OS DIREITOS DO HOMEM NA SOCIEDADE ATUAL*
Silvia Maria Solci**

* Este texto faz parte, com adequações, da dissertação O Estatuto da Criança e do Adolescente-do reconhecimento à prática dos direitos, apresentada à PUC-SP, em 1996, para obtenção do título de mestre.
** Assistente social, mestre em Serviço Social pela PUC-SP, professora do Curso de Serviço Social da UEL

RESUMO

Este artigo refere-se à conquista dos direitos do homem. A grande parcela da sociedade que vivencia a desiqualdade social, predominante no país, reflete a desconsideração em relação ao direito.

Palavras chaves: direitos humanos; cidadania; desigualdade social.


O desrespeito aos direitos humanos estão visíveis tanto na realidade brasileira quanto internacional, apesar de todo o avanço da humanidade nessa área. A desigualdade marca o cotidiano desmascarando o direito violado. Sua visibilidade, porém, parece não provocar estranheza ou indignação na população como um todo, pois os que se mobilizam são apenas alguns setores da sociedade.

Estão a exigir justiça: que se cumpra a lei, que se faça justiça social, enfim, que se cumpram os direitos do homem. Citando Comte-Sponville, “muito bem - mas que justiça? E como fazê-la, sem saber o que ela é ou deve ser?” (Comte-Sponville, 1995, p. 69). Que direitos?

Este autor aborda a justiça como uma virtude (ou valor moral) a ser alcançada pelo homem, atribuindo-lhe dois sentidos. Em um, a justiça é o direito (legalidade); em outro, é a igualdade entre os indivíduos, em conformidade com regras escritas ou não (Comte-Sponville, 1995, p. 71-2).

Reclama-se a justiça tanto diante do descumprimento da lei quanto diante das desigualdades sociais. A lei, uma vez estabelecida, é considerada justiça sem, contudo, necessariamente ser justa. Aí, não estaria sendo considerado o valor da lei, a sua legitimidade. Uma lei não pode ser justa se ela desprezar a igualdade; “quando a igualdade e a legalidade se opõem, onde está a justiça?” (Comte-Sponville, 1995, p. 72). A lei não é, então, o mesmo que justiça, podendo-se até não cumpri-la se pretende-se ser justo. “Respeitar as leis, sim (...) mas não à custa da justiça” (Comte-Sponville, 1995, p. 74)

A luta do homem pela igualdade de direitos

A justiça não é apenas a legalidade. O justo para se realizar deve estar do lado da igualdade presente nas relações entre os homens, garantida juridicamente ou pela sua existência como valor em uma sociedade.

A justiça, deve ser desejada pelos homens, que a instauram em determinado momento histórico na busca da igualdade de direitos, apesar das desigualdades de fato. Para Comte-Sponville, a igualdade pode não corresponder à justiça legal, mas vai mais além, corrigindo a lei (que nem sempre é justa) permitindo “adaptar a generosidade da lei à complexidade cambiante das circunstâncias e à irredutível singularidade das situações concretas” (Comte-Sponville,1995, p. 93).

Assim, pode-se supor, haverá a justiça que pretende a igualdade entre os homens, quando ela estiver presente como valor na sociedade ou no homem justo, não se limitando nem se satisfazendo com a justiça legal. Esta, se não corresponder ao desejo de eqüidade entre os homens deve ser combatida, bem como qualquer injustiça. A justiça se concretiza fruto da intensidade desse valor numa sociedade. É preciso desejá-la e lutar por ela.

A essa luta Rudolf Von Ihering (1992) refere-se como a luta pelo direito, que é sustentada pela existência do “sentimento de direito” entre os homens. Considera “um dever de todo homem para consigo combater por todos os meios de que disponha a desconsideração para com a sua pessoa no desprezo do seu direito” (Ihering, 1992, p. 21). Dessa forma estará defendendo não apenas a si próprio, mas toda a sociedade.

Para Ihering a luta é indispensável, faz parte do direito, de outra forma ele não poderá concretizar-se ou avançar. Cada conquista, mesmo individual, reverte em benefício de todos, no presente e no futuro, e corresponde ao enfrentamento de forças conservadoras e interesses de minorias que lhe fazem resistência. É preciso, diz o autor, “derrubar os diques que impedem a corrente de se precipitar numa diversa direção” (Ihering, 1992, p. 5). A existência do direito, ou da lei, por si só não faz com que seja cumprido. Para isso há o embate entre “o direito do passado (. . .) e o direito, que, dia a dia, se vai formando, dia a dia, vai rejuvenescendo, do direito primordial que a humanidade tem de regenerar-se constantemente” (Ihering, 1992, p. 7). Para se realizar ataca direitos e interesses de outros que, por sua vez, esforçam-se para preservá-los.

