MARX E O INDIVÍDUO
Sandra Regina de Abreu Pires*
* Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Serviço Social pela PUC-SP. Doutoranda em Serviço Social pela PUC-SP.

RESUMO

O texto tem como tema o indivíduo e a sua presença na obra marxiana. Coloca-se no sentido de sumariar, a partir da contestação de argumentos em contrário, alguns aspectos que demonstram não só a preocupação de Marx com o indivíduo mas também a fecundidade da Tradição Marxista para abordagens analíticas sobre o tema.

Palavras-Chaves: indivíduo, individualidade, marxismo.


Vivemos em tempos modernos (ou pós-modernos como defendem alguns) e nele uma preocupação redobrada com o indivíduo, preocupação esta que se expressa tanto em discursos como no crescimento de tematizações acerca de questões diretamente relacionadas a ele ou, no mínimo, afetas à Microssociologia.

As razões para sua recolocação como foco central em oposição à períodos anteriores, onde dominavam análises denominadas macrossociológicas, podem ser muitas. Porém, todas guardam relação direta com o momento histórico vivido, visto que uma temática ganha relevo quando, sob determinadas condições sociais, nasce a necessidade social de respostas.

Com a questão do indivíduo não é diferente. Se fizéssemos uma retrospectiva histórica de abordagens acerca dos problemas do homem, de sua relação consigo mesmo e com a sociedade, veríamos que elas ganham importância e proliferam em maior número em períodos históricos de crescimento de conflitos (objetivos e subjetivos), possibilitados por alterações mais ou menos intensas nas condições sociais postas.

É isso que temos hoje: um momento de transição (ou no rescaldo dela) para uma reestruturação conservadora do capital que impôs ao indivíduo singular e ao conjunto dos homens o enfrentamento de uma série de situações concretas que, em síntese, colocam objetiva e subjetivamente suas existências sob ameaça. Portanto, é um momento propício para inquietudes e para busca de respostas à perguntas nada recentes como, por exemplo, o que é o homem? qual é, ou qual deveria ser, sua relação com os outros homens? no que consiste sua felicidade? como garantir a ele o pleno desenvolvimento de suas capacidades e de sua individualidade?

A busca por respostas tem sido empreendida a partir de perspectivas teórico-metodológicas e ideológicas diferenciadas, inclusive por aqueles que insistem em manter-se sob filiação à Tradição Marxista. Para esses, no entanto, há dificuldades adicionais, algumas delas perpassadas pela constante reposição de críticas de que tal tradição, por sua dimensão abrangente e macrossocietária, não teria capacidade teórico-metodológica para fornecer as respostas demandadas.

É contra essas críticas e no espírito de desmistificá-las, pelo menos em parte, que este texto se coloca. Isto é, no sentido de sumariar alguns aspectos que demonstrem não só a preocupação de Marx com o indivíduo mas a fecundidade da Tradição Marxista para abordagens analíticas sobre o tema.

1. Marx e a Preocupação com o Indivíduo

A resposta às críticas de que o indivíduo não era uma preocupação para Marx exige situar a origem delas e, para tanto, lembrar, por um lado, a defesa quanto à cisão do mesmo em duas fases distintas (e opostas) e, por outro, o domínio, em um certo período da história do Marxismo, da vertente Marxista-Leninista – sustentáculo do Socialismo Real no plano ideário.

Quando, a partir da década de 50, fica definitivamente claro o caráter deformado do socialismo capitaneado por Stalin e os equívocos cometidos em nome do pensamento marxiano, abre-se espaço para a redescoberta de Marx enquanto humanista 1 , para a negação da tese dos dois Marx e, decorrentemente, para a recolocação da temática em lugar de destaque dentro da Tradição. 2

Desse modo, hoje é possível afirmar que não existem duas fases opostas ou dois pensadores distintos na trajetória de Marx – o Jovem humanista, autor dos primeiros escritos e o Maduro dogmático-materialista, autor de “O Capital”. Apesar da existência inquestionável de diferenças em termos de estilo e no emprego de termos, fato inclusive que motivou vários estudos efetivados com base em análise semântica, é fundamental a visualização de que há uma linha de continuidade em suas teses e concepções básicas.

O pensamento de Marx se constitui em uma unidade orgânica inseparável, com as idéias da juventude funcionando como uma espécie de guia sem o qual não é possível a compreensão da riqueza das obras da maturidade e estes, por sua vez, iluminam e ampliam as análises presentes nos primeiros.

