EQUIDADE E EXCLUSÃO SOCIAL SOB O PRISMA DO FINANCIAMENTO À SAÚDE NO BRASIL
Vera Maria Ribeiro Nogueira*
* Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestre em Serviço Social. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem – UFSC, vera@mbox1.ufsc.br

RESUMO

A análise de itens do financiamento em saúde indica como as proposições de ajuste estruturais sinalizam para o aumento da exclusão social através do tipo de gastos e programas realizados. As rubricas financiadas permitem inferir como o modelo de assistência persiste centrado no trato da doença não focalizando o processo saúde-doença e os gastos confirmam a prevalência do setor privado em detrimento do público. A prioridade conferida ao Programa de Saúde da Família ratifica a seletividade e discriminação positiva.

Palavras-chave: eqüidade, igualdade, financiamento em saúde, gastos em saúde.


O que se pretendeu com este estudo foi:

a. estabelecer uma referência avaliativa exeqüível e de fácil domínio para os profissionais que atuam na saúde, a partir de informações acessíveis e públicas, como são as propostas orçamentárias e os relatórios financeiros dos agentes gestores municipais, estaduais e federal. A preocupação com o significado da alocação dos recursos é que a sua apreciação permite visualizar o encaminhamento e o paradigma ético-político que informa sua destinação. Conforme ressalta Medeiros (1999) as decisões sobre como serão alocados os recursos de saúde não são decisões diretas dos interessados mas mediadas pelas instancias representativas e pelo próprio poder executivo. Tendo em vista tal fato

... argumenta-se que é essencial a clareza em relação às diretrizes das políticas públicas e que essa clareza depende da explicitação dos paradigmas de justiça subjacentes à formulação de tais políticas. Mostra-se que igualdade e eqüidade fundamentam, respectivamente, estratégias de universalização e focalização nas políticas sociais, ressaltando algumas implicações da adoção dessas estratégias, tanto no caso geral quanto no caso dos bens públicos, para concluir que, sob a perspectiva da epidemiologia, a produção do benefício generalizado à saúde da população pode ser conseguida com base ora na focalização, ora na universalização (Medeiros, 1990, p. 1).

b. evidenciar como as proposições de ajuste estrutural, implementadas no Brasil, na década de 90, parecem estar relacionadas com um ideal de eqüidade em saúde que sinaliza para a ampliação da exclusão social.

A eqüidade vem se tornando uma palavra polissêmica e sendo usada indistintamente por atores sociais de distintos perfis ético-políticos – tanto governamentais como não governamentais – e substituindo, em muitas situações, a igualdade proposta pelo Sistema Único de Saúde

A finalidade última da presente reflexão é subsidiar os profissionais de saúde e sujeitos políticos comprometidos com a garantia e a ampliação dos direitos sociais, tais como estão postos na Constituição Brasileira de 1988, através da evidência de como o financiamento, no plano federal, vem privilegiando um modelo sanitário excludente, que consolida a situação atual, contrariando, assim, a falácia do discurso governamental de universalização da atenção à saúde.

Referências Teóricas

O direito social à saúde têm permeado a atual agenda política nacional. De um lado, setores do segmento popular democrático tentam reduzir os impactos das medidas econômicas de ajuste, buscando, no plano institucional ampliar recursos de ordem fiscal para a área. De outro, sujeitos políticos articulados com as propostas governamentais preconizam uma redução dos investimentos em saúde, propondo formas que se pretendem mais eficientes para reduzir as desigualdades, pautando-se pela ótica da necessidade e não do direito. Essas duas proposições irão refletir sobre o modelo de saúde adotado e as formas de sua implementação.

Permeando e mesmo construindo estas antinomias encontram-se os princípios que fundam as democracias modernas – liberdade e igualdade. Na saúde estes princípios se traduzem, operacionalmente, em escolhas quanto a tipos de assistência, seletividade, amplitude de cobertura e cuidados. Cada uma das escolhas condiciona e reflete patamares diferenciados de financiamento e também a natureza e a lógica interna dos agentes responsáveis pela atenção à saúde.

