OS JOVENS E O IMAGINÁRIO DA AIDS: ENTRE O RISCO E A PREVENÇÃO

Leila Sollberger Jeolás*

* Profa. de Antropologia Social do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina

RESUMO

O artigo apresenta breve análise das representações sociais sobre o risco da aids entre jovens, a partir de dados parciais de pesquisa qualitativa realizada em escolas públicas de Londrina. Aborda as tensões e contradições, ambivalências e ambigüidades presentes, tanto no imaginário da doença, quanto no discurso preventivo a ela dirigido. Ampla e complexa cadeia de determinantes socio-culturais, políticos, econômicos e individuais explica as dificuldades encontradas na prevenção da doença: a ausência de programas de educação em saúde e de apoio para dependentes de drogas; a questão de gênero; os significados negativos atribuídos à camisinha; e o modelo contagionista de doença com grande força metafórica na cultura ocidental. Neste contexto, o trabalho de prevenção deve ser reavaliado para possibilitar aos jovens se situarem, pessoalmente, em relação à epidemia da aids.

Palavras-chaves: Jovens; HIV/Aids; Sexualidade; Vulnerabilidade; Prevenção.


Como toda doença, a aids não é apenas um fenômeno biológico, mas envolve múltiplas dimensões da vida social e necessita, portanto, da elaboração de constantes representações sociais que dêem conta de explicá-la e inseri-la na ordem cultural. Por se tratar de domínios de grandes investimentos imaginários nas sociedades ocidentais - contágio, sexo, morte, amor, paixão e drogas - as representações elaboradas para se pensar o risco da aids atualmente são múltiplas, complexas e plenas de tensões e contradições. Por isso a aids suscitou tantas reações de medo, pânico, preconceito e discriminação, desde o seu aparecimento e, até mesmo atitudes irracionais que acreditávamos não mais existirem neste momento de avanços tecno-científicos das ciências médicas.

Neste elaborado processo de construção social da aids, vimos o conceito de “grupo de risco”, oriundo da epidemiologia, ser paulatinamente substituído pelo conceito de “comportamento de risco”, uma vez que a aids não afetava apenas alguns grupos específicos de pessoas (homossexuais masculinos e profissionais do sexo, por exemplo), mas todas aquelas que tivessem determinados comportamentos que as colocariam em risco para o HIV. Embora fosse um avanço em relação à primeira idéia, contribuindo para a não discriminação e culpabilização das pessoas com aids, tinha suas desvantagens ou “contraindicações”, uma vez que reforçava a idéia de “responsabilidade” individual do risco e da prevenção.

Mais recentemente, alguns pesquisadores (Ayres, 1996; Villela, 1996) vêm tentando ultrapassar esta compreensão do risco da aids, ampliando o campo das reflexões para além do comportamento individual, que só pode ser entendido como produto da interação de fatores sociais, econômicos e culturais. Segundo eles, a introdução da idéia de vulnerabilidade à epidemia, desenvolvida por Mann e colaboradores (Mann, 1992), tem expressado melhor a complexidade da doença que, embora possa afetar biologicamente qualquer pessoa, faz com que a chance de contrair o vírus não seja igual para todos os países, regiões, grupos ou indivíduos. A vulnerabilidade à aids está sendo pensada sob três planos: o social (condições socio-econômicas, acesso à informação, escolarização, garantia de acesso aos serviços de saúde, garantia de respeito aos direitos humanos, situação socio-política e cultural da mulher, etc.); o individual (comportamentos que possibilitam a infecção pelo HIV ou a nossa capacidade de adotar comportamentos seguros); e o programático ou institucional (programas e atividades voltadas para combater a epidemia).