O direito é dinâmico, histórico, “deve incessantemente ansiar e esforçar-se por encontrar o melhor caminho e, desde que se lhe depare, deve terraplanar toda a resistência que lhe opuser barreiras” (Ihering, 1992,p. 8). Um povo não deve deixar que lhe roubem os direitos conquistados com dura luta.

Quando um indivíduo é lesado em seus direitos ele tem dois caminhos, aponta o autor: enfrentar o adversário ou acovardar-se. Ambos implicam em um sacrifício: ou a paz ou o direito (Ihering, 1992, p.13). É preciso saber que sacrifícios uma pessoa, grupo ou classe pode e quer suportar.

Apesar das dificuldades que lhe são impostas o que leva um homem, um povo à luta é a necessidade de fazer valer um direito diante da “dor moral que lhe causa a injustiça sofrida” (Ihering, 1992, p.16). Dor essa que corresponde ao sentimento de direito. A ação é movida pela necessidade de conservação da sua existência moral, pelo seu próprio interesse e pelas suas condições de vida.

E, assim, a pessoa ao defender o seu direito está defendendo o direito todo. Por outro lado, abandonar um significa abandonar o outro. A defesa será feita, afirma Ihering, pois da mesma forma que a dor física demonstra ao homem a necessidade do cuidado com o corpo físico, a dor moral causada pela injustiça recorda o dever da própria conservação moral. A dor moral, tal como a dor física, apresenta-se com intensidades diferentes, podendo ser suportada ou não, provocar reações diferentes entre as pessoas. A reação tanto pode ser a de submeter-se passivamente como a de cobrança para fazer cumprir um direito. O autor salienta que aqueles que não estão “embrutecidos”, habituados com a ilegalidade, reagem a uma injustiça sofrida e

o grau de energia com que o sentimento jurídico reage contra uma lesão do direito é (...) uma medida certa da força com que um indivíduo, uma classe ou um povo compreende, por si e pelo fim especial da sua vida, a importância do direito... (Ihering, 1992, p. 29).

O sentimento jurídico reage de modos específicos, mas fundamentado no valor maior do direito. Ele ultrapassa a defesa do direito particular e alcança o direito no seu todo.

Percebe-se, porém, que não há uma reação automática e positiva entre o direito violado e a sua defesa. O homem pode ou não agir em seu próprio interesse ou no interesse de toda a sociedade, dependendo do valor atribuído ao direito, isto é, da intensidade do sentimento jurídico presente no homem e numa sociedade. Se nas relações sociais prevalece o interesse de uma minoria em detrimento dos demais, predominando o desrespeito ao direito da maioria, há o enfraquecimento do sentimento de direito bem como da luta que o defende. Ihering coloca que alguém poderá sofrer injustiças e sentir-se enfraquecido para defender-se isoladamente enquanto outros não se unirem a ele (motivados pelo seu próprio interesse ou pela defesa do outro) para determinada ação, fruto do fortalecimento do direito. O autor ressalta que o abandono do direito como ato isolado pode não parecer significativo mas quando torna-se regra representa a ruína do direito e seu desprezo como condição moral da existência humana. E mais, estará contribuindo para o fortalecimento do agressor. E a luta fica pesada para aqueles que dão combate à injustiça. Dessa forma, o homem deve defender o seu direito para si e para toda a sociedade.

Considerando que o sentimento jurídico pode ser enfraquecido, Ihering atribui ao Estado e não só ao homem a defesa do direito pois essa luta

não se restringe aos indivíduos, mas nos estados adiantados o poder público toma nela a maior parte porque persegue oficialmente e pune as infrações graves contra o direito dos indivíduos (Ihering, 1992, p. 35).
Caso contrário, aliado ao fraco sentimento de direito da população, se instalará a impunidade e a execução da lei pelos cidadãos individualmente; é a desordem, a violência generalizada. O Estado deve cultivar o sentimento jurídico, afirma Ihering, pois aí também estará a sua força e de um povo. E acrescenta,

quando o arbítrio e a ilegalidade se aventuram audaciosamente a levantar a cabeça, é sempre um sinal certo de que aqueles que tinham por missão defender a lei não cumpriram o seu dever (Ihering, 1992, p. 45).

