A OUSADIA DO SERVIÇO SOCIAL NO ESPAÇO DAS ONG’S

Wager Roberto do Amaral *
* Assistente Social, docente do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina e atual membro – diretor da APEART, gestão 1997-1998. Na APEART também coordena o PERI Projeto de Educação Reviver Indígena.

 

INTRODUÇÃO

O processo de crescimento e amadurecimento do Serviço Social como profissão no Brasil vem acompanhado do processo de desenvolvimento e configuração das Organizações Não-Governamentais (ONG’s) a partir de uma constante construção conjunta e coletiva para garantia de espaços, identidades, direitos e políticas sociais. Cada qual, contudo, buscando trilhar seu próprio caminhar, definir sua própria natureza e configurar sua própria identidade num mesmo contexto histórico e, muitas vezes, nos mesmos espaços geográficos.

Neste caminho, nos cabe portanto, relatar esta história, apresentar este contexto e evidenciar conceitos no sentido de caracterizar esta experiência marcada por aproximações constantes e sistemáticas entre a profissão de Serviço Social e a ação envolvente da Associação Projeto Educação do Assalariado Rural Temporário (APEART), ONG no estado do Paraná. Aproximação que vem ocorrendo processualmente, num relacionamento constituído por “flertes” (aguçando a observação junto à realidade e problemáticas, carências e demandas apresentadas pelos públicos-alvo envolvidos pela APEART), por “namoros” (trocando intenções, desejos, conhecimentos específicos, e dialogando sobre as possibilidades e limites de uma ação conjunta entre os técnicos, a direção da ONG e a população atendida), e por “casamentos” (estabelecendo compromissos, contratos, metas, numa relação de cumplicidade entre a ação técnica e política, entre a teoria e a prática, entre as demandas mediatas e imediatas, entre a experiências empreendidas pelos grupos já existentes e os novos conhecimentos a serem apreendidos e construidos,); uma relação onde se observa um alargamento do espaço profissional e institucional, envoltos pela criatividade, originalidade, organicidade e a pela constante busca de qualidade nas propostas e ações empreendidas. As possibilidades de se visualizar e de se alcançar tal empreita, aproximando e articulando o acumulo de informações entre a áreas de Educação e Serviço Social, de fato, aguça a curiosidade e instiga ao questionamento do(a) leitor(a) que porventura, possa levantar, permanentemente, impressões e questionamentos, contribuindo e refletindo assim, na sua e na experiência por nós relatada.

Ser organização não-governamental

Segundo a Associação Brasileira de ONG (ABDNG), a denominação Organização Não-Governamental não é representa um termo jurídico mas, social e historicamente construído. Apresenta-se como uma ou “um conjunto de entidades com características peculiares e reconhecidas pelos seus próprios agentes, pelo senso comum ou pela opinião pública”. Geralmente enquadram-se como entidades sem fins lucrativos, tais como, associações e ou fundações, reconhecidas ou não, formal ou informalmente, por órgãos governamentais nas instâncias municipais, estaduais e federal.

No Brasil, as ONG’s originaram-se de um processo marcado por um prolongado período de ditadura militar e de um recente período de abertura democrática o qual gestou uma nova sociedade civil organizada, conduzindo lutas e multiplicando princípios como participação, descentralização e universalização de direitos sociais.

Suas motivações apresentam-se através das possibilidades de autonomia, flexibilidade organizativa, e acessibilidade da maioria da população às políticas sociais públicas. Apresentam-se com uma nova face configurada através dos novos movimentos sociais: da negritude, das mulheres, dos sem-terra, dos ambientalistas, dos homossexuais, dos indígenas, das populações das periferias das cidades, dos meninos e meninas de rua, dos portadores de DST/AIDS, contra a fome e a miséria, dentre outros. As ONG’s desdobram-se de intenções e ações de projetos já empreendidos: pelas igrejas, comunidades, órgãos governamentais e de outras organizações não-governamentais.

Na Constituinte de 1988, foram alavanca fundamental na conquista dos direitos sociais, vislumbrando para maioria da população, a possibilidade de se encararem como cidadãos; concomitantemente, conquistaram seu reconhecimento social e político através do alargamento do conceito e representação de entidade e de ONG pela Lei Orgânica da Assistência Social de 1993. Ou seja, a aproximação entre o Serviço Social e as ONG’s - resultado de um processo dinâmico de conflitos, contradições e consensos – se efetiva através de um instrumento legal fundamental para a categoria dos assistentes sociais – a LOAS.

Ser APEART

A APEART é uma ONG originada através da Comissão Pastoral da Terra – CPT que, em 1992, evidencia a situação de exclusão social vivenciada pelos trabalhadores assalariados rurais temporários (“bóias-frias”) do norte do estado do Paraná. Dentre as características observadas, destacava-se a grande desinformação dos direitos sociais e trabalhistas por estes trabalhadores, bem como um grande índice de analfabetismo.