Desta forma, a maior ou menor vulnerabilidade dos jovens ao HIV/Aids decorre do conjunto dos elementos destes três planos. Os jovens têm sido apontados, no mundo todo, como população-alvo para a prevenção da aids, a partir da idéia de ser esta faixa etária mais suscetível a comportamentos de risco, de um modo geral. Esquece-se que a juventude é uma categoria socio-histórica, expressando, portanto, diversidades na sua forma de existir, o que a coloca em diferentes graus de vulnerabilidade em relação à aids, às outras DSTs, ou às drogas. Nas sociedades ocidentais, mesmo quando vivenciadas de diferentes formas (diferenças regionais, religiosas, de classe social e de grupos), existem características comuns a esta faixa etária: maior autonomia; transitoriedade e, portanto, ambigüidade (nem criança, nem adulto); conflitos com o mundo adulto; construção de uma nova identidade sexual, quando modificações biológicas e fisiológicas levam o sujeito a se defrontar com um novo corpo, tendo que integrar esses novos elementos para construir uma nova imagem de si mesmo. Momento intermediário, de mudança portanto, quando a ansiedade em relação ao risco está presente de maneira profunda (Douglas apud Balandier, 1994: 229).

Nas sociedades contemporâneas, há referências globais no viver esta etapa da vida que não podem ser desprezadas. Além do sentimento de incerteza, fruto do movimento ininterrupto, característico destas sociedades, há falta de cosmologias e rituais comuns que interpretem a desordem, o mal, o infortúnio e a doença. Os jovens sofrem ainda da ansiedade de viverem um momento de passagem de uma etapa da vida a outra, ou de um status social a outro, muitas vezes com exigências pouco definidas ou difíceis de serem cumpridas, como é o caso da responsabilidade em relação ao trabalho e a constituição de uma nova família. Esta passagem não é mais claramente marcada por rituais, como nas sociedades tradicionais, o que trazia segurança para seus membros, mas é vivenciada de várias maneiras, com múltiplos e pequenos rituais, com variadas marcas e símbolos visíveis de identificação (roupas, brincos, tatuagens, músicas, linguagens) que mudam rapidamente, ao sabor da moda.

O desejo de consumir marcas que visivelmente pertencem à categoria jovem é reforçado, no Brasil, pela ampliação crescente dos meios de comunicação, da indústria cultural e dos espaços de lazer no país, a partir dos anos 50, e pela tendência de rejuvenescimento e feminização da população urbana economicamente ativa nos anos 70. Uma parte dos jovens passa da simples aspiração para o consumo efetivo (Madeira, 1986).

Essas características comuns de ser jovem nos tempos atuais, onde o risco é valorizado, mesmo que de forma ambivalente, nos esportes radicais, nos negócios, na paixão, na velocidade e na adrenalina com que o momento presente tem que ser vivido, trazem certamente conseqüências para a percepção do risco da aids. Para os jovens de baixa renda e pouca escolaridade – a maioria em nosso país - expostos à violência diária, à falta de perspectivas de um futuro melhor, com certeza o risco do HIV/Aids será avaliado e hierarquizado de forma comparativa aos outros riscos presentes em sua vida.

No caso da aids, são, no entanto, os dados epidemiológicos que reforçam a preocupação com a necessidade de tomar os jovens como alvo da prevenção1 . Mas os dados em nosso país mostram também que o maior aumento de casos de aids tem ocorrido entre a população de baixa renda e pouca escolaridade, ou seja, uma pauperização da epidemia, afetando, portanto, os adolescentes e os jovens de forma diferenciada.

Várias pesquisas nacionais, com diferentes populações de jovens, das mais extensas às mais pontuais, mostram que, apesar de um grau de informação considerado elevado – embora persistindo algumas falsas crenças e dúvidas quanto às formas de transmissão mais polêmicas - apenas um número muito pequeno de jovens apresenta mudança de comportamento, visando a prevenção da aids, principalmente quanto ao uso do preservativo. Isso é verdade também para outras faixas etárias, a não ser para populações específicas como os profissionais do sexo, quando recebem informações e apoio permanentes, e como os homossexuais, sobretudo norte-americanos e europeus com tradição de luta por direitos civis. Já se sabe que, apesar de necessária, a informação não leva automaticamente à mudança de comportamento.