O autor considera a violação de um direito não só responsabilidade daquele que a praticou; é muito mais da maioria da população se ela não defende o direito (legal ou não) permitindo o avanço do desrespeito e da arbitrariedade. Os próprios prejudicados são, assim, os responsáveis indiretos pelo desrespeito ao direito. Para que o inverso ocorra, já que todos possuem o sentimento de direito, segundo Ihering, mas se diferenciando em intensidade, é preciso percorrer uma trajetória que inicia-se no interesse particular mais vulgar, eleva-se atingindo o patamar de respeito a todo o direito, superando o individualismo (Ihering, 1992, p. 49-63).

Porém, continuando com o autor, quando o homem

por causa dos obstáculos que lhe opõem leis injustas ou instituições imperfeitas, não encontra a largueza necessária, para se desenvolver livremente e energicamente; se vai de encontro à perseguição, precisamente onde deveria esperar apoio e encorajamento; se em conseqüência de todas estas circunstâncias se habitua a sofrer a injustiça e a considerá-la como uma coisa que não pode ser modificada (Ihering, 1992, p. 61-2)

não reage nem por si nem pelo outro.O homem deve aprender a lutar pelos seus próprios direitos, quando poderá, então, fazê-lo pelos seus semelhantes e pela sociedade, mesmo que ele próprio não tenha sido desrespeitado.
O direito para ser concretizado, desde que seja meta de uma sociedade, depende da superação de determinados patamares, tal como o individualismo que modernamente ataca o homem, e de situações que impedem o florescimento e o fortalecimento do sentimento de direito existente, mas que foi enfraquecido. Comparando o direito à raiz de uma árvore, se a raiz for abalada todo o resto cai, se for fortalecida, o todo se fortalece. Aqueles que pretendem a manutenção de seus privilégios agem atacando a raiz e enfraquecendo toda a árvore (Ihering, 1995). Contudo, agindo contra as resistências, haverá sempre aqueles que não se dando por vencidos não perderão a crença no direito, agindo pelo seu cumprimento em condições mais ou menos favoráveis.

O direito é defendido como valor do homem e como um ideal que possa vir a ser predominantemente numa sociedade. Em conseqüência, o “homem justo” ou o “forte sentimento de direito” embasará uma luta pela igualdade, pela eqüidade. Mas o ideal só não basta diante da ausência de condições concretas para a realização do direito. Olhando para o Brasil percebe-se a profunda desigualdade social marcando toda a sua história e se estendendo para nossos dias. Contraditoriamente, a Constituição Federal Brasileira avança na garantia de direitos para toda a população, vindo a desencadear, segundo Silva,

processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solitária (...), há de ser um processo de liberação de pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vivência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício (Silva, 1988, p.20).

Este autor enfatiza as possibilidades contidas na Constituição de 1988 de concretização dos direitos de cidadania, bem como ressalta a tarefa fundamental do Estado Democrático de Direito que “consiste em superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social” (1988:22-3). Pois bem, os direitos foram proclamados mas não são concretizados em um momento em que o país situa-se entre os recordistas mundiais de desigualdade social. Presencia-se a ausência de garantias de emprego, saúde, educação, moradia - só para citar alguns, da pobreza e miséria crescente para a maioria da população, situação que tem sido banalizada e até considerada natural por muitos. Onde está o “homem justo” e o “sentimento de direito” no Brasil? São privilégios de poucos bem como de poucos é a luta pela concretização dos direitos dos brasileiros.

A luta pelo direito surge quando este se faz necessário, quando ele é desejado por aqueles que sofrem a sua privação, defendendo-o não só para si mas para todos. Como já foi dito, é uma luta de poucos; o desrespeito aos direitos não provoca reação contrária na mesma proporção do fato, pois é preciso, antes de tudo, querer reagir e ter como reagir. E, sabe-se, a resistência à violação dos direitos do homem e os movimentos reivindicatórios, no Brasil, foram duramente combatidos sob diferentes formas, tendo em vista a manutenção dos interesses de uma minoria. O povo brasileiro, subalternizado, tal como a árvore citada por Ihering terá sido atingido na raiz? Na sua maioria, não sabe lutar, não tem pelo que lutar pois não se considera portador de direitos; por longo período sentiu a “dor do direito violado” mas foi calado por mecanismos diversos, desaprendeu ou não tem sabido fazer valer o seu direito. Sem saber operar os instrumentos para agir pela sua cidadania, são mantidos os privilégios de uma minoria. As questões sociais têm sido, com freqüência, tratadas como “caso de polícia” pelo Estado, quando não por setores da sociedade civil, sob inspiração conservadora e neoliberal, que rotula a reivindicação de direitos como subversão da ordem. A ideologia dominante tem favorecido o desrespeito aos direitos fundamentais da maioria dos brasileiros.

