento dos níveis de pobreza determinado pelos crescentes índices de desemprego, pela precariedade dos postos de trabalho e pela concentração de renda, que marca o panorama econômico do país naquele mesmo momento, torna ainda mais crítico o quadro social dos municípios e amplia a necessidade de serviços assistenciais por parte de suas populações.

A superação dos fatores limitantes, que condiciona sua ação na Constituição, implementação e desenvolvimento de suas políticas locais de assistência social significa, para as administrações municipais, mais do que o mero cumprimento do disposto na legislação social brasileira. Historicamente, o município no Brasil concentrou muito pouco poder político, e sua capacidade de intervenção nos rumos do desenvolvimento econômico e social encontrou-se sempre limitada pelas políticas desenvolvidas através das esferas superiores de governo, quando não anulada por elas. Foi a partir da promulgação da nova Constituição Federal que se inaugurou um novo pacto federativo, no qual passou a competir aos municípios, enquanto entes federados, o desenvolvimento de políticas públicas autônomas, cujo efeito é decisivo sobre os rumos do desenvolvimento nacional. Desde então, grande parte da legitimidade dos governos locais passou a residir na capacidade de responder eficazmente às demandas sociais da população, implementando políticas públicas que produziam melhorias nas condições de vida da população de seus municípios. Desse modo, o consenso político que necessitava ser estabelecido para a sustentação da política de assistência social nos municípios constitui um capítulo adicional à formulação do novo papel que o pacto constitucional de 1988 reserva às administrações públicas municipais no Brasil.

Esta reflexão leva-nos a apresentar a forma como esse consenso pôde ser formado nos municípios da região da AMEPAR-PR. Tendo como horizonte de análise o paradigma político, técnico e administrativo do momento anterior à descentralização da assistência social, descrevemos as principais modificações implementadas, enfatizando a questão de saber em que medida transcorreram com sucesso a ampliação da participação popular e a formação de um controle social legítimo em sua gestão. Em particular, propusemo-nos analisar a ação dos novos sujeitos políticos que se constituíram neste processo, que se fizeram presentes nas Conferências e nos Conselhos Municipais de Assistência Social e que tiveram de se defrontar com a herança histórica da assistência social na região.

A cultura política hegemônica na região associava o fenômeno da pobreza à marginalidade social. Por sua vez, a maioria dos governos locais, se toleravam carrear recursos para os serviços assistenciais, pouco se mostravam comprometidos com a realização de programas extensos de ação social, contentando-se em patrocinar iniciativas pontuais e assistemáticas, geralmente operacionalizadas por intermédio de instituições não-governamentais. Saliente-se que essa maneira de proceder encontrava ampla aprovação dos segmentos sociais organizados em torno da assistência social, porque possibilitava a reprodução de seu modo de trabalho, ancorado nos valores da filantropia e do voluntarismo. Tudo isso somado resultou numa herança histórica contraditória aos princípios e diretrizes preconizados pela LOAS, que se manteve no momento posterior a sua promulgação: negação dos direitos sociais dos cidadãos e preponderância dos serviços assistenciais não-governamentais, de caráter meritório e a cargo de instituições filantrópicas.

Com efeito, a implementação dos dispositivos previstos na LOAS exigiria, dos municípios estudados, um grande esforço, a fim de inverterem a lógica da gestão tradicionalmente instituída para a assistência social e afirmarem a primazia do Estado na condução de seus serviços. Isso implicaria, num primeiro momento, num progressivo aumento no aporte de recursos para a área, destinados a subsidiar o incremento dos serviços em funcionamento e a propiciar a criação de novos serviços necessários para fazer frente à crescente pauperização de sua população, especialmente no meio rural; mais adiante, seria necessário também reformular a gestão da assistência social no município, modificando as bases sob as quais, se assentavam as relações entre o poder público e as instituições não-governamentais prestadoras de serviço e ampliando os espaços de participação popular na definição de seus objetivos, prioridades e recursos. Todavia, nem os municípios dispõem de maiores somas de recursos próprios, nem os governos locais pretendem arcar com o ônus de deslocar as instituições não-governamentais da posição central e privilegiada que sempre ocuparam na condução das ações de assistência social, nem a sociedade civil encontra-se organizada o suficiente para exigir maior participação nas decisões sobre a política. Ao contrário, em muitos municípios, processa-se uma redução do montante de gastos com a assistência social 1 , a atuação dos representantes da sociedade civil no CMAS torna-o um fórum de repasse de recursos e a participação de segmentos de usuários na discussão dos rumos da política obteve pouca expressão e reduzida eficácia. Em outras palavras, o cenário no qual deveria ocorrer a transferência de responsabilidade do setor não-governamental para os governos locais, sobre a condução da política de assistência social, mostra-se completamente inóspito a tal iniciativa.