Na tese de Scaff (1967), com a qual concordamos, o eixo central que permite essa linha de continuidade é justamente o problema do indivíduo em sua relação com a natureza e com a sociedade, tendo como preocupação central a libertação do mesmo das condições que lhe cerceiam e deformam – as pertinentes à sociedade burguesa (alienantes e alienadas).

É este eixo que permite visualizar a unidade orgânica existente quando Marx enfrenta posteriormente outras questões de natureza mais econômica: trata-se de uma lógica interna estabelecida com o propósito de desvelar a origem e os mecanismos de reprodução das condições de existência adversas ao desenvolvimento pleno do homem e à sua felicidade, ou seja, a gênese e o desenvolvimento da sociedade burguesa.

É sob este prisma que o autor pode defender como objetivo central de todo o empreendimento marxiano o que já estava presente em seus primeiros escritos, ainda que possa ser criticado como impreciso, imaturo e/ou não plenamente desenvolvido, a saber, a libertação do homem destas condições o que somente é possível integralmente quando a ordem do capital houver sido superada.

É sabido que a Tradição Marxista não se coloca como um bloco homogêneo, conservando várias polêmicas e divergências internas e que, assim, tal tese do indivíduo como eixo central e como objetivo pode não configurar-se como unânime. Porém, independente de posições divergentes nestes aspectos, pensamos que não há no pensamento marxiano ou na Tradição Marxista argumentos à favor de uma desvalorização do âmbito individual.

2. O Indivíduo no Pensamento Marxista

Em verdade, embora para nós esteja claro que a preocupação última de Marx era com o indivíduo e com sua libertação das condições sociais limitadoras de sua plena realização enquanto ser humano, é igualmente claro que ele não elabora algo que poderia ser intitulado de Teoria da Personalidade ou Teoria da Individualidade.

Em Marx, mesmo em seus primeiros escritos onde a temática é abordada com maior intensidade, não há algo que se aproxime disso. Todavia, é certo que no conjunto de sua obra 3 estão contidos elementos imprescindíveis para o desenvolvimento disso, direção para a qual caminham obras posteriores importantes dentro da Tradição como, por exemplo, “O Marxismo e o Indivíduo” de Adam Schaff, “Sociologia da Vida Cotidiana” de Agnes Heller e “Marxismo e a teoria da Personalidade” de Lucien Sève.

A enumeração de todos esses elementos não é possível no âmbito deste texto. Assim, nos contentaremos em enumerar algumas críticas quanto à inexistência ou a desvalorização da temática em Marx e, ao contestá-las mesmo que minimamente, destacar alguns deles.

Uma primeira grande crítica é a de que Marx, como economista, preocupou-se em analisar fenômenos econômicos e, por conseguinte, impossibilitou-se de discutir o indivíduo.

Logo de início há que desmistificar o fato de Marx ser um “economista” nos termos atuais; nem mesmo em seu tempo ele poderia assim ser qualificado. Boa parte de seus estudos foram realmente dedicados à Economia Política e, portanto, à fenômenos econômicos. No entanto, nenhuma das categorias marxianas como modo de produção, alienação, fetichismo, dinheiro e etc. podem ser identificadas como materiais ou econômicas stricto sensu.

Por exemplo, a análise crítica empreendida por Marx sobre o dinheiro na sociedade alienada – uma categoria incontestavelmente econômica, tem como ponto central a sua figuração como relação social. Ou seja, neste tipo de sociedade o dinheiro é o mediador universal na relação entre os indivíduos, bem como na relação deles com o mundo das coisas.

É o dinheiro que simboliza o poder de tudo comprar e consequentemente de tudo realizar e, simbolizando tal poder (que não tem origem nas forças essenciais do homem mas que o submete), a ele é transferido toda e qualquer possibilidade de realização do indivíduo.