Trabalhos desenvolvidos em Londrina apontam para resultados semelhantes. O projeto de extensão universitária de 1992, com associações de moradores, sindicatos e escolas, mostra que apenas 42% dos jovens de 16-20 anos afirmam ter mudado o comportamento sexual depois da aids e, destes, 70% apontam o uso da camisinha como alternativa (Paulilo, 1993). No entanto, pesquisa com abordagem quantitativa e qualitativa entre universitários de diferentes cursos mostra que, dos 33% que disseram ter mudado o comportamento sexual, apenas 43% afirmam “usar o preservativo sempre”, 24% “às vezes”, 11% “quando o parceiro é desconhecido” e 24% “nunca”. A parte das entrevistas aprofundadas mostra como os critérios para se usar ou não a camisinha ou para deixar de usá-la são subjetivos: “conhecer melhor o parceiro”, “confiar no parceiro”, “amar” ou “estar apaixonado(a) pelo parceiro” (Batista, 1992).

Há uma cadeia ampla e complexa de múltiplos fatores ou determinantes, socio-culturais, políticos, econômicos e individuais, que explicam as dificuldades encontradas na prevenção da aids entre jovens na nossa sociedade. Gostaríamos de apontar alguns deles para melhor entendermos a complexidade desta questão.

Em primeiro lugar, o não acesso da maioria dos jovens a programas de informação e educação e aos serviços de saúde que apoiem as iniciativas de prevenção, com distribuição de camisinha, e a não existência de programas de apoio para dependentes de drogas e de troca de seringas para usuários de drogas injetáveis.

Em segundo lugar, a questão de gênero que implica relações de poder e, em nossa sociedade, estão pautadas numa relação hierárquica entre homens e mulheres, cujos papéis sexuais, socialmente construídos, traduzem uma expectativa de passividade das mulheres em assuntos relacionados ao sexo (Villela, 1996); daí sua maior dificuldade em tomar a iniciativa de comprar, levar, propor, negociar o preservativo, sendo que para as adolescentes há sempre o risco de serem severamente criticadas em casa e na rua como “mulheres fáceis”. Além disso, a camisinha ameaça as noções de virilidade e de feminilidade, uma vez que, segundo os jovens, tira a sensibilidade, atrapalha o desempenho, sobretudo do homem. Normalmente ela é associada à prevenção da gravidez – considerada pouco segura em relação à pílula – à promiscuidade ou ao sexo clandestino e, agora, à aids. (Paiva, 1994).

Em terceiro lugar, há toda uma simbologia construída em torno da camisinha, no contexto da aids, que ilustra os significados da nossa cultura atribuídos à sexualidade. Antes de tudo, a camisinha significa vergonha, pois é confessar aos outros, os adultos sobretudo, que se é sexualmente ativo, numa sociedade onde ainda é grande o tabu em torno da sexualidade. Ela gera também desconfiança, constrangimento e medo de desagradar o parceiro. Para o jovem em busca do amor, a confiança é um pressuposto, e neste caso, a camisinha é um terceiro elemento, um intruso. Para aquele que espera uma paixão intensa, a camisinha é sinônimo de “romper o clima”. Ela racionaliza algo que é fundamentalmente não racionalizado. É uma interrupção do ato sexual, novamente um intruso. Ela tem que ser prevista, tem que estar sempre à mão (de um lado, racionalização, planejamento; de outro, espontaneidade do sentimento, do ato amoroso). Amor e prevenção da aids são antinômicos: se proteger da aids é ver no outro um risco eventual, é desconfiar do outro. O sentimento amoroso é indissociável da confiança e da cumplicidade. O desejo e o prazer supõem poder se abandonar ao outro e o discurso da prevenção vem se contrapor justamente a isto. O afeto no Brasil, afirma Paiva (1994), é preponderante nas relações sociais e sobrepuja o discurso racional. O afeto, a sedução e a familiaridade tornam toda infecção improvável, senão impossível, uma vez que o risco é negado pelo afeto.