Mesmo assim, enquanto houver a mínima possibilidade de exercício de direitos políticos, no país, serão movidas ações pela alteração das relações sociais vigentes geradoras das desigualdades sociais, as quais não são privilégio só do Brasil.

Da luta à concretização dos direitos

Os direitos são proclamados e desrespeitados internacionalmente, havendo uma defasagem entre as conquistas e a sua efetivação, mesmo considerando-se todos os avanços já alcançados pela humanidade nesse campo, conforme aponta Bobbio (1992).

Enfim, o mundo está em luta incessante pelos direitos, pela sua ampliação e especificação. Aos olhos insensíveis de tantos “o máximo” que se tem conseguido é a proposta, nem sempre concretizada, de satisfação de necessidades que garantem a sobrevivência ou, ainda, efetivadas sob princípios discriminatórios. O direito não é, de fato, universal, tão pouco é uma meta desejada por todos. Apesar de se contemplar a “era dos direitos”, segundo Bobbio (1992), na realidade concreta vive-se profundo desrespeito aos direitos humanos.

A luta pelo reconhecimento dos direitos não é recente. Há longo tempo o homem se dedica a reivindicá-los; uma vez conquistados deve fazer com que sejam realizados e não violados. O direito não se faz sem lutas, as quais assumem diferentes formas, tal como a denúncia, o debate, o protesto, a resistência. Em conseqüência, o direito vai sendo construído em determinado contexto social fruto das transformações da sociedade, podendo significar não só avanços mas retrocessos. A “formação e o crescimento da consciência do estado de sofrimento, de indigência, de penúria, de miséria, ou, mais geralmente, de infelicidade, em que se encontra o homem no mundo” (Bobbio, 1992, p. 54), força-o a empenhar-se na superação de tal estado fazendo surgir “zonas de luz” as quais considera indícios de progresso da humanidade, tal como os amplos debates internacionais sobre os direitos do homem que hoje ocorrem.

Vazquez (1989, p. 80-4), por sua vez, refere-se ao progresso social apontando a estreita relação entre o direito e a moral. Ambos constituem-se em normas definidoras das relações entre os homens e, nessa condição, devem ser cumpridas, mas sob enfoques diferentes. A moral enquanto comportamento humano só é cumprida quando acatada voluntariamente por força de convicção interior, submetendo-se apenas à pressão da comunidade. Já o direito exige o seu cumprimento por respeito à lei, mesmo em não se concordando com ele. Não exige adesão íntima mas sim, obedecê-lo, respondendo a uma imposição exterior exercida pelo Estado, independente da vontade do sujeito.

Essas duas formas de controle – a moral e o direito – podem caminhar num mesmo sentido ou a primeira pode estar em contradição com o segundo, surgindo ações desencadeadas por ambos em defesa do seu posicionamento. Á medida que ocorre a expansão da esfera moral e seu predomínio como norma de relacionamento social há, consequentemente, a redução do direito. Os homens deixam de agir sob coação externa direcionando seus atos por convicção íntima e, tal processo, Vazquez considera sinal de progresso social. Assim, as

relações entre o direito e a moral, historicamente mutáveis, revelam num certo momento tanto o nível alcançado pelo progresso espiritual da humanidade, quanto o progresso político-social que o torna possível (Vazquez, 1989, p. 84).

O homem busca transformar o mundo onde vive, no tocante ao aspecto material e às regras de conduta, visando sua sobrevivência e do grupo. Nessa trajetória passou de sujeito de deveres a sujeito de direitos, os quais nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos genéricos, atingem a universalização e especificação. Conquista inicialmente a liberdade, seguidos pelos direitos políticos e sociais, conforme Marshall (1967).

Detendo-se na especificidade dos direitos, Bobbio, (1992, p. 68:83) ressalta a sua correspondência à diferença existente entre os homens - quanto ao sexo, idade, condição física, e outros, fato que exige tratamento desigual para se atingir igualdade para todos. É preciso considerar as diferenças para a realização do direito. Nesse sentido as declarações de direitos aparecem mais nas áreas de maior descumprimento da norma. Situam-se aí os direitos sociais e mesmo os políticos, defasados em universalidade diante do direito de liberdade.