A definição das prioridades acima indicadas vêm sendo feita, nos últimos anos, a partir de uma subversão no paradigma de saúde, apontada oportunamente por Berlinguer (1999). Essa subversão apresenta um múltiplo reducionismo – na visão de saúde, no foco em fatores individuais de saúde e doença, na proteção seletiva aos pobres, na saúde vinculada à aspectos essencialmente financeiros e ao que define como trágicas escolhas, isto é, “para quem”. Tal alteração parecer ser a responsável pelo crescimento de grupos e iniciativas que recolocam em pauta o debate pela eqüidade na saúde:

Revistas científicas qualificadas começaram a escrever intensamente sobre isso, agências internacionais (como a OMS e também o Banco Mundial) começaram a falar sobre o tema e associações internacionais a incluí-la em seus programas, e o problema foi posto na agenda, com mais rapidez e força do que se poderia esperar nos anos 90 (Berlinguer, 1999, p. 65).

Observa-se, também, que na literatura referente as políticas de saúde, cada vez menos se usa o princípio da universalidade – Saúde para todos no ano 2000, da Organização Mundial da Saúde, tendo sido o mesmo suprimido das agendas dos organismos financiadores e de cooperação técnica internacionais, a partir de 1 996, na Conferência da Suécia, quando se reconheceu o fracasso em se chegar a tal alvo. Ao discurso universalista vem se opondo, fortemente, a idéia de equidade, a qual contém, em si, o princípio da diferença e também, de forma técnico-burocrática e utilitarista, o da eficiência.

Nesta compreensão o uso reiterado do discurso sobre eqüidade e não igualdade, pelo Banco Mundial, Organização Mundial da Saúde – OMS, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, Comissão Econômica para a América Latina e Caribe – CEPAL, vem ocasionando a mudança do paradigma ético-político na saúde. Evidente que os financiamentos estabelecidos com algumas dessas agências financiadoras deram materialidade a tais proposições. A eqüidade para o Banco Mundial, em todos os documentos estudados na área da saúde e mesmo em outras áreas, como por exemplo a educação, se traduz em focalização e discriminação positiva de grupos de risco.

No Brasil, a longa demora na aprovação da legislação complementar sobre a Seguridade Social apontou um retrocesso no discurso governamental no que se refere aos direitos sociais, especialmente a saúde e previdência. Na saúde, a pressão dos interesses de grupos privados e da burocracia estatal, contribuíram para retardar, através de diversos expedientes e práticas, tal aprovação. Essa inflexão se subordinou, principalmente, às orientações normativas dos organismos financiadores internacionais para implementação das políticas estruturais de ajuste econômico. Nesse sentido, uma das medidas essenciais seria a redução das funções do Estado, tendo em vista sua incapacidade em cumprir as funções regulatórias entre o capital e o trabalho e, no limite, regular os três princípios que, formalmente, fundam a sociedade moderna: igualdade, liberdade e fraternidade.

As sugestões do Banco Mundial (1993) para o reordenamento do Estado, no sentido de superar a crise e renovar sua eficácia enquanto instância reguladora, compreendem o encaminhamento de ações que garantam um desenvolvimento sustentável e que resultem em redução da pobreza através do retorno à governança e do estímulo ao livre mercado revitalizando para tanto sua capacidade institucional e eliminando os obstáculos às mudanças pretendidas.

No que se refere ao Estado, as mudanças que vêm sendo processadas se traduzem em alterações jurídico – formais nas mais diferentes áreas, entre as quais a que se refere a concepção e garantia de direitos, especialmente os da Seguridade Social, reduzindo o papel estatal nos mecanismos de proteção social e alargando as fronteiras do espaço privado.

Certamente, isso representa um deslocamento das preocupações dominantes nos processos de democratização, em que o reordenamento das políticas sociais estava diretamente associado à participação e gestão democráticas e à adequação da estrutura do gasto e financiamento à geração de igualdade e de proteção social com claras tendências universalistas (Tapia & Henrique, 1997, p.4).

