A AÇÃO INVESTIGATIVA NA PRÁTICA COTIDIANA DO ASSISTENTE SOCIAL
Vera Lucia Tieko Suguihiro *

* Professora Associada AC-B do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, doutora pela PUC-SP.

RESUMO

O texto refere-se ao processo de desvelamento do que se oculta nas práticas cotidianas dos Assistentes Sociais, tendo a ação investigativa como instrumento.

Palavras chaves: cotidiano – ação profissional – investigação


Está sempre nos debates dos profissionais de Serviço Social a questão da busca de um projeto de intervenção que dê um novo significado à profissão de modo a responder, de forma não apenas coerente teoricamente mas também com eficiência, às demandas sócio profissionais que lhes são colocadas.

Essa busca de novos caminhos, apoia-se na verificação de que, via de regra, o assistente social esgota o seu trabalho profissional na operacionalização dos serviços à população, sem ir além da prática instituída. Nesse caso, o profissional perde a oportunidade de compreender os nexos da sua intervenção, bem como de evidenciar os limites e as possibilidades embutidas na sua ação cotidiana, passíveis de dar novos contornos a sua ação profissional.

Ao longo do desenvolvimento da sua ação, os assistentes sociais têm enfrentado diferentes dilemas na profissão. Alguns, aos quais se pode chamar de “falsos dilemas”, estão atrelados às características próprias da profissão e decorrem de sua situação na divisão sócio-técnica do trabalho na sociedade contemporânea. São essas atividades, as de caráter burocrático, assistencial, pragmático, que conformam a profissão como uma prática eminentemente interventiva.

A ênfase nessas atividades tem traduzido em respostas profissionais fragmentadas, trabalhadas nos limites instituídos socialmente. Nessa perspectiva, o assistente social dificilmente tem uma visão totalizadora da problemática que enfrenta, não acionando, portanto, o seu potencial para modificar o seu modo de intervir.

Outros dilemas têm por base a perspectiva de que a teoria dá conta de explicar a realidade, mas não instrumentaliza a prática cotidiana do assistente social. Nessa ótica, é facilmente embutida a contradição de um discurso crítico e uma prática baseada no senso comum e ainda, a efetivação da relação dicotômica entre profissionais que “pensam” e profissionais que “fazem”.

A superação desta tensão vai demandar dos assistentes sociais uma disponibilidade a não mais pensarem na prática profissional em si, independentemente de seus fundamentos e de suas determinações, assimilando, ao nível da racionalidade, a necessária unidade entre a teoria e a prática como determinantes complementares que incidem na ação particular dos profissionais, o que lhes vai possibilitar a garantia do movimento dialético pensamento/ação.

Assim, entendemos que a vida de todos os dias, se iluminada por uma teoria sólida, é uma fonte permanente de conhecimento capaz de gestar práticas sociais inovadoras. A partir dessa convicção, acreditamos que, no estudo reiterado e crítico das práticas cotidianas dos assistentes sociais, encontraremos um fio condutor para, além de conhecer e analisar as formas de pensar e agir, construir, com bases na teoria, as possibilidades de novas práticas.

Este processo de construção do saber profissional a partir de uma dinâmica deliberada de investigação e discussões, fundamenta-se no suposto de que um conhecimento sistematizado e rigoroso pode se concretizar pela via da reflexão-ação de sujeitos históricos. Essa forma de aproximação do saber parece-nos mais adequada no âmbito do serviço social, na medida em que, como caracteriza Myriam Veras Baptista:

“a especificidade que particulariza o conhecimento produzido pelo serviço social é a inserção de seus profissionais em práticas concretas. O assistente social se detém frente às mesmas questões que os outros cientistas sociais, porém o que o diferencia é o fato de ter em seu horizonte um certo tipo de intervenção: a intervenção profissional. Sua preocupação é com a incidência do saber produzido sobre a sua prática: em serviço social, o saber crítico aponta para o saber fazer crítico” (Baptista,1992:89)

É importante entender que o saber que deriva da prática profissional não se coloca imediatamente de modo pronto e acabado, mas é um conhecimento que se constrói: “desenvolve, traduz, codifica e decodifica um conjunto de questões que se colocam à prática profissional em determinado momento” (Baptista,1986:4), e delas extrai um saber.

A prática cotidiana dos profissionais de serviço social tem a revelar uma riqueza escondida sob a trivialidade das ações e da pobreza aparente das atividades rotineiras. Trata-se de assumir o movimento proposto por Lefebvre (Lefebvre,1991:44) que permite descobrir sob a trivialidade e atingir o extraordinário à partir do ordinário.