Provocada por esta situação, a CPT/Pr implementa no ano de 1993, o Projeto Educação do Assalariado Rural Temporário (PEART), através de uma parceria com a Secretaria Estadual de Educação/Pr, organizando e acompanhando no período, 116 turmas de alfabetização de jovens e adultos trabalhadores espalhados em 56 municípios do estado.

Em 1995, surge a Associação PEART, como entidade oficial gerenciadora do PEART (único projeto no período), contando então, com o apoio político da CPT. De 1995 à 1998, a APEART veio ampliando dinamicamente seu atendimento e abrangência, contando atualmente com 07 projetos (PEART-1993, PEPO-1995, PEJU-1995, PERI-1997, PEJAVIR-1997, PEABA-1998 e PEMMR-1998) 1 , envolvendo aproximadamente 9.000 pessoas entre: educandos, lideranças comunitárias, monitores, supervisores pedagógicos, coordenadores de projeto, pessoal técnico-administrativo, docentes e discentes universitários, associados e corpo diretor.

Neste processo, vem ampliando sua ação educativa, política e pedagógica (associando dinamicamente estas dimensões), respeitando e contemplando a diversidade sócio-cultural presente nos diversos sujeitos envolvidos nos projetos, possibilitando a construção e o acesso adequado de informações e conhecimentos os quais oportunizem o senso crítico através da alfabetização e escolarização dos educandos, bem como a formação continuada dos educadores.

Neste contexto, ser APEART representa ampliar o acesso da população jovem e adulta marginalizada (no campo e na cidade) ao direito básico e fundamental de ler e pensar o mundo – parafraseando Paulo Freire – utilizando e (re)configurando a ferramenta elementar que é a Educação (processos e recursos de aprendizagem: leitura, oralidade, escrita, habilidades, etc) como instrumento de fomento à organização e emancipação dos vários segmentos envolvidos (“bóias-frias”, indígenas, posseiros, sem-terra, atingidos por barragens, meninos(as) de rua e jovens de periferia), visando sua expressão e organização próprias na conquista e garantia de seus direitos.

Ser Serviço Social - Educação na APEART

As aproximações entre o Serviço Social e a APEART ocorreram desde 1993, através da elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso objetivando a análise dos objetivos e resultados do PEART, bem como na identificação dos avanços e limites já observados no referido projeto. A pesquisa possibilitou a caracterização da APEART, evidenciando seu histórico e oportunizando a avaliação de suas ações, objetivos e resultados, indicando a necessidade de se afirmar uma cultura organizacional que privilegiasse a avaliação de forma processual. Subsidiou, posteriormente, sua ampliação e sua dinâmica restruturação desta Associação, a qual se apresentará como uma organização com características empresariais (quadro de funcionários na ativa, estrutura burocrática e administrativa mínima, patrimônio próprio adquirido, organograma, metas e missão definidos, dentre outros.), mesclada com uma dimensão popular que a diferencia das demais organizações, potencializando o senso crítico e a participação dos educandos (e lideranças comunitárias através dos Grupos de Base e Apoio de Alfabetização (GBAS) organizados nas comunidades onde funcionam as turmas), dos educadores (equipes de monitores, supervisores pedagógicos, coordenadores, quadro técnico-administrativo, assessoria pedagógica) e o envolvimento das demais parcerias (CPT, AFATRUP, UEL, UNICENTRO, Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, FUNCART, Conselhos Indígenas, Movimento dos Posseiros do Paraná, Sindicatos, Igrejas, etc) na garantia dos princípios e diretrizes político-pedagógicas definidos pelos Projetos, subsidiando a sua gestão em conjunto com a Diretoria Executiva.

Em 1997, a APEART contempla em seu quadro técnico 01 assistente social que responderá a demandas específicas da Organização através da delimitação de funções, conjuntamente com a Direção. Importante destacar que o objeto essencial da Associação PEART corresponde à Educação de Jovens e Adultos na perspectiva da Educação Popular. Coube ao profissional a apreensão dos conhecimentos específicos da área da Educação e da Educação de Jovens e Adultos, bem como das discussões atuais nos âmbitos estadual, nacional e internacional sobre o tema. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, os Parâmetros Curriculares Nacionais e Estadual, os documentos nacionais e internacionais para a EJA, dentre outros, passam a se constituir novos instrumentos de trabalho cotidiano, possibilitando a constante aproximação entre o Serviço Social e a área da Educação.