A garantia dos direitos exigem mais que proclamação pela comunidade internacional. São necessárias medidas efetivas para a concretização dos direitos no interior dos Estados, cuja autonomia permite-lhes realizar ou não, apesar de aceitas, as diretrizes dos organismos internacionais dos quais são membros. As declarações universais são tão desrespeitadas quanto proclamadas, apesar de que reconhecer os direitos do homem já é um avanço, afirma Bobbio (1992). Há grande distância entre os direitos reivindicados e proclamados e os direitos efetivados. Considerando os direitos do homem já suficientemente fundamentados, condição para serem respeitados, Bobbio (1992) expressa:

com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico, e num sentido amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados (Bobbio, 1992, p. 25).

Os direitos do homem no mundo atual

Direitos garantidos ou violados estão inseridos em uma realidade concreta. Integram uma sociedade permeada por diferentes visões de mundo, ou correntes de pensamento, as quais expressam interesses de grupos ou classes sociais. São divergentes ou mesmo contraditórias, havendo o predomínio de uma delas. Assim, visando determinados interesses sob a regência de uma classe, concretizam-se, ou não, os direitos.

O capitalismo e sua relação com os direitos são estudados, entre outros, por Marshall (1967). Trata da trajetória dos direitos civis, políticos e sociais, considerados como elementos do conceito de cidadania, situando-os no interior do modo de produção capitalista, onde coincidem o desenvolvimento de ambos, isto é, dos direitos e do capitalismo. Todavia, como pode isso ocorrer, pergunta Marshall, se um - o direito - busca a igualdade e o outro - capitalismo - alimenta-se da desigualdade?

Os direitos civis, políticos e sociais, conforme assinala o autor, não cresceram os três ao mesmo tempo. Foram os direitos civis inicialmente garantidos num processo iniciado no século XVIII e fortalecido no século seguinte juntamente com o capitalismo (Marshall, 1967:63-4). Isto porque a liberdade do trabalhador era necessária para que ele pudesse vender sua força de trabalho no mercado. Naquele momento - século XIX - a cidadania estava limitada aos direitos civis e embora se constituísse num princípio de igualdade em desenvolvimento “não estavam em conflito com as desigualdades da sociedade capitalista; eram ao contrário, necessários para a manutenção daquela determinada forma de desigualdade” (Marshall, 1967:79). Os direitos políticos e sociais eram inexpressivos nesse período, mas foram ganhando espaço nas sociedades democráticas contemporâneas.

Com o passar do tempo os direitos políticos constituíram-se em ameaça e foi a conquista do seu exercício efetivo, a partir dos direitos civis, que resultou na garantia de direitos sociais no século XX (Marshall, 1967, p.80-8). É conhecido o movimento dos trabalhadores pela melhoria das suas condições de trabalho e de vida, desde os primeiros tempos do capitalismo.

A igualdade prevista nos direitos é a negação da desigualdade inerente ao capitalismo que os aceita apenas na medida da manutenção de seus interesses. Estes são dominantes mas não sem encontrar resistência por parte de setores defensores de outros projetos de sociedade. Configura-se um espaço de enfrentamento entre forças sociais, sujeito a mudanças nas diferentes conjunturas em virtude do peso político dos envolvidos, resultando em avanços e recuos nos direitos de cidadania de uma população, no seu todo ou em partes dela. Avanços ou recuos são resultantes do querer e do poder concretizar direitos em determinado momento histórico.

Neste século, há o exemplo de duas experiências distintas, que se destacaram, de regulação da sociedade movidas por concepções contrárias de homem e mundo. Trata-se do “socialismo real” e do Estado de Bem-Estar Social. O primeiro colocou-se como alternativa à ordem capitalista e o segundo visou compatibilizar os interesses do capitalismo aos interesses do trabalhador, numa perspectiva pós-liberal (Covre, 1993; Netto, 1993). Todavia, tem sido considerado que ambas fracassaram. Apesar dos avanços obtidos em relação aos direitos sociais, na experiência socialista eles foram realizados em detrimento dos direitos civis e políticos, podendo-se dizer que não se concretizou a democracia. O Estado de Bem-Estar Social, por sua vez, conheceu seu limite ao ser considerado incompatível com as “exigências antidemocráticas” da acumulação capitalista. Ambas as crises, coloca Netto, sinalizam

que a viabilidade da superação da ordem do capital é função de uma radical democratização da vida econômica, social e política - tão incompatível com os limites do movimento do capital quanto com as restrições de uma ditadura exercida, ainda que em seu nome, sobre os trabalhadores (1993, p. 73).