Finalmente, um outro elemento a influenciar a percepção de risco do HIV/Aids, as representações sociais elaboradas para pensar a epidemia e a possibilidade de prevenção em nossa sociedade, pode ser encontrado no modelo contagionista de doença, presente no coração da cultura ocidental e ainda com grande força metafórica. A idéia de que todo contato constitui risco, o medo do contato físico (mácula/sujeira) permanece e mescla-se às diferentes maneiras de se compreender a infecção pelo HIV. Foi, aliás, a força da idéia de contágio que levou a atitudes de discriminação e até de exclusão, mais numerosas no início da epidemia, mas ainda existentes. O medo do contágio leva automaticamente ao afastamento. Segundo Fabre (1991), esta idéia provoca dois tipos de comportamento: ou o jovem é levado a fechar-se sobre si mesmo, evitando contatos sexuais percebidos como ameaça potencial à sua integridade física, ou surge a tendência para o fatalismo, para a crença de que se algo tiver que acontecer, vai acontecer de qualquer maneira, independentemente do que possa ser feito. No primeiro caso, o uso do preservativo não faz sentido, pois a relação sexual, quando ocorre, é considerada sem risco, uma vez que o parceiro é conhecido e confiável. No segundo caso, o preservativo igualmente não será usado, pois tudo depende do destino, da fatalidade.

Além disso, continua Fabre (1991), o discurso da solidariedade ao portador do vírus da aids, elaborado pelos programas governamentais e não-governamentais, numa tentativa de desconstruir a idéia de contágio (nas relações sociais), traz uma contradição que é inerente à percepção de risco e à prevenção: de um lado se insiste na solidariedade e, de outro, se proclama o uso do preservativo como solução técnica em não importa qual situação. É uma estratégia ambígua, pois agir como se o problema não existisse, ou não querer saber se o outro - seu virtual ou potencial parceiro soropositivo - tem ou não o vírus e usar o preservativo sempre e em todas as relações sexuais, reforça ao mesmo tempo o medo de saber e, conseqüentemente, o medo do outro. Afasta-se somente o medo de saber porque o medo do contágio permanece (“não transaria com um portador nem com camisinha”, “não beijaria alguém na boca se soubesse que tem aids”).

A relatividade do risco para os adolescentes que estão tendo suas primeiras experiências sexuais deve ser considerada, pois seduzir o parceiro, desempenhar bem o papel, não mostrar timidez ou inexperiência, se sentir amado, desejado, admirado, etc, podem ser dificuldades maiores ou preocupações prioritárias em relação ao risco da aids. Esta pode ficar para segundo plano para aqueles que pretendem viver intensamente o presente e aproveitar o máximo todos os momentos da vida, uma vez que se trata de um vírus que age a médio ou a longo prazo, não trazendo conseqüências imediatas visíveis.

Essas tensões e contradições, fruto de complexas e multideterminações sociais, presentes em vários trabalhos sobre o risco da aids entre jovens, foram observadas em pesquisa com abordagem qualitativa realizada em seis escolas públicas de Londrina, através da análise dos relatos escritos de 264 alunos sobre o que representa O risco da aids para eles2 . Pude observar o quão distante o discurso preventivo, baseado na racionalidade ou em noções probabilísticas, se coloca dos jovens aos quais pretende atingir. Eles não racionalizam a priori seus comportamentos sexuais em função de riscos teóricos, eles integram as informações ou conhecimentos adquiridos às representações sociais da doença, do contágio, da morte, do sexo e do amor, presentes em sua cultura.

Os relatos nos mostram um movimento permanente, como o de um pêndulo, de aproximação e afastamento ou de imersão e distanciamento entre o sujeito do discurso e o objeto ou assunto em questão – o risco da aids.