Na área da saúde é paradigmático o documento do Banco Mundial, publicado em 1993, que sinaliza para a restrições das funções estatais e ampliação do papel do mercado para financiar e implementar serviços de saúde. Torna-se necessário, assim, remodelar não só o Estado mas também as suas formas de relação com a sociedade civil.

Os debates remetem a um novo olhar sobre os direitos, indicando que sua concepção poderá ocorrer sob uma outra racionalidade, a utilitarista, a econômica, onde a igualdade social perde seu sentido: “...y propender a un nuevo contrato social que abarque la sociedad toda, requiere probablemente deslindar el objetivo de la igualdad política del de la eificência económica a efectos de las articulaciones de las relaciones Estado-sociedad” (Grau, 1998, p.4). A autora, ao propor a cisão entre igualdade política e eficiência econômica rompe com a ética da liberdade e igualdade que fundamenta a estruturação dos direitos sociais colocados hoje.

Quando se traz à tona os direitos sociais, visto que requerem investimentos públicos ou privados para sua realização, entra-se no terreno da economia normativa, que avalia os critérios de escolha para definições de bem estar coletivo e consequentemente a questão da justiça distributiva. Ao se aliar o critério da eficiência com o da igualdade (questão da justiça na distribuição do bem estar) passa-se a falar em eqüidade .

Van Parijs (1997) ao procurar conciliar a preocupação da eficiência com a eqüidade, elabora uma síntese dos três critérios de distribuição eqüitativo referentes aos níveis de vida. Trata inicialmente da eqüidade como proporcionalidade, em seguida da eqüidade como maximin (Rawls, 1997) e por último, como não inveja.

Em relação à primeira, descarta sua possibilidade uma vez que estudos demonstram que “em algumas situações a equidade, longe de se constituir um compromisso honroso entre igualdade e eficiência, se afasta da eficiência e ainda mais da igualdade”(Van Parijs, 1997, p.144).

Em relação a equidade como maximin, questiona-se como aferir o que é o máximo para uns e outros. Em outros termos, a não ser em termos de princípios gerias e abstratos, torna-se difícil compatibilizar as diferenças entre atributos do bem estar. Fica presente o que os economistas denominam os gostos dispendiosos. Rawls (1997) contorna esta situação com a indicação de bens primários e não em termos de utilidade ou de bem estar.

Ainda para Van Parijis (1997), a equidade como não inveja foi pensada pelos economistas justamente para resolver o problema dos gostos dispendiosos, dando conta da eficiência e da igualdade. Os autores partidários desta possibilidade partilham a concepção que uma distribuição é eqüitativa quando as pessoas não tem inveja uma das outras. Pressupõe um mercado justo e onde as trocas fossem resolvidas nesta base, o que anula suas possibilidades concretas., uma vez que tal mercado não existe. Assim, queda irresoluta a possibilidade de eqüidade – igualdade mais eficiência.

As observações acima permitem concluir que o princípio da equidade começa a aparecer quando se amplia a posição da teoria econômica normativa na justiça distributiva. Quando se adentra ao reino das necessidades, das condições de existência concreta e da troca, via mercado, amplia-se o questionamento do que é eqüitativo ou não. Passa-se a refletir sob a lógica da eficiência, das necessidades e não mais dos direitos igualitários.

A inclusão da eqüidade no debate em saúde, no Brasil, data de final da década de 80, com as primeiras produções críticas sobre a iniquidade do sistema de saúde brasileiro em decorrência de diversos fatores que são elucidados por especialistas na área. Conforme afirmado anteriormente, especificamente partir de 1993, com as proposições do Banco Mundial e da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a polêmica do que significa igualdade e eqüidade em saúde é reposta. As bases desta recolocação fundam-se no conceito da Organização Mundial de Saúde, que define operacionalmente eqüidade como criação de iguais oportunidades em saúde.