Definiu-se como função prioritária para a ação profissional do Assistente Social, a coordenação do Projeto Educação Reviver Indígena (PERI) – projeto de educação de jovens e adultos indígenas kaingang, guarani e xockleng, iniciado em 1997 e presente em 12 Áreas Indígenas do estado do Paraná. O PERI se apresenta como a primeira ação planejada e executada na modalidade de EJA, no território nacional, à ser realizada nas escolas das aldeias indígenas, seguindo as diretrizes da Política Nacional de Educação Escolar Indígena 2 , apreciado e reconhecido pelo Núcleo de Educação Indígena do Paraná (SEED/NEI-Pr), pela Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena e pela Coordenação Nacional de Apoio às Escolas Indígenas/MEC.

No desafio e responsabilidade de contribuir para a viabilização do PERI, optou-se pelo exercício de coordenação buscando refletir, tomar decisões e operacionalizar o Projeto de forma colegiada junto às lideranças e professores indígenas, e demais organizações governamentais e não-governamentais, oportunizando assim, o contato, a construção, a dinâmica definição e redefinição de conceitos, metodologias, conhecimentos, linguagens, aguçando a sensibilidade e reforçando o compromisso da APEART para com a causa indígena.

Propiciando a alfabetização e ensino supletivo de 1º grau aos jovens e adultos indígenas, o PERI objetiva fomentar e fortalecer a organização social e política das comunidades indígenas, afirmando e respeitando sua identidade étnica e cultural. Fundamenta-se na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Base da Educação, nas Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena/MEC, nas diversas experiências de educação escolar indígena no país 3 , e na bibliografia existente sobre a temática.

Através do planejamento colegiado, definimos e utilizamos procedimentos metodológicos contemplando momentos, atividades e indicadores de resultados os quais oportunizaram e vem oportunizando a operacionalização do Projeto. (quadro anexo)

CONCLUSÃO

Evidenciando o processo de implantação e operacionalização do PERI, bem como do desenvolvimento e acompanhamento dos demais projetos da APEART, vislumbramos algumas conclusões as quais entendemos fundamentais e relevantes. Dentre elas destacamos:

• a possibilidade de atender a necessidade e expectativa expressa pela população indígena do estado do Paraná, no que diz respeito ao acesso à continuidade da escolarização fundamental aos jovens e adultos nas aldeias indígenas, essencial na busca de alternativas de preservação e sobrevivência das comunidades indígenas, principalmente no que se refere à reflexão e definição de políticas educacionais, culturais, lingüísticas e econômicas pelas próprias comunidades;

• a ousadia e o pioneirismo em oferecer o ensino diferenciado e bilíngüe, na modalidade apresentada, nas próprias comunidades, atendendo aos preceitos da CF88 e da LDB, articulando e capacitando os quadros presentes nas aldeias, apostando e investindo no seu potencial criativo, combativo e comprometido com os princípios democraticamente e coletivamente definidos;

• a importância da experiência desenvolvida e relatada para apresentação, debate e proposição junto ao Estado, nas suas várias instâncias de governo, influenciando na definição das políticas sociais públicas – matéria-prima das ações dos Assistentes Sociais – comprometendo o poder público na oferta da educação pública, gratuita e de qualidade (multicultural e comunitária), respeitando os processos próprios de ensino-aprendizagem dos vários grupos sociais e culturais.

• a importância da presença e do papel das ONG’s no cenário nacional e internacional, como espaço e instrumento de defesa dos direitos da população econômica e socialmente excluída, propondo e desenvolvendo ações que atentem, desafiem e comprometam o poder público no seu compromisso de prover políticas sociais públicas com qualidade e efetividade garantidas através do controle e da participação da população usuária.

• a necessidade, possibilidade e importância dos Assistentes Sociais apreenderem novos conhecimentos e habilidades, ocupando novos espaços profissionais (em organizações governamentais e não-governamentais), desenvolvendo ações intersetoriais, compondo equipes interdisciplinares, ampliando seu universo cultural, técnico, político e conceitual, propondo e projetando experiências criativas, inovadoras, originais e de impacto social;

Vislumbramos portanto, a constante aproximação das ONG’s como espaços potenciais para a ação do Assistente Social e de demais profissionais, desafiando-os a construir, dinâmica e efetivamente um novo perfil técnico, téorico e político capaz de responder às reais demandas sociais num contexto de permanente mudança.


NOTAS

1 Vide tabela 01, em anexo. [volta]

2 As Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena correspondem aos conceitos de educação diferenciada, especifica, bilíngüe e intercultural. [volta]

3 Comissão Pró-Indio do Acre, Projeto Tucum/SEDUC - Mato Grosso, Instituto Sócio Ambiental/ Pq Indígena do Xingú – Mato Grosso, dentre outros. [volta]

>> volta para índice