Emancipação e Modernidade: elementos para uma discussão *

Danuta E. Cantoia Luiz**

** Assistente Social (UEPG), Mestre em Serviço Social pela PUC, Doutora em Serviço Social pela PUC, Professora Adjunta do Curso de Serviço Social e do Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas – UEPG. danutaluiz88@gmail.comr

RESUMO:
O presente artigo refere-se a uma síntese histórico-social sobre o tema Emancipação e Modernidade, objetivando a compreensão das circunstancialidades históricas da Modernidade que demarcam a  demanda por emancipação humana como um fenômeno social e político que trilhou os contraditórios caminhos da sociedade moderna. Foi preciso desvendar, à luz do pensamento marxiano, os contraditórios significados da emancipação burguesa – moldados pelas dominantes relações da classe burguesa que intitulava-se revolucionária. Tomamos como referência o estudo dos dois grandes marcos históricos modernos: a Revolução Francesa e o Iluminismo, pois foram os mentores ético-políticos da proposta emancipatória da Modernidade, propagando valores, ideais e perspectivas à sociedade moderna. Neste processo, identificamos que o capitalismo associado ao pensamento liberal, com presença hegemônica no mundo moderno, revalorizou os elementos constitutivos desta sociedade, cerceando processos emancipatórios à classe subalterna.

PALAVRAS CHAVE : Emancipação – Modernidade.

ABSTRACT:
The present article mentions to a social historical synthesis on the subject Emancipation and Modernity, objectifying the historical circumstances understanding of Modernity that demarcate the demand for emancipation human as a social phenomenon and politician which trod the contradictory ways of the modern society. It was necessary to unmask, based at the Marx’s thought, the contradictory meanings of the emancipation - molded by the dominant relations of the bourgeois class that was called revolutionary. We take as reference the study of two great modern historical landmarks: the French Revolution and the Iluminism, therefore had been the mentors ethical-politicians of the proposal emancipatory of Modernity, propagating values, ideas and perspectives to the modern society. In this process, the capitalism associated with the liberal thought, with hegemonic presence in the modern world, revalued the constituent elements of this society, curtailing emancipatory processes to subaltern class.

KEY WORDS: Emancipation  -  Modernity.


“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas nas condições dadas diretamente e herdadas do passado.” (MARX, 18 Brumário 1852)

 

    Introdução

Para compreender e enfrentar as questões e desafios da sociedade contemporânea tem sido uma constante a reconstrução de temáticas da Modernidade, pois as suas marcas e desdobramentos são determinantes das conjunturas e configurações sócio políticas contemporâneas. Esse procedimento nos instrumentaliza a identificar processos históricos, a enfrentar tendências antimodernas e a renovar  a certeza da centralidade da razão como uma das alternativas no processo de busca da emancipação humana.

Hobsbawm (2001) inicia a introdução de seu livro A Era das Revoluções afirmando que as palavras “... são testemunhas que muitas vezes falam mais alto que os documentos. Consideremos algumas palavras que foram inventadas, ou ganharam seus significados modernos ...” (p.17) como por exemplo: ‘indústria’, ‘fábrica’, classe média’, classe trabalhadora’, ‘proletário’ que são “cunhagens ou adaptações reveladoras” da Modernidade, pois expressam as configurações, o modo de vida, as discussões que a permeavam.

Também a palavra emancipação, aqui considerada como categoria de pesquisa, é intrínseca à Modernidade, pois é nesta, que se reinstituem historicamente as temáticas e valores humano-sociais, após longo período de dogmatismo religioso da vida social, cultural e política, justificando assim o seu destaque no mundo moderno. Gramsci (1991) argumenta que para entender a cultura moderna pressupõe “... todo esse passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia clássica inglesa, o liberalismo laico e os historicismo; em suma: o que está na base de toda concepção moderna da vida.” (p. 106)

Portanto, para compreender os desdobramentos e configuração da categoria emancipação na sociedade moderna, é uma exigência metodológica recorrer aos processos históricos, nos quais, a categoria foi ganhando diferentes significados. Em especial, para este artigo, para dar conta desse pressuposto, buscamos sistematizar alguns elementos sobre a relação entre Modernidade e emancipação a fim de subsidiar teoricamente a análise e materialização de práticas emancipatórias.