A partir de 1998, conforme Giovanella (1996, p.14),

A discussão dos significados de eqüidade no campo da saúde adquire especial importância à medida que os programas de ajuste vêm acompanhados de propostas, difundidas pelas agencias internacionais, para a implementação de políticas sociais residuais e seletivas em nome do alcance de maior eqüidade.

Eqüidade e igualdade vêm sendo usadas indistintamente, propiciando uma obscuridade nos discursos, tendentes a inviabilizar uma reação dos agentes interessados na manutenção da universalidade.

No plano ético-político, como alertado anteriormente, as conseqüências de tais distinções são fundamentais: as proposições dos organismos internacionais de fomento ao desenvolvimento, sem exceção, vem utilizando o conceito de eqüidade e não o de igualdade. Propõem a redução da pobreza e não a igualdade entre os sujeitos, o atendimento à grupos focalizados, indicação de grupos de atenção que tenham maior visibilidade social, maior aptidão e possibilidade de atenção a menor custos.

O discurso da eqüidade por agências internacionais como o Banco Mundial tem associado a prioridade da eficiência ao alcance da eqüidade. Nessas propostas prepondera o argumento da eqüidade vertical (tratamento desigual para desiguais). As orientações são para selecionar como prioridades as intervenções que resultem em maior número de anos de vida ajustados por qualidade de vida a um menor custo (Banco Mundial, 1993).

Subsidiando as propostas políticas hegemônicas, Médici & Seixas (apud Costa & Ribeiro, 1996, p. 26) afirmam que o conceito de equidade vem sendo usado como meio e não como um fim, o que vem ocasionando o fracasso das estratégias de políticas de saúde universalistas.

Pensar a equidade como meio significa montar sistemas de saúde iguais, com escalas iguais, com calas de remuneração iguais, estruturas administrativas iguais, fornecendo serviços iguais para todos (...) As sociedades latino-americanas são intrinsecamente desiguais. Essa desigualdade se expressa, inclusive, em termos de acesso aos serviços de saúde. Portanto, oferecer meios iguais para desiguais não propicia a equidade no alcance da meta. Ao contrário, aumenta a desigualdade de acesso aos serviços. Para atingir a equidade, mesmo em termos de serviços de saúde é necessário tratar desigualmente os desiguais (Médici & Seixas apud Costa & Ribeiro, 1996, p. 26-27).

Estas afirmações, a primeira vista, em virtude das grandes iniquidades do acesso aos serviços e possibilidades de atenção, soam convincentes. O risco embutido é a busca da igualdade via intervenção pontual e localizada em grupos de risco favorecer a instituição de sistemas de atenção à saúde para tipos diferenciados da população, criando patamares distintos e não universais de cidadania.

Utilizou-se, para argumentação e evidência da presente reflexão, a proposta de financiamento para a área da saúde aprovada para 2000 e os gastos realizados pelo Ministério de Saúde e setores privado puro e supletivo (operadoras de seguros saúde, cooperativas médicas, etc), por tipologia de rubrica, nos anos 1993 a 1998. Os dados foram obtidos e sistematizados pelo Assessor do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde, Gilson Carvalho. Foi definido como ano inicial 1993 pois coincide com a publicação do documento do Banco Mundial sobre a saúde na América Latina, o qual contem as orientações centrais para as propostas de reforma. A análise dos valores apresentados relacionando-os com as categorias analíticas possibilitou a indicação de conclusões que passam tanto pelo eixo ético-político como técnico-operativo da ação dos trabalhadores de saúde.

Em relação as estimativas de gastos com saúde no Brasil os números, em dólares são os indicados abaixo:

Tabela 1 – Gastos com saúde no Brasil (1993/1998).


Setor               1993      1995      1997     1998
Público            11,2       18,8       24,1      29,3
Supletivo          6,5         10,0       15,0     18,0
Privado puro-    2,0         2,5          3,5       3,5
Total              19,7       31,3         42,6     50,8

Em U$. Fonte: Carvalho, 2000.