Tendencialmente, os profissionais têm se dedicado aos limites imediatamente colocados no cotidiano e não à “possibilidades ocultas”. Existem, nesse mesmo cotidiano, possibilidades que não estão ali claramente explicitadas, precisando, portanto, serem acionadas. Isto significa que nas questões do cotidiano, e muitas vezes no próprio limite enfrentado, estão embutidas possibilidades potenciais capazes de apontar para novas formas de ação.

O que percebemos é que, na prática, os limites vêm sendo tratados como condicionantes da ação, ou seja, a sua representação é linear e não contraditória. As dificuldades postas aos assistentes sociais, sejam de natureza teórica, sejam de natureza técnica e/ou política tendem a ser escamoteadas pelos limites institucionais.

Para tanto, se faz necessário apreender o movimento contraditório da prática profissional nos diferentes níveis das relações sociais, situar o profissional como trabalhador assalariado com vinculação institucional, com a função de emitir respostas qualificadas às demandas sócio profissionais, em suma, inserir o seu cotidiano particular no contexto da profissão, entendida como determinada pela divisão sócio- técnica do trabalho.

Há que se assinalar que, via de regra, os assistentes sociais têm desprezado a sua prática cotidiana entendendo-a apenas como espaço de mera seqüência empírica de ações, na medida em que priorizam as práticas singulares, vivenciando o que foi sinalizado por Agnes Heller (Heller,1985:35) em sua análise da cotidianeidade: reagimos a situações singulares, respondemos a estímulos singulares e resolvemos problemas singulares.

Assim, o desafio está em apreender e desvelar os limites e as possibilidades potenciais presentes na dinâmica da vida cotidiana profissional.

Esta via de abordagem tem como respaldo a percepção de que a prática profissional se constitui em espaço privilegiado para apropriação das potencialidades da intervenção, na medida em que se vê frente as diferentes expressões da vida cotidiana, as quais formam um mosaico que, dependendo do modo que se debruçar sobre ele, permite uma apreensão totalizante da realidade nas suas variadas dimensões e, em conseqüência, a construção de uma prática de espectro abrangente.

Assim, para desencadear um processo de desvelamento do que se oculta nas práticas cotidianas dos assistentes sociais e, concomitantemente, apreender as possibilidades do “novo”, faz-se necessário a incorporação da ação investigativa como instrumento para o exercício profissional. A investigação possibilita o resgate e a reconstrução da ação cotidiana dos assistentes sociais, capturando suas determinações e seus nexos através de estudo reiterado e crítico da realidade social.

A inserção da perspectiva investigativa na ação impõe-se como exigência básica e angular da profissão e não mais como algo opcional. Neste sentido, o pesquisador deixa de ser mero observador do real, prevalecendo o primado da relação sujeito/objeto, dialetizado por uma teoria consistente capaz de ultrapassar o limite do objeto e construir um novo saber.

Nesta perspectiva, a ação investigativa permite romper com as práticas puramente descritivas de cunho factual, reducionista, ingênua e acrítica, para uma apreensão de “algo mais” do real investigado. Isto significa ajudar o profissional a traduzir no concreto cotidiano o seu conhecimento, tendo o espírito indagativo como condição fundamental para o exercício profissional.

Esta assertiva fundamenta-se na perspectiva apontada por Vázquez: “a prática é o fundamento e limite do conhecimento e do objeto humanizado que, como produto da ação, é objeto do conhecimento” (Vázquez, 1979:154), ou seja, a prática é o ponto de partida e a base para aferir e validar o conhecimento, como também estabelecer “o critério de sua verdade, precisando, para tanto, “plasmar-se, adquirir corpo na própria realidade, sob a forma de atividade prática” (Vázquez,1979:155).

Este processo constitui-se na elaboração teórica sobre os dados empíricos, com intuito de colocar em movimento um rigoroso esforço de criação intelectual para construção das categorias analíticas práticas. Essas categorias se constituem em ferramentas intelectuais que permitem não apenas analisar e explicitar a realidade social - mediante articulação com a teoria, ultrapassando o limite da acumulação de dados, para um reiterado questionamento do real – mas também construir um saber/fazer sobre esse real.

Na medida em que o homem sente a necessidade de produzir algo novo, encontra na práxis criadora o espaço que “permite enfrentar novas necessidade, novas situações” (Vázquez, 1979:247). Acrescentaríamos a essa reflexão de Vázquez que o “novo” não significa necessariamente “outro”, pode ser produto do “novo olhar” lançado sobre coisas já vivenciadas.