O poder do dinheiro e a submissão do homem a ele não se expressam apenas nos quadros do significado material do possuir. Se expressam também na superioridade pessoal e social que é conferida àquele que o possui e na inversão que se processa nas qualidades humanas. Como ilustra o trecho abaixo, Marx (1989, p. 232) vê no dinheiro o poder de transfigurar qualidades em imperfeições e imperfeições em qualidades:

“Aquilo que eu sou e posso não é, pois, de modo algum determinado pela minha própria individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Por conseguinte, não sou feio, porque o efeito da fealdade, o seu poder de repulsa, é anulado pelo dinheiro. [...] O dinheiro é o bem supremo, e deste modo também o seu possuidor é bom.” (destaques no original)

Em síntese, sob relações alienadas a riqueza individual deixa de vincular-se à efetivação da essência genérica historicamente produzida pela humanidade para definir-se enquanto posse de uma quantidade significativa de mercadoria e/ou de seu meio possibilitador – o dinheiro, e este tipo de análise, empreendida com o mesmo cariz no tocante à alienação e à outras categorias, em nada se aproxima de uma abordagem estritamente econômica.

Outra crítica, a esta associada, é a interpretação do materialismo marxiano como “economicismo”. A afirmativa de que a chamada “base econômica” determina a configuração superestrutural não é equivalente a um determinismo econômico automático e monolítico. Aliás, não foram raras as vezes em que Marx reforçou o caráter de dependência e influência recíproca entre instâncias estruturais e superestruturais. 4

Implica apenas que Marx, no contexto da oposição ao idealismo de seu tempo (e também ao materialismo lá situado), defendia o primado do real. Vale dizer, as idéias, as representações, os juízos, enfim, a consciência, é condicionada pelas condições concretas de existência e não ao inverso.

É justamente por isso que Marx pôde afirmar que o ponto de partida não é o indivíduo abstrato, imaginado ou pensado. Ele é antes de mais nada um ser corpóreo, real e objetivo; um ser que tem existência material e que tem uma atividade vital que não se reduz à consciência, embora a envolva visto que é uma característica ontológica do homem o fato de ter uma atividade vital consciente e teleológica.

O ponto de partida é, então, esse ser vivente em suas condições concretas, até porque Marx não o vê como isolado e independente do gênero humano ou da sociedade determinada no âmbito da qual dá-se sua existência empírica. Ao contrário, o homem é um ser social e é na socialidade, na interatividade social (forma própria de existência do homem), mediante processo de apropriação do acúmulo histórica e socialmente produzido pelo gênero, que ele se forja verdadeiramente como humano.

Disto já se depreende que a individualidade do singular não é e não pode ser dissociada da genericidade. A atividade social dos homens, com sua base material, é que cria o meio onde o indivíduo vive e é apenas nesse meio, no “médium” criado pela interatividade social, que ele pode se constituir. É ela que cria as condições e os meios objetivos e subjetivos para a realização da forma própria de ser de cada singular, da individualidade entendida como a vida privada ou espiritual de cada um.

Na medida em que o indivíduo, ao nascer, já encontra postas estas circunstâncias sociais, porquanto independentes de sua vontade, podemos afirmar que ele é condicionado pelas mesmas, residindo aí a importância da consideração, em quaisquer análise sobre o homem, do tipo de sociedade na qual está inserido.

Porém, ser condicionado pelas circunstâncias não significa ter uma relação passiva com o preexistente, adaptar-se ou conformar-se ao dado. O homem é produto das condições sociais mas, por outro lado, é também um ser de criação já que elas são um produto seu:

“A história nada mais é do que a sucessão de diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, os capitais e as forças produtivas a ela transmitidas pelas gerações anteriores; ou seja, de um lado prossegue em condições completamente diferentes a atividade precedente, enquanto de outro lado, modifica as circunstâncias anteriores através de uma atividade totalmente diversa. (Marx & Engels, 1999, p. 70)

Eqüivale dizer que as circunstâncias estão postas, mas não estão dadas em definitivo e que o homem não é um ser passivo. A validade disto é tanto para o conjunto dos homens como fica explícito na passagem acima, como para o indivíduo singular. Isto é, ele é um ser que, ao apropriar-se do produzido, também objetiva-se nele. É um ser que, em um processo, através de sua atividade no interior das relações sociais, vai se compondo como um ser específico e imprimindo algo de seu às circunstâncias herdadas, modificando-as.

Fica negada, portanto, qualquer crítica que defenda como pertinente à Tradição Marxista a figuração do indivíduo como mero reflexo da sociedade, bem como de uma possível pretensão da mesma quanto ao cancelamento de individualidades diferenciadas.