Uma variável política particular reforça ainda mais as dificuldades que enunciamos acima. Como a maioria dos municípios da região são de pequeno porte, possuindo menos de vinte mil habitantes e guardando características essencialmente rurais em sua vida social, as relações estabelecidas entre os diversos sujeitos políticos da assistência social e a população correntemente extrapolavam o universo político e profissional e incorriam no universo pessoal, em que os laços de vizinhança e vida comunitária pautam a confiança depositada no interlocutor. Sobre os usuários dos serviços de assistência social, ainda mais suscetíveis a esse tipo de influência, em função da privação econômica que vivenciam, essa condição sui generis propicia aos sujeitos políticos exercer todo tipo de ação subordinante, reduzindo drasticamente as chances de prosperar alguma forma de organização autônoma, que logre representar legitimamente seus interesses no contexto político local.

Noutras palavras, para o caso da maioria dos municípios estudados, todos os elementos que compõem o cenário da assistência social conspiram contra o sucesso de sua descentralização e da democratização de sua gestão. Por isso, como vimos nos capítulos 4 e 5 de nosso trabalho, as influências mais importantes que contribuíram para a implementação da assistência social descentralizada na região sobrevieram de circunstâncias exógenas ao universo político daquelas localidades. Três delas merecem ser recordadas nessa nossa conclusão: a ação política do governo estadual, condicionando à criação dos Conselhos e Fundos Municipais de Assistência Social o repasse de verbas aos municípios; a ação do grupo social da AMEPAR-PR, influindo sobre a postura dos prefeitos e gestores municipais da assistência social e arregimentando parceiros nos municípios para a defesa dos princípios da LOAS; e, finalmente, mas não menos importante, a decisiva tomada de posição dos assistentes sociais das prefeituras e instituições não-governamentais, que se propuseram a disseminar e a defender os princípios e diretrizes propostos na LOAS, buscando legitimar a descentralização político-administrativa pretendida.

Das três influências exógenas que destacamos, apenas a última parece ter sido pouco avaliada em nosso trabalho. Não podemos, entretanto, concluí-lo, sem explicitar a importância que teve no processo de transformação das circunstâncias políticas formadoras da prática de assistência social na região. De fato, a presença de profissionais do serviço social de recente formação e afinados com uma visão de intervenção profissional de vanguarda propiciou que se reproduzisse, no contexto regional, aquilo que já ocorrera no âmbito nacional, quando da formulação de novas bases para a política de assistência social no país. Pela ação desses profissionais, pôde-se afirmar a assistência social como política de luta por direitos sociais dos cidadãos, em substituição às concepções tradicionais que a vinculavam à prática da benemerência e recusava a lógica dos direitos para afirmar a concessão de benefícios aos seus usuários. Naturalmente, o avanço dessa nova proposta amplia os espaços profissionais em que atuam, demandando a intervenção profissional para a implementação da nova política de assistência social, ao mesmo tempo que dotava de maior legitimidade a ação do assistente social nas demais políticas sociais em funcionamento. Mas, o resultado mais importante dessa iniciativa foi, sem dúvida, a transição do antigo paradigma, no qual, a assistência social era executada sob a perspectiva do atendimento individual e sob a responsabilidade da família e da comunidade, para o novo, no qual, funciona através de serviços organizados em rede e sob a responsabilidade do Estado.