As representações elaboradas pelos jovens foram categorizadas conforme seu conteúdo, e cada uma dessas categorias temáticas3 expressam uma atitude, com graus diferentes de aproximação ou de afastamento em relação ao risco da aids. As representações sobre a aids-doença são ou descritivas, expressas através do jargão médico, indicando um certo distanciamento; ou apontam para aspectos negativos da doença, sinalizando uma menor distância do sujeito, uma vez que se começa a mobilizar alguns sentimentos; ou ainda expressam tentativas de explicação para a epidemia, sejam elas místicas, religiosas ou morais (“peste que veio como castigo”), responsabilizando ou culpabilizando pessoas ou “grupos de risco” (“não tenho risco nenhum porque não transo com qualquer vagabunda”) e apresentando um nítido movimento de afastamento ( o risco está no outro). Quando o jovem passa a falar do doente, observamos uma tentativa de se colocar no lugar dele, imaginar seu sofrimento, a discriminação que sofre. Com isto, trazem a possibilidade de se infectar pelo vírus para mais perto de si próprios. Os sentimentos expressos, sobretudo o medo da morte, tanto podem aproximar quanto afastar o sujeito do risco da aids, pois quando o sentimento de medo é muito forte, pode levar ao afastamento. São as categorias denominadas de generalização e de implicação pessoal as que melhor explicitam o movimento de aproximação e afastamento.

A generalização se expressa da seguinte forma: “o risco é de todo mundo”, “todos estão sujeitos à aids” ou “todos devem se prevenir”, e apresenta três possibilidades de interpretação. A primeira implica a idéia de que todos - inclusive o próprio sujeito – somos passíveis de infecção pelo HIV, o que demonstra uma mudança positiva na percepção inicial da aids, tomada como um problema apenas dos grupos de risco. A segunda, que também reflete uma mudança positiva, envolve a idéia da desculpabilização da doença, ou seja, ela deixa de ser algo “merecido” ou mesmo um castigo para alguns ou para a sociedade por causa destes, para ser vista como uma possibilidade da qual ninguém, uma vez que corra riscos, está livre. A terceira interpretação é de que estes relatos genéricos expressam um discurso amplo, geral demais e, arriscaria dizer, por vezes vazio no sentido de ser mera repetição do discurso preventivo, sem expressar implicação pessoal com relação ao assunto. O perigo deste tipo de generalização é que, se o risco é igualmente de todos, ele não é de ninguém, ou melhor, poderiam sentir-se preocupados os menos expostos e bem assegurados os mais expostos, persuadidos de que não estão mais expostos do que os outros.

Em um movimento contrário ao do afastamento do sujeito em relação ao risco da aids, surge um movimento de aproximação ou de implicação pessoal do mesmo, em maior ou menor grau, subdividida em três sub-categorizações: implicação pessoal pensada, vivida e ambígua.

A implicação pessoal pensada reflete o que o sujeito projeta para si ou o que aconselha a si mesmo. São intenções, desejos, hipóteses: “(...) daqui prá frente vou tomar o maior cuidado possível”, “(...) devo pedir orientação e procurar me prevenir”. É interessante notar o uso freqüente de verbos como pensar, procurar e tentar, denotando uma intenção que não necessariamente será realizada pelo sujeito, ou melhor, que ele poderá ou conseguirá realizar.

A implicação pessoal vivida aparece, raramente, quando o sujeito relata situações concretas por ele vivenciadas, relacionadas ao risco ou à prevenção: casos de aids na família (3 casos), conversas com a mãe ou o parceiro (ou a falta de diálogo por inibição), dúvidas concretas sobre a utilização do preservativo e relatos sobre não ter tido ainda relações sexuais até o momento (cinco relatos) e o não uso de drogas injetáveis.