O refluxo do socialismo e do Welfare State, decorrente dessas crises, abriu espaço que foi ocupado pela proposta neoliberal, a qual

restaura o mercado como instância mediadora societal elementar e insuperável e uma proposição política que repõe o Estado mínimo como única alternativa e forma para a democracia (Netto, 1993, p. 77).

Contrapõe-se às funções do Estado de garantir os direitos sociais e, segundo Nunes, citado por Netto,

à cultura democrática e igualitária da época contemporânea, caracterizada não só pela afirmação da igualdade civil e política para todos, mas também pela busca da redução das desigualdades entre os indivíduos no plano econômico e social, no âmbito de um objetivo mais amplo de libertar a sociedade e seus membros da necessidade e do risco (Netto,1993, p. 78).

Porém o Estado não é de todo descartado; o Estado mínimo mas “máximo para o capital” no neoliberalismo, diz Netto (Netto, 1993, p. 79-81), deve garantir condições estruturais para o mercado e intervir nas questões de pobreza extrema e miséria. Esta tarefa também é atribuída à sociedade e desempenhada sob a forma de solidariedade, pois não cabe ao Estado patrocinar o bem-estar social. Há portanto, no neoliberalismo, desconsideração e desmantelamento de muitas das conquistas e garantias de direitos, principalmente os sociais. Atualmente, tal situação tem provocado o ressurgimento de movimentos populares por garantia de direitos, em muitos países.

Na sociedade capitalista vive-se com a farsa da democracia, da liberdade, da igualdade. Tais valores, postos como fundamentais, mascaram uma realidade desumana e uma democracia que de fato não se concretiza. A democracia liberal sustenta a liberdade individual, a igualdade de oportunidades entre os homens mas considerando-os naturalmente diferentes em suas capacidades, levando naturalmente às desigualdades sociais e à dominação de uma classe sobre a outra. Conforme Chauí

a vida social tende a fortalecer a desigualdade natural, de sorte que uma outra ou uma segunda igualdade precisa ser produzida: aquela trazida pela lei. Assim, a desigualdade é um fenômeno natural reproduzido pela sociedade, enquanto a igualdade é um fenômeno natural reconquistado pela política (Chauí, 1980, p.154),

sempre com muita luta.

A cidadania, diz Covre (Covre, 1993, p. 29-62) é uma categoria não só burguesa podendo ser apropriada pelos trabalhadores como estratégia de luta para uma sociedade igualitária. Para isso é preciso a existência de condições mínimas de democracia possibilitando a prática do direito político. Mesmo limitados, continua a autora, “. . .são esses mesmos homens que vão criar outras condições - e, diante dessas novas condições, deverão também ser novos homens” (Covre, 1993, p. 36), levando a romper com a “cidadania esvaziada e consumista”, passando à “cidadania plena” onde deve vigorar direitos civis, políticos e sociais numa sociedade democrática (Covre, 1993, p. 74).
A democracia, como valor universal, é o campo ao qual todos se referem para a realização dos direitos. Contudo, é indispensável a sua qualificação visto não ser ela uma só. A democracia que dá sustentação ao modo de produção capitalista é produtora e reprodutora da desigualdade social e tão pouco garante a liberdade ou direitos políticos e sociais para todos.

A alternativa, então, é a busca de direitos pautados em valores tais como liberdade, democracia, justiça social, igualdade e equidade tendo em vista a erradicação da exploração, opressão e alienação do homem.

Para concluir, a presença de forte desejo de direito em uma sociedade é condição para a defesa de sua plena realização. Todavia esse sentimento, ou valor, é mantido reprimido pois ele constitui-se em ameaça aos interesses de uma minoria, através de uma ideologia que leva a população a crer que as desigualdades entre os homens são oriundas de diferenças naturais, possíveis de serem superadas mediante o esforço individual de cada um. Os direitos dos homens são desqualificados diante da natural desigualdade. Não há porque desejá-los ou mesmo lutar por eles. Conforme Ihering, o sentimento do direito é enfraquecido, geralmente sob condições antidemocráticas e inibidoras da participação política de toda a sociedade. Mas não emudece a todos, há aqueles que lutam pela garantia dos direitos, almejando transformar as condições concretas da vida dos homens.


ABSTRACT

This article is concerned with the conquest of the human rights. Great part the society that suffers the social unequality in this country, reflects the lack of consideration related to human rights

Key-words: human rights; citizenship; social unequality.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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