O criativo já está inscrito no cotidiano das práticas como uma possibilidade, mas a sua concretização implica em um exercício consciente de vontade dos profissionais.

Para enfrentar este desafio faz-se necessário contar com uma ação investigativa que tenha uma nítida preocupação com a prática, de forma a garantir um nível de reflexão que permita não apenas apreender o real imediato com suas contradições, mas também desvelar o que está oculto no aparente. Deve, ainda, possibilitar, além do resgate dialético das dimensões que dão movimento à prática profissional – dimensão do fazer e a do pensar – a percepção dos meios de sua superação.

A ação investigativa dá aos profissionais a oportunidade de pensar em si mesmos e ao seu fazer profissional. Isto requer dos profissionais disposição de analisar e refletir, de forma aberta e transparente, suas ações, seus dilemas e falsos dilemas, imbuídos pelo interesse em desenvolver uma ação planejada, resultante daquela reflexão, permitindo o enfrentamento de suas questões operativas principais. A intenção de desvelar as práticas ocultas do cotidiano só pode efetivar-se a partir da e na ação profissional.

Este momento caracteriza-se pelo encontro com o desconhecido. Isto significa ir além do discurso parcial, fragmentado, pela simples reprodução do já produzido, mas descobrir algo que ainda não foi partilhado na construção do saber. Deste modo, a ultrapassagem da totalidade parcial para totalidade mais complexa no interior da prática se faz pela relação pensamento/realidade.

É na própria ação cotidiana dos profissionais que se busca resgatar as categorias particulares, empíricas que dão movimento à sua intervenção, o que implica ir além da visão limitante e aparente do cotidiano, reconstruindo o objeto da intervenção, que antes parecia descontínuo, dando-lhe uma dimensão histórica.

Assim, a categoria da mediação é apreendida como expressão concreta do processo de passagem que o profissional realiza na medida em que supera a leitura do aparente imediato para imprimir uma direção crítica ao conjunto de suas práticas cotidianas.

A construção dessas categorias exige dos profissionais, o que Ianni (Ianni,1986:4) classificou como uma reflexão obstinada, interrogando o real reiteradamente para desvendar do real aquilo que não está dado, o que não é imediatamente verificado. Isto significa o encaminhamento da reflexão no sentido de superar o nível da aparência, tornando o objeto investigado cada vez mais rico e transparente, pela via da argumentação.

Essas categorias são elementos fundamentais que subsidiam a compreensão, a explicação e a recomposição do objeto investigado em sua totalidade. É necessário perseguir um circuito dialético de retorno às práticas cotidianas, ultrapassando assim, o limite da particularidade para a universalidade do conhecimento que a prática possibilitou construir.

A pista a ser perseguida para avançar nessa assertiva foi sinalizada por Konder quando afirma que,

“qualquer objeto que o homem possa perceber ou criar é parte de um todo. Em cada ação empreendida, o ser humano se defronta, inevitavelmente, com os problemas interligados. Por isso, para encaminhar uma solução para os problemas, o ser humano precisa ter certa visão de conjunto deles: é a partir da visão de conjunto que a gente pode avaliar a dimensão de cada elemento do quadro. Foi o que Hegel sublinhou quando escreveu: “A verdade é o todo”. Se não enxergamos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada (transformando-a em mentira), prejudicando a nossa compreensão de uma verdade mais geral” (Konder, 1981:37)

Nesta perspectiva, a ação investigativa permite aos assistentes sociais em suas práticas cotidianas:

a) desdobrar as múltiplas determinações que constituem o cotidiano da prática profissional, num esforço de apreende-lo de forma diferente daquela percebida no momento da sua singularidade e na sua imediaticidade;

b) Avançar no desenvolvimento de estratégias pedagógicas capazes de mediar a dimensão do senso comum com a produção de conhecimento;

c) Colocar os profissionais em permanente diálogo com o pensamento crítico contemporâneo;

d) Subsidiar os profissionais na emissão de respostas qualificadas as demandas e necessidades da prática;

e) Apreender e traduzir, no concreto real, o conhecimento acumulado ao nível da teoria social e das teorias mediadoras;

f) Construir um conhecimento novo, crítico e criativo capaz de iluminar e subsidiar a prática cotidiana, possibilitando ao profissional apropriar-se de um saber para a construção de um fazer competente.

Assim, da interlocução entre as ações investigativas e as diferentes formas de pensamento e de ação acerca da situação concreta vivida no cotidiano dos profissionais, é que está a possibilidade de emergir um novo significado de prática.


ABSTRACT

This article is concerned with the daily practice of the social workers dual the research action as its tool.

Key-words: daily practice, profissional action, research action


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