 Emancipação e Modernidade: elementos para uma discussão.

Retomando a emancipação como uma das temáticas ou um dos valores  modernos, logo o relacionamos com a ruptura  da Idade Média (pós - século XII), com o Renascimento, com  a emergência e constituição do Ocidente e com alguns de seus movimentos constitutivos que são marcos da história humano - social: - o Humanismo; o Iluminismo; os movimentos e revoluções européias e norte americanas dos séculos XVIII e XIX contra governos autoritários; em especial, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, considerados como circunstancialidades e rupturas históricas que determinam a configuração da temática emancipação humano-social na Modernidade. Portanto é necessário recorrer a esses fenômenos históricos para compreender o processo de constituição da sociedade moderna e, por conseguinte, a constituição da demanda histórico-social da emancipação humano-social

A influência do Humanismo neste debate dá-se pela característica de um movimento cultural, referendado nas culturas clássica, grega e romana, que objetivou retomar suas formas literárias e artísticas, como também propagar os valores humanos que as fundamentavam. Etimologicamente “...o termo vem do ciceroniano ‘humanitas’, que significa ‘erudição’ e ‘cultura’, mas também ‘comportamento correto e civil’, e ‘dignidade’. E os termos tão usados até pouco tempo de ‘studia humanitatis’ ou  ‘humanae litterae’ significavam exatamente o estudo das obras dos antigos com a finalidade de formar-se o estilo ‘humanista’ de falar e escrever e também de viver.” (NOGARE, 1981, p.56)  Aqui o Humanismo é um dos instrumentos para repensar a posição do Homem como sujeito da história, justificando, portanto, uma sociedade fundada no antropocentrismo, o que muda radicalmente os referenciais ideológicos e culturais das relações sociais do período.

Ainda segundo o autor, há vários sentidos para a palavra humanismo: indo do estudo dos grandes autores da cultura clássica, grega e romana (enquanto forma literária e de assimilação dos valores humanos), passando pelo humanismo cristão (valor do homem como pessoa, autônoma, individual e orientada por Deus), pelo humanismo renascentista, pelo humanismo moderno de Descartes (1596 – 1650), Kant (1724 – 1804) e Hegel (1770 –1831) que faz da subjetividade do Homem o ponto de partida, o centro da perspectiva e construção de toda a realidade, chegando ao humanismo de caráter ético-sociológico, isto é, o humanismo que visa tornar-se realidade, costume e convivência social, pois “... considera humanista aquela doutrina que atribui ao homem, à sua realização na sociedade e na história, o valor de fim, de forma tal que esteja subordinado ao homem, considerado como meio ou instrumento para algo fora de si.” (NOGARE, 1981, p. 16)

Os valores do Humanismo romperam filosófica e politicamente com a concepção de Homem dominante na Idade Média, fomentando a constituição dos valores modernos: da individualidade, da autonomia, da liberdade, através da razão humana, instituindo um novo pensamento sócio-político e cultural à sociedade.

Como expressão do enfoque humanista, que influenciava filosoficamente grande parte das teorizações e práticas do Período Moderno, tem-se a  emancipação humana, caracterizando-se como uma demanda, como uma necessidade humana de emancipação de dogmas religiosos e de renascimento de valores humanos.

No transcorrer do processo histórico, o projeto ideológico e filosófico que orienta o  período de transformações revolucionárias - que marca em especial os séculos XVIII a XIX– e contribui para o triunfo de um determinado pensamento social  é o Iluminismo.