Mas para melhor avaliar o nível de implicação pessoal dos sujeitos pesquisados, a categoria relacionada à implicação pessoal ambígua é a mais rica em informações e plena de significados, pois, como o próprio nome diz, revela ambigüidades, ambivalências e contradições na forma como o risco é percebido e/ou vivido pelo jovem:

As vezes enche o saco essa tal de Aids daqui, Aids dali, chega dar até nojo. Me sinto as vezes até enjoado ao ver Aids. Mas as pessoas quando vem falar sobre Aids, eu acho que é porque elas tem amor e não quer que a gente entre nesta onda. Mas as vezes sinto medo, pois não sei se estou com a doença. E tenho a máxima possibilidade de contrair a doença. Mas eu sou um cristão não me importo com isso, apesar que quando a gente é intimado para uma relação. A tentação é maior, mas eu acho-me um pouco crente para vencer esta tentação em nome do senhor Jesus. (16 anos, masculino, solteiro)

É evidente a tensão existente entre a prevenção e o risco, ou seja, de um lado, a razão, a racionalidade, a consciência, o pensar, o estar bem preparado, a prevenção, o preservativo. De outro, a emoção, o prazer, a espontaneidade, o sentimento, o “vacilo”, a “bobeira”, o tesão, “a hora h”. Esta tensão demonstra muito bem a riqueza e a complexidade da ação humana, mescla de imperativos psíquicos, sociais e culturais.

Além desta tensão, evidencia-se ainda uma idéia de irredutibilidade ou inevitabilidade do risco, contra a qual o sujeito nada pode. Decorre daí um mecanismo de defesa que se traduz no deslocamento do risco mais freqüente ou próximo das relações sexuais não protegidas para um risco mais remoto ou esporádico como, por exemplo, o de uma transfusão de sangue, ou de uma camisinha que pode rasgar. Neste caso, o controle se desloca da ação do sujeito e recai na ação de outros cujo curso ele, sujeito, não mais domina. “Se depender de mim...”, diz o jovem, mas será que depende? Há “forças maiores”, como Deus, o destino, a “tentação” ou o tesão, a “hora h”, ou simplesmente a “bobeira”, o “vacilo” do sujeito que não pode agir sempre racionalmente, principalmente no domínio da sexualidade, sem dúvida um dos mais afastados da lógica racionalista. Vejamos alguns relatos:

(...) porque hoje eu não tenho relações sexuais mas amanhã ou depois eu possa a vir a ter e não possa saber que o meu companheiro tenha o vírus e de repente ele possa estar protegido mas vai que a camisinha fure não é impossível, mas é possível também. (16 anos, feminino, solteira)

Eu pessoalmente tenho medo porque acho que sou nova para pensar em Aids. Eu tenho medo do risco da Aids porque eu tenho relação sexual com meu namorado, apesar dele ser meu namorado eu tenho medo. Nós conversamos muito sobre esse assunto mas também não é só pelo sexo que pega Aids, mas sim também pelo exame de sangue. Eu tenho medo do risco da Aids. Devemos cuidar do nosso corpo. (19 anos, feminino, solteira)

Imagino ser algo incrível que muitos até choram querendo voltar ao seu passado livre. Por isso peço a Deus que eu não seja mais um dos escolhidos pela Aids. E para que isso não aconteça o que temos que fazer é prevenir. (18 anos, masculino, solteiro)

É como se fosse uma pedra no caminho e eu tropeço, não tem hora para vir. (17 anos, masculino, solteiro)

(...), se tiver que acontecer comigo vai acontecer mesmo, então não dá pra ficar pensando nisso! (16 anos, masculino, solteiro)

O que podemos depreender dos relatos dos jovens participantes desta pesquisa é que o discurso da prevenção não consegue atingi-los em suas ambivalências e tensões e isto exige avaliações e reformulações constantes.

Diante das dificuldades sentidas em se prevenir de um vírus que pode estar presente em suas primeiras experiências sexuais, diante da insegurança em falar de camisinha quando se queria falar de amor e confiança, diante do constrangimento de racionalizar algo que é ou deveria ser espontâneo, o jovem repete freqüentemente em seus relatos, quase que como um refrão, para se lembrar, memorizar ou para tentar se convencer de que: “basta se prevenir”, “é só usar camisinha”, “sei que posso evitá-la”.

Talvez ele esteja em busca de uma valência para algo que é fundamentalmente ambi-valência, ou melhor, poli-valência, que é o amor e a paixão.