Tabela 2 – Variação percentual dos gastos com saúde no Brasil


Setor               1993-1995      1995-1997     1997-1998
Público              67,85              28,19             21,57
Supletivo           53,84               50                 20
Privado puro-     25                    40                 00 


Fonte: Carvalho, 2000.

Entre 1993 e 1995, houve uma ampliação significativa dos gastos públicos, da ordem de 67,85 % ,o que pode ser explicado pela implementação da NOB 93 e o aporte de recursos outros, conforme indica Melamed (1996, p. 45):

Em 1993, a contribuição sobre folha de salários foi em parte substituída por recursos do tesouro e contribuições sobre o lucro líquido e em 1994 manteve-se equivalente participação da contribuição sobre o lucro e introduziu-se, como fontes, os depósitos judiciais do Confins e Fundo Social de Emergência composto em mais de 40% por contribuições sociais. Por último, 1m 1995 cresceu ainda mais a participação do Cofins de da Contribuição sobre o Lucro Líquido no financiamento da saúde e decresceu em importância a participação do Fundo Social de Emergência.

Nos períodos subsequentes houve a redução dos recursos, o que confirma tanto o declínio econômico em que entrou o país como a obediências às orientações para o ajuste estrutural da economia brasileira.

Outra evidência, apontada pela tabela acima, diz respeito a composição dos gastos em saúde, que vem se mantendo constante, isto é, os gastos públicos perfazem entre 57,57% e 60,06% do total, enquanto os gastos do setor privado oscilam entre 39,92% e 43,42%. Convém observar o mix que ocorre no país entre o público e o privado, no caso específico, não se computou no gasto privado, os recursos públicos que são repassados pela via indireta, como o uso dos recursos humanos, hospitais e equipamentos públicos que viabilizam, especialmente, a atenção médica e hospitalar.

Tabela 3 – Gastos com Piso Básico e Média e Alta Complexidade – Tetos Financeiros Federais realizados em 1998 e previstos para 2000.


Rubrica                             1998            2000        Variação
PAB - Fixo e Variável        2.185           2.509        14,48%
Média/ Alta Complexidade 7.279           9.488        30,35%
Total do Teto Financeiro    9.464          11.998       26,77%

Em bilhões de Reais. Fonte: Gilson Carvalho, 05/05/2000.

A tabela aponta, incontestavelmente para o modelo ainda hospitalocêntrico e biologicista predominante ainda no país. Os serviços de atenção básica, em 1998, que dariam conta de elevar a qualidade de vida e saúde da população corresponderam a apenas 23,08%.enquanto os serviços de média e alta complexidade correspondem a 76,91% dos gastos federais. Em 2000, o percentual do PAB foi reduzido para 20,91% do gasto total e ampliados os gastos com procedimentos de alta e média complexidade para 79,07% do total do teto financeiro. Tais proporcionalidades indicam a falácia no discurso governamental de aumento dos recursos em saúde, uma vez que, tanto não vem seguindo as diretrizes do SUS como ainda vem mantendo e ampliando o modelo centrado na cura da doença e não na busca da saúde.

Houve, ainda, uma redução do teto financeiro global, o que, em princípio, não significa diminuição dos recursos, pois sempre o recurso à suplementação orçamentária é utilizado pelo executivo federal no decorrer do ano.

Tabela 4 – Proposta Orçamentária Federal para 2000.


Tetos Financeiros                                 2000           Percentual
PAB Fixo 1                                      759.000,00          15,6
Nutrição                                           166.000,00           1,3
Farmácia                                         164.000,00            1,3
PACS – PSF                                   379.000,00            3,1
Vigilância Sanitária                            41.000,00            0,3
Total Piso Básico                          2.509.000,00           21
Teto Livre – Média Complexidade    8.326.000,00          69,4
Alta Complexidade 1                        161.000,00            9,6
Total Alta e Média Complexidade    9.487.000.00           79
Total da Assistência                     11.996.000,00         100

Em bilhões de Reais. Fonte: Carvalho, 2000.