Segundo Severino (1994) o Iluminismo é a

 

... concepção filosófica de acordo com a qual o conhecimento se dá em função das luzes da razão e que só o conhecimento racional critico e a cientificidade emancipa o homem da superstição e do dogma, provendo seu progresso em todos os campos. Por extensão, é todo  movimento político, literário ou cultural que se apóia nessa visão.” (p.108) (grifo nosso)

 

O Iluminismo tem papel essencial na luta da razão humana frente ao poder das trevas e /ou da monarquia, a explicação dogmática das relações do homem com a natureza, pois desencadeia processos científicos de explicação da vida humana em sociedade e abre possibilidades do próprio homem edificar o seu destino: desmistificado, secularizado e “emancipado”, abandona os dogmas religiosos. A tradição religiosa e a autoridade perdem gradativamente seu caráter sagrado, assim como com os poderes estabelecidos (Igreja e monarquia), os pressupostos da autonomia social e individual entram em cena depois de um período de sombras da Idade Média, urgindo por novas teorias que explicassem a realidade e propusessem novas visões de mundo. Essas teorias seriam fundamentadas nos valores da razão e do conhecimento / ciência como possibilidade de liberdade, de emancipação humana.

Sob a influência das marcas iluministas “fomos emancipados” da crença no ato da criação, da revelação e da condenação eterna, encontramos por nossa própria conta  a capacidade de aperfeiçoamento, de coragem, de vontade, de busca. O Iluminismo, aguçando esses valores humanos passou a ocupar lugar de destaque na ação política desenvolvida desde então, tendo o papel histórico importante de ruptura com o padrão civilizatório anterior. O Iluminismo pode ser chamado de emancipação:

 

... isto é, liberação do potencial novo, resultante da abolição das antigas regras e regulamentações. Como utilizado na lei romana, o termo emancipatio designava a libertação de um filho da autoridade paterna, isto é, a emancipação das relações patriarcais (...) ‘A emancipação da mera obediência cega que torna supérflua toda a forma de coerção e ordens pressupõe, ao mesmo tempo, que a orientação para o nosso comportamento esteja em nós mesmos’ (Foster,1792). Emancipação, libertação de um mundo estreito e arcaico, abarcando tanto indivíduos como grupos sociais: a classe média, os súditos do monarca, as classes inferiores, os servos ... (ULRICH apud LEITE, 1998, p.38)

 

Através da aproximação que o autor faz do Iluminismo com o conceito de emancipação podemos perceber o processo empreendido pelo mesmo para instituir um novo padrão de sociedade, enfrentando os poderes da Igreja e do Estado Absolutista, e perante estes emancipando-se, ou seja,   passando de um estágio de submissão para outro de liberdade.

A luta pela liberdade e pela emancipação é uma construção humano-social histórica e que tem presença marcante neste período, determinada por categorias que fundamentam a Modernidade...

... a idéia iluminista propõe estender a todos os indivíduos condições concretas de autonomia, em todas as esferas. Em outras palavras, ela é universalista em sua abrangência – ela visa todos os homens, sem limitações de sexo, raça, cultura, nação -,  individualizante em seu foco – os sujeitos e os objetos do processo de civilização são indivíduos e não entidades coletivas -, e emancipatória em sua intenção – esses humanos individualizados devem aceder à plena autonomia, no tríplice registro do  pensamento, da  política e da economia. (ROUANET, 1993, p. 33)

 

Destacam-se, nesta passagem, os principais elementos do projeto civilizatório da Modernidade: universalidade, individualidade e autonomia:

 

A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, independente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais. A individualidade significa que estes seres humanos são considerados como pessoas concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor  ético positivo à sua crescente individualização. A autonomia significa que esses seres humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência material. (ROUANET, 1993, p. 9)

 

Apesar de enaltecer os propósitos emancipatórios do Iluminismo, o autor não hesita em afirmar que este projeto civilizatório esta vazando água por todos os lados desde a concretização dos “valores revolucionários / principais ingredientes” nos séculos XVIII e XIX, que o direcionaram conforme as necessidades e diretrizes da estruturação e desenvolvimento do capitalismo[1].