O discurso preventivo contém, dentro de si mesmo, seus próprios paradoxos e contradições, o que igualmente demanda avaliações e reformulações contantes. Segundo Fabre (1991), este discurso incorpora, na maioria das vezes, uma lógica probabilística, pressupondo uma racionalidade das pessoas que, em todas as circunstâncias, seriam capazes de operar escolhas coerentes nas suas relações amorosas e sexuais e de controlar o élan amoroso e usar preservativo. Ele partiria também de uma visão individualista do social, pois a prevenção dependeria somente da responsabilidade individual, da aplicação de uma técnica simples e eficaz - o preservativo - e a sexualidade apareceria como um jogo cujos riscos são assumidos na escala individual. Deixa-se de lado a dimensão social da sexualidade e do risco que se manifesta através dos múltiplos determinantes dos encontros afetivos e sexuais.

Precisamos, portanto compreender o imaginário do risco dos jovens e dar espaço para que eles expressem ativamente seus valores, angústias, medos, dúvidas, inseguranças, opiniões, intenções e motivações. Precisamos lhes proporcionar meios para se situarem pessoalmente em relação à epidemia da aids; meios para que eles consigam integrar os conhecimentos e informações a respeito da doença em sua vida cotidiana, em suas relações com os outros.

O discurso prescritivo com um modelo pronto e perfeito ou com uma única alternativa de prevenção quase nunca é aceito, pois traz dificuldades concretas de adaptação por parte dos jovens. O discurso descritivo e auto-reflexivo possibilita falar clara e sinceramente sobre a aids, levando em conta as contradições inerentes à sua prevenção, as dificuldades de várias ordens, já citadas, que precisam ser assumidas e não escamoteadas. Há a necessidade também de se trabalhar com as resistências e rejeições para poder desfazê-las, aos poucos, dando respostas às dificuldades experimentadas por eles. A informação é melhor recebida quando traz resposta a uma questão já formulada anteriormente referente à problemática pessoal de cada indivíduo. Só assim, desfazendo dúvidas, dando espaço para um debate ativo, é que se pode ir construindo uma atitude de positividade em relação à sexualidade, onde o sexo mais seguro possa se traduzir não como sinal de desconfiança, mas de cuidado mútuo. Processo complexo e de longa duração e não dissociado do processo de construção de cidadania, num país em que os limites entre a cidadania e a exclusão são tão tênues.

A abordagem do assunto, dada esta complexa rede das condições sociais e dos significados atribuídos à aids em nossa sociedade, não pode recair sobre o indivíduo, ou seja, não pode enfatizar uma construção racionalista e individual nem do risco nem da prevenção.


NOTAS

1 De acordo com o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, Ano XI, n.02, Semana Epidemiológica - 09 a 12 – março a maio de 1998, 70,7% dos casos de aids estão na faixa etária de 20 a 39 anos, o grupo etário mais atingido desde o início da epidemia. Se considerarmos o tempo médio de 10 a 15 anos no qual o portador do vírus pode ficar assintomático, então grande parte dos casos de infecção pelo HIV ocorrem na adolescência ou no início da idade adulta. [volta]

2 Tais relatos representam parte de minha pesquisa realizada para a tese de doutorado (Jeolás, 1999). [volta]

3 Tais categorias aparecerão em itálico doravante no texto.[volta]


ABSTRACT

This article presents a brief analysis of the social representations about the risk of aids among young people extracted from parcial data of qualitative research carried out State schools in Londrina-PR. It outlines the tensions and contradictions, ambivalences and ambiguities reflected by the the illness imaginary and by the preventive approach. A wide and complex chain of social, cultural, political, economic and individual determinants explain the difficulties perceived on the preventive actions: lack of programmes on health education and support for the drug abusers; the gender issue; the negative meanings attributed to condoms; and the great metaphoric strength of the contagionist model in the Occidental culture. In this context, the prevention actions must be re-evaluated to enable the youth to deal with the aids epidemic.

Key-words: Youth; HIV/Aids; Sexuality; Vulnerabiliy; Prevention


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