Por outro lado, também é fato que o contexto institucional no qual estes profissionais atuam é acentuadamente marcado por posturas clientelistas, corporativistas e muitas vezes privativistas, o que impede que se forme na região um movimento profissional fortemente politizado e participativo. Se lograram êxito na tarefa política que se propuseram realizar, foi porque souberam aliar-se a sujeitos políticos de outras esferas às quais tinham acesso – a Universidade, o grupo social da AMEPAR-PR, os Fóruns regionais e estaduais de discussão da política de assistência social – com os quais reafirmavam sua convicção da necessidade e oportunidade de criar patamares mínimos de conquista dos direitos sociais nos municípios. Por conta desse ambiente contraditório, a transição dos paradigmas, a que nos referimos anteriormente, ocorre por meio de lentas transformações, pouco a pouco inseridas na gestão das políticas de assistência social nos municípios.

Muito embora os contornos de uma nova política de assistência social já possam ser encontrados na quase totalidade dos municípios da região, faz-se necessário lançar nosso olhar para a variedade de perspectivas que se apresentam, ao considerarmos a razoável preponderância com que ainda se apresenta a oferta de serviços não-governamentais, em relação aos serviços governamentais na região. De fato, entre as etapas fundamentais a serem vencidas, parece encontrar-se a reestruturação da oferta de serviços assistenciais nos municípios, expandindo a oferta de serviços governamentais e fazendo-os funcionar em rede e sob a primazia da gestão pública, tendo como princípios a passagem de um sistema de proteção social individual para o coletivo, a transferência de responsabilidade da sociedade civil para o poder público, a superação da oferta voluntarista de serviços pela afirmação da oferta obrigatória do Estado, o reconhecimento do direito social dos cidadãos e uma efetiva ampliação da base social da política.

Do mesmo modo que, em relação à estrutura da oferta de serviços assistenciais aos usuários, também a atuação dos Conselhos Municipais de Assistência Social encontra-se fortemente condicionada pela presença hegemônica de instituições não-governamentais em seu interior. Modificar essa circunstância dominante, possibilitando a democratização na gestão da política de assistência social requer um duplo movimento: de um lado, ampliar e valorizar a participação dos novos segmentos sociais que têm se mostrado sensíveis à problemática da assistência social, tais como sindicatos e associações de bairro; de outro, insistir no debate político das posições assumidas pelos prestadores de serviço, propondo-lhes a crítica aos valores tradicionais que cultivaram e alternativas possíveis à atuação que têm desempenhado. A esse respeito, observamos que, decorrido um período apenas inicial da atuação dos CMAS, já podemos encontrar muitos casos de representantes de prestadores de serviço que passaram a assumir novas posturas, muito próximas da defesa da publicização e da democratização da assistência social, tanto no relacionamento que procuram estabelecer com o poder público quanto nas relações com instituições congêneres.

Enfim, não obstante o sensível progresso na formulação de uma nova política de assistência social para a região, o pequeno intervalo de tempo transcorrido, desde a promulgação da LOAS até o momento em que realizamos nossa pesquisa, ainda não havia permitido que se superassem importantes obstáculos à publicização e democratização da assistência social. Entre os grandes entraves que ainda se faz necessário remover, quatro devem ser destacados por sua influência nas perspectivas que se apresentam para a política na região:

a) a posição ambígua do poder público na adoção dos princípios dispostos na LOAS, muitas vezes adotada por servir melhor ao propósito dos governos locais de hierarquizar as reivindicações apresentadas pela sociedade civil, de acordo com seus interesses político-eleitorais, implicando num aceite ou rejeição das demandas postas pela população, a partir de critérios anti-democráticos;

b) a condição de monopólio possuída pelas instituições não-governamentais na representação de posições da sociedade civil na maioria dos Conselhos Municipais de Assistência Social em funcionamento na região; de fato, tal como historicamente sucedeu, as decisões das políticas municipais de assistência social continuam a ser majoritamente formuladas, em função dos pleitos trazidos por estes atores, que se colocam como porta-vozes principais – e quase que exclusivos! – das necessidades e perspectivas para o setor;

c) a rigidez na organização dos serviços assistenciais ofertados pelo poder público e pelas instituições não-governamentais, geralmente elaborados a partir de uma lógica institucional pré-estabelecida, o que impede que possuam versatilidade suficiente para o atendimento das várias situações que caracterizam a condição de vida dos usuários da assistência social; em função desta insuficiência das instituições, o acesso de grande parte dos usuários a seus serviços encontra-se interrompido, tanto pela desinformação da população em geral quanto aos tipos de serviços ofertados, como pela ineficácia dos serviços oferecidos para o atendimento às demandas concretas de seus usuários;