Para compreender esse processo contraditório entre proposição e concretização dos valores revolucionários modernos retomamos o ícone que representa a “instituição” destes valores: a Revolução Francesa.  Segundo Hobsbawn (2001), a Revolução não pode ser vista isoladamente de outros fenômenos ou da movimentação econômica e política dos referidos séculos, como por exemplo, a Revolução Industrial (década de 1780  se estendendo até metade do século seguinte) que teve como berço a Inglaterra e foi propagada por todo o mundo ocidental. A economia moderna sofreu influência direta dos seus fundamentos: o aumento da produtividade com o favorecimento das condições para o acúmulo de capital, com o lema que estava transformando o mundo  “comprar no mercado mais barato e vender sem restrição no mais caro”. Diz o autor sobre a Revolução Industrial: “Os deuses e os reis do passado eram impotentes diante dos homens de negócios e das máquinas a vapor do presente” (p.69) Também a política já estava atrelada ao lucro, o dinheiro não só falava mais alto, como governava.

A Revolução Industrial forneceu as bases (na dimensão econômica  / relações de produção e de trabalho) para a consolidação do modo de produção capitalista, no qual estabelece-se uma relação entre a classe burguesa e classe proletária[2] de compra e venda da força do trabalho humano transformado em mercadoria. O capital domina o processo de produção e de acumulação de riqueza, ou seja, a propriedade dos meios de produção define a relação a ser estabelecida entre os homens, que neste caso, caracteriza-se pela dominação de uma classe sobre a outra – dominação de uma minoria sobre a maioria – refletindo um tipo de pensamento que modelou a economia e a cultura política e social moderna. As contradições inerentes a esse modelo de vida social e econômica se evidenciaram, ocasionando a revolta da classe trabalhadora devido às condições de trabalho e miséria (bastante debatidas na historiografia[3]), levando a manifestações em vários países da Europa, em especial na Europa Setentrional, contra o sistema industrial, político e econômico.

 Assim compreendemos a característica do período que compreende a segunda metade do século XVIII e primeira do século XIX marcado pelas revoluções burguesas e proletárias – entendidas também como iniciativas históricas que buscaram romper com as contradições que as cercavam.

Incluída nesta característica a Revolução Francesa (França - 1789) enfrentou o regime absolutista e forneceu as bases (na dimensão política e ideológica) que marcaram a Modernidade e em especial o século XIX. Foi definitivamente de todas as revoluções que a precederam e a seguiram a “revolução social de massa”, foi a única ecumênica, que se espalhou por todo mundo, fomentando os movimentos revolucionários subseqüentes, inclusive o socialismo e comunismo modernos.(HOBSBAWM, 2001)

A Revolução Francesa foi liderada pela burguesia, como um grupo social, que teve como base os filósofos e economistas do liberalismo clássico[4], portanto foi essa direção social e política que, hegemônica e ideologicamente, prevaleceu. Em nome da “soberania do povo” (legitimada pela legislação resultante do período revolucionário), foram retratadas as “exigências do burguês” na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789:

Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. ‘Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis’, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais, ainda que ‘somente no terreno da utilidade comum’ (...) A declaração afirmava (como contrário à hierarquia nobre ou absolutismo) que ‘todos os cidadãos tem o direito de colaborar na elaboração das leis’; mas ‘pessoalmente ou através de seus representantes’. E a assembléia representativa que ela vislumbrava como órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembléia democraticamente eleita (...) Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a republica democrática que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também advogassem esta causa. Mas no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários.” (HOBSBAWM, 2001, p.77)

 

Um dos primeiros filósofos do Ocidente que desvenda as contradições da sociedade que emergiu da Revolução Francesa, estudioso do Estado moderno, profundo adversário do pensamento liberal, Hegel (in OLIVEIRA (1996), analisa a Revolução sob dois pontos de vista: o primeiro com “entusiasmo”, pois traz a liberdade como fundamento à convivência humana (inclusive a “mundanizou”), e a segunda, com uma crítica radical à parcialidade deste princípio, pois não passa de uma liberdade abstrata, do vazio – uma vez que não é efetivada. “Para Hegel, a liberdade só se efetiva à medida que se determina (...) É precisamente essa síntese que constitui a grande tarefa do homem em todos os períodos de sua existência, síntese nunca plenamente realizável, dadas as contingências que sempre marcam a vida do homem” (OLIVEIRA, 1996, p.231)