Em Marx está garantido uma autonomia e um papel fundamental ao singular que, pelo processo de apropriação e objetivação individual, recolhe e atribui significados e sentidos a si mesmo, aos outros homens e ao mundo. Além disso, ao apropriar-se das possibilidades de subjetivação postas na socialidade, o fará de forma diferenciada, combinando-as também diferenciadamente. Assim, mesmo sob base social comum e mesmo frente a oportunidades idênticas, cada singular, por seu papel de sujeito, construirá uma individualidade distinta.

Revela-se, por conseguinte, a igualdade e a irrepetibilidade simultâneas do indivíduo. Todos são substantivamente iguais, porque pertencem a um mesmo gênero (gênero humano). Entretanto, precisamente por que são iguais, podendo por isso comunicarem-se, interagirem e viverem em socialidade, são irrepetíveis: apropriam-se e retotalizam as objetivações do gênero de forma diferenciada.

Isto posto, a crítica de direcionar-se à massificação dos homens é muito mais pertinente ao que se processa na sociedade burguesa onde o hiperindividualismo, o egoísmo econômico, a desconsideração do outro (caso isto traga vantagens à sua particularidade) tanto em termos macrossocietários como no que tange às relações interpessoais e a submissão cada vez maior do indivíduo à sociedade de consumo, dentre outros, jogam com o fim do indivíduo como síntese diferenciada.

Em oposição, na perspectiva marxiana não objetiva-se a igualdade no sentido de indiferenciação entre os indivíduos. Busca-se a instalação de condições sociais concretas onde os mesmos, tendo acesso à oportunidades reais iguais (exponenciadas pela supressão das desigualdades econômicas e sociais), possam desenvolver e explicitar suas diferenças contribuindo, por isso mesmo, para o desenvolvimento do gênero humano.


NOTAS

1 Que tem como fator fundamental mas não único, a publicação de alguns de seus primeiros escritos, dentre eles “Manuscritos Econômico-Filosóficos” (1844 ) e “Ideologia Alemã” (1845) os quais, até o início da década de 30 de nosso século, eram desconhecidos, bem como “Elementos Fundamentais para a Crítica da Economia Política - Gründrisse” – escrito entre 1857e 1858 e publicado entre 1939 e 1940. [volta]

2 Em franca oposição ao Marxismo tornado oficial pela URSS no qual, de fato, por seu mecanicismo levado ao extremo, não deixava lugar para a problemática do indivíduo.[volta]

3 Incluindo aí, com destaque, o citado Manuscrito de 1857/58 que não pode mais ser criticado como resultado de um “arrombo da juventude”. No “Gründrisses”, qualificado como uma espécie de esboço a partir do qual é redigido o “O Capital” Marx retoma, amplia e aprofunda temáticas relativas ao indivíduo que estavam presentes nos primeiros escritos. [volta]

4 A um determinado modo de produção corresponde, em relação mutuamente recíproca, um modo de pensar e uma certa estrutura organizacional – uma superestrutura que, como a base econômica, é produto do homem, fruto das relações que estabelecem entre si historicamente. Ou, nas palavras de Marx (1989b, p. 106), “Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem, também, os princípios, as idéias e as categorias de acordo com suas relações sociais. Assim, estas idéias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios.“ [volta]


ABSTRACT

The text focuses the individual and his presence in the Marxian work. It places itself in the sense of summarizing, from the contestation of opposite arguments, some aspects which show not only Marx’s concern with the individual, but also the fertility of the Marxian Tradition with the analytical approaches about the theme.

Key words: individual, individuality, marxism.


BIBLIOGRAFIA

FROMM, Erich. Conceito Marxista de Homem. 5. ed. Trad. Octávio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Critica de la Economia Politica (Borrador) 1857-1858. Gründrisse. Tradução do alemão por José Aricó, Miguel Murmis e Pedro Scaron. Buenos Aires. Siglo XXI Argentina, 1971. v. 1.

MARX, Karl. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. Tradução portuguesa do Inglês por Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1989.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2. ed. Tradução e Introdução de José Paulo Netto. São Paulo: Global, 1989b .

MARX, K.; ENGELS, F. Ideologia Alemã (Feuerbach). 11. ed. Tradução do alemão por José Carlos Brunni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Hucitec, 1999.

SCHAFF, Adam. O Marxismo e o Indivíduo. Trad. Heidrun Mendes da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

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