d) por fim, destacamos a ausência das temáticas da assistência social do debate público nos municípios estudados, tornando-se a assistência social um tema discutido apenas por aqueles segmentos diretamente interessados em sua gestão; como exemplo maior desse fenômeno, podemos apontar a pouca relevância dada ao tema na mídia local, que a tratam como assunto episódico, geralmente dando vazão a pontos de vista conservadores, em sintonia com a cultura política dos municípios.

Sem dúvida, a superação desses obstáculos à publicização e democratização da política de assistência social, na região depende intrinsecamente da politização das ações dos CMAS, levada a cabo pela introdução de novos sujeitos políticos, advindos de segmentos sociais hoje ausentes da discussão sobre a assistência social e capazes de construir novas formas de convivência democrática, que superem a maneira tradicional de ver os interesses políticos na assistência social sob a ótica da institucionalização da esfera pública. Trata-se aqui de formar no interior dos Conselhos um quadro de conhecimento, princípios e valores sintonizados com a nova política de assistência social, visando superar a ausência existente de mecanismos de controle social e de sentido de identidade comum, que contribuem para que a política de assistência social mantenha seu caráter flutuante e facultativo, à mercê das posições político-ideológicas tomadas pelos governantes locais. Ou, de modo mais direto, trata-se da instauração de uma nova lógica, regida por princípios democráticos participativos, que no caso da assistência social necessita formular, através da ação do poder público, minuciosos mecanismos de comunicação e informação, destinados a proporcionar a ampliação da participação popular, a propor a desinstitucionalização e a privilegiar a oferta de serviços governamentais de base comunitária às populações locais.

Dessa forma, acreditamos que a ação dos novos sujeitos políticos da assistência social na região aponta para a necessidade de propor programas e serviços governamentais de cunho comunitário e aberto, em substituição aos hierarquizantes e institucionalizados, que logrem assimilar com maior eficácia as demandas oriundas dos novos usuários da assistência social e possibilitem que estes exerçam o controle social de seu funcionamento. Trata-se, em suma, de transpor para a esfera da prestação de serviços os novos elementos da cultura política que se está forjando na convivência dos Conselhos, a partir da contribuição política desses novos sujeitos. Para tanto, faz-se mister repensar a rigidez das estruturas administrativas, técnicas e políticas que na atualidade caracterizam o funcionamento da assistência social, a fim de adaptá-las ao novo perfil de seus usuários e às mediações produzidas na gestão democrática da política.

Paralelamente a isso, o direito à assistência social tem de permear as muitas instâncias organizadas dos movimentos sociais e com isso aumentar o número dos interlocutores desta política no espaço público. Um dos caminhos fundamentais é a criação desta perspectiva de direitos nos muitos segmentos constituintes da sociedade civil em geral, superando os tradicionais limites da assistência social restritos aos segmentos de usuários e prestadores de serviços e elegendo novos interlocutores. Trata-se, enfim, de partirmos da compreensão de que os direitos sociais são desigualmente acessíveis às diferentes classes sociais. A superação desta condição requer o reconhecimento da identidade social dos segmentos mais pauperizados e sua aceitação como interlocutores políticos legítimos no trabalho de construção das novas formas de gestão da assistência social, rumo ao objetivo da universalização dos direitos sociais.


NOTAS

1 No período que estudamos, apenas quatro dos dezenove municípios ampliaram seus gastos com a assistência social, enquanto todos os demais diminuíram o montante de recursos destinado a área. Entretanto, apenas uma análise sobre a forma e natureza desses gastos, que revelasse a destinação final dos recursos utilizados, poderia nos propiciar alguma conclusão sobre o efeito dessa redução para a política de assistência social nos municípios. De todo modo, parece ser claro que o efeito mais imediato de tal diminuição de recursos financeiros consiste na retirada de serviços governamentais de área de ação estratégica e na manutenção de uma política de assistência social de base eminentemente filantrópica. [volta]


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