Um detalhamento da proposta orçamentária para 2000 aponta a tendência do modelo de atenção à doença e não à saúde, com um incremento bastante alto no Programa de Agentes Comunitários de Saúde e o Programa de Saúde da Família, significando um investimento da ordem de 15,10% do total do Piso Básico, enquanto rubricas como Nutrição e Farmácia contam com apenas 6,61% e 6,53% do mesmo Piso. A vigilância sanitária também apresenta um percentual extremamente reduzido de 1,63 do valor do mesmo piso.

Com relação ao Programa de Saúde da Família, dentre os critérios estabelecidos para sua implantação nos municípios, o que se refere escolha de locais com alta densidade de população de alto risco, significa a focalização da pobreza, uma seletividade positiva para otimizar as verbas destinadas ao setor. Articulando essa observação com a prevalência que o Programa vem tendo em relação aos demais gastos, os quais contribuiriam, de forma inequívoca, para melhorar os indicadores de saúde brasileiros, fica patente o modelo e o conteúdo ético-político presente nas ações governamentais de âmbito federal.

Quando se relaciona os gastos com média e alta complexidade com os demais, é mais gritante o privilégio do setor privado. A inexistência ou o reduzido número de equipamentos públicos e recursos humanos obriga ao setor público a contratação de serviços privados de saúde. Como o Estado não tem critérios de qualidade estabelecidos para avaliar os contratos praticados e nem tradição de controle sobre os serviços prestados e os gastos efetuados, o que ocorre é uma atenção deficitária e centrada na doença.

O percentual de 79% de gastos com procedimentos de media e alta complexidade compreende os gastos praticados em hospitais públicos e privados, mas sabendo da composição dos setores envolvidos depreende-se que a maior parcela financeira permaneça na iniciativa privada, sem controle técnico e contábil eficiente.

Algumas Conclusões
Na área da saúde, os programas e a forma de atenção têm como conteúdo a focalização em grupos de risco em detrimento de uma atenção universal e igualitária como se depreende dos gastos realizados com o Programa Saúde da Família. Estas posições e propostas, como possibilidades aparentes de superação de desigualdades privilegiando os grupos de risco, ocultam uma futura regulação, a da cidadania social.

A própria forma de inclusão da população aos serviços e ações de saúde, após 1988, vem sendo caracterizada por alguns autores como universalização excludente, pois o aumento da demanda pelos serviços mencionados não foi devidamente acompanhado de investimentos e ampliação da infra estrutura necessária e adequada para tal. Não se pode desconhecer os mecanismos de dupla porta de entrada do sistema, a ausência de controle das verbas contratadas e dos gastos realizados.

O perfil dos gastos indica uma revitalização no modelo médico-assistencial privatista que consome grande parte dos recursos federais, com resultados iníquos em termos de resolutividade.

Face ao exposto, questiona-se se a definição de um percentual para a saúde nos orçamentos governamentais, não é uma faca de dois gumes. Tendo em vista o perfil dos gastos e a forma de alocação das despesas, a tendência á o aumento do repasse de verbas públicas para o setor privado. Por outro lado se reconhece que a não definição de fontes de recursos orçamentárias, a redução efetiva dos investimentos em saúde compromete a institucionalidade do Sistema Único de Saúde, uma vez que se distancia cada vem mais do ideal de acesso que pretendia garantir – universal e igualitária.

A utilização dos relatórios de gestão e orçamentos pode viabilizar um acompanhamento das diretrizes políticas dos governos. Sendo documentos públicos acessíveis e com periodicidade regular – uma das qualidades dos instrumentos avaliativos – permite identificar as tendências e retrocessos no Sistema Único de Saúde em cada município, estado ou no plano federal.


ABSTRACT

The analysis of certain items of the Health care financing program such as the type of expenses and the programs accomplished indicates that the propositions for structural adjustments tend to promote an increase in social exclusion. Grom the financed rubrics it is possible to infer that the model of assistance concentrates on the treatment of diseases and not on the health-illness process as a whole.

Key words: equality, healh funding, health expendiures.


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