Ou nas palavras de Gramsci: “... as idéias de igualdade, liberdade e fraternidade fermentaram entre os homens, entre os homens que não se vêem nem iguais, nem irmãos de outros homens, nem livre em face a eles.” (2001, Vol I, p.205) A liberdade não se efetiva por si só, mas através da construção de um mundo positivo, de instituições geradoras de espaço de liberdade, ou seja, o pano de fundo, o conjunto de relações que dá a base de sustentação para a efetivação da liberdade não a oportunizou, mas a limitou num duplo movimento: a acumulação da riqueza, por um lado, e de outro, a grande massa abaixo de subsistência.

Para o autor a concretização da liberdade é uma das lacunas da Revolução Francesa, diríamos, da Modernidade. Para alcançar essa liberdade parte-se do pressuposto que todo homem, enquanto tal, é portador de direitos e só quando usufrui dessa universalidade é que pode emergir uma sociedade propriamente racional – política.

Nessa mesma linha de raciocínio Mota (1989) questiona a concretização do direito a propriedade como um ‘direito natural imprescritível’, o que também não aconteceu com a igualdade... “ Os ‘homens nascem iguais’ perante a lei, os impostos e os empregos, é certo, mas quem faz a lei? Essa questão seria a pedra de toque das lutas, das teorias e das frustrações posteriores. Das diferenças, enfim.” (p.69) Com uma intenção declarada em favor dos direitos do homem e do cidadão, enfatizando o direito individual e o direito a propriedade, não poderia produzir resultados, de curto ou de longo alcance, senão os previstos implicitamente na Declaração, em vez de direitos, evidenciaram-se as diferenças a favor de alguns.

Indo além do que estava explicito na Revolução Francesa, Mota (1989) argumenta que não só as idéias dos filósofos da Modernidade a explicam, mas também a “fome aguda que grassava nos campos e cidades.” Por ter sido liderada e controlada pela burguesia, a Revolução deve ser conceituada como burguesa, porém não devemos dissociá-la do “... movimento camponês e popular que lhe deu sustentação (...) A fome e a carestia da vida estavam na base desses movimentos ...” (p.15) Devido a crise econômica os camponeses faziam manifestações contra as leis que ainda tinham algumas marcas do feudalismo. A classe trabalhadora, que sofria na pele as contradições, se manifestava, mas não tinha independência de classe porque historicamente não tinha uma caminhada enquanto classe, senão como trabalhadores individuais lutando pela subsistência. Por essa razão, a classe trabalhadora era guiada pela burguesia que se intitulava como classe revolucionária, e que em nome do “povo”, instituiria nova forma de governo. Contudo, a classe trabalhadora foi traída no sentido de não ser incluída enquanto classe beneficiária, com os mesmos privilégios da burguesia.

Nesse processo, houve várias Revoluções dentro da Revolução. Mas a melhor síntese talvez tenha sido a do próprio revolucionário Marat. Ao denunciar a traição ao povo pelos ‘conspiradores educados e sutis da classe superior’, que a princípio se opuseram aos déspotas e se insinuaram na confiança popular, voltando-se depois contra ‘os de baixo’, escreveu: ‘O que as classes superiores ocultam constantemente é o fato se que a Revolução acabou beneficiando somente os donos de terra, os advogados e os chicaneiros’.” (MOTA, 1989, p. 206)

 

A traição também se caracterizou pela mudança de posição que a burguesia possuía: de vanguarda, de revolucionária (contra o regime absolutista), passou à posição de justificação e manutenção do existente (tanto prática como teoricamente). Coutinho (1972) chama essa etapa da história da filosofia da sociedade moderna de filosofia da decadência – por representar o pensamento imediatista, centrado nas aparências fetichizadas e ideologizadas  da realidade.

Marx e Engels, no início do século XIX, já haviam constatado essa ocultação de forças pela burguesia para manter o novo quadro instituído e tomar a posição ideológica de condução da sociedade, a exemplo em duas passagens conhecidas da obra A Ideologia Alemã:

 

As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. (1979, p. 72)

Os homens são produtores de suas representações, de suas idéias etc., mas os homens reais e ativos, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas (...) E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida. (1979, p. 36 –37)

 

Marx que viveu as influências do Iluminismo e os movimentos revolucionários do século XIX, em 1848, denunciava o caráter contraditório da emancipação burguesa, pois entendia que a distinção entre as classes é um impeditivo da emancipação humana. Argumenta que a sociedade burguesa brotou das ruínas da sociedade feudal e não aboliu os antagonismos de classe. “Não fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta às que existiram no passado.” (in FERNANDES, 2001,p. 366) Assim, o pressuposto de que o homem é produtor da história fica limitado pelas condições estruturais que  o cercam para poder fazê-la. “ A história não faz nada, ‘não possui uma riqueza imensa’, ‘não dá combates’, é o próprio homem, o homem real e vivo que faz tudo isso...” (in FERNANDES, 2001 p.48)  Acredita que os homens são produtores da sua história, porém “...não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas nas condições dadas diretamente e herdadas do passado” ( idem ibidem p. 48).

Na pesquisa bibliográfica sobre o pensamento marxista em busca de uma fundamentação sobre emancipação humana encontramos em Konder (1998), Fernandes (2001), Bottomore (1988), Vázquez (2001), Frederico (1995) E Rouanet (1987), a indicação de que a temática seria encontrada (de forma explícita) nas obras do jovem Marx: “A Questão Judaica” escrita em fins de 1843 – 1844 e na “Introdução à critica da Filosofia do Direito de Hegel” (1844), logo, fontes indispensáveis para esta pesquisa. Além de outras obras onde o tema é abordado não de forma específica, mas atravessa como uma constante no estudo que o autor faz da sociedade capitalista moderna – espaço histórico que viveu enquanto teórico e militante da história em processo.

Especificamente na obra “A Questão Judaica”, Marx faz uma crítica a Bruno Bauer[5] que questionava os Judeus pelo seu egoísmo em lutar pela sua liberdade religiosa frente ao Estado, que por sua vez negava-lhes a igualdade de direitos perante a lei. Bauer defendia o ateísmo como pré - condição para a emancipação política dos judeus: “... o judeu não pode, sem abrir mão da sua essência, ser emancipado.” (BAUER in MARX, s/d, p. 14) Isto é, para a sua emancipação o judeu deveria emancipar-se de sua própria religião,[6] pois a influência dos ideais religiosos iria se sobressair à sua natureza humana.

A crítica de Marx referia-se à limitação dos questionamentos de Bauer sobre a emancipação política pretendida pelos judeus, enfocando determinantes religiosos e políticos limitados à circunferência da sociedade burguesa para tanto.  Bauer ignorava a luta secular sobre :

 

 ... a relação entre o Estado político e suas premissas, sejam estas elementos materiais, como a propriedade privada, etc., ou elementos espirituais,como a cultura e a religião; desconhece \ luta entre o interesse geral e o interesse particular, o divórcio entre o Estado político e a sociedade burguesa: deixa de pé estas antíteses seculares, limitando-se a polemizar contra sua expressão religiosa.” (MARX, s/d, p. 27 – 28)

 

Marx polemiza então, nesse momento da história e da sua produção, a relação da religião com o Estado dando seqüência aos seus estudos sobre o Estado moderno a partir de uma questão concreta da época e tematizando a questão da emancipação humana, que em seu entendimento constitui uma fase superior à emancipação política.

 

 Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual. É obvio que nos referimos à emancipação real, a emancipação prática. (MARX, s/d, p.28)

 

O autor questiona o caráter dos direitos humanos defendidos pela Revolução Francesa; e Frederico (1995, p.98) complementa: estes “... não exprimem a identidade entre os homens, mas sim a separação do homem em relação ao homem. Expressam portanto, uma concepção negativa que vê na realidade do outro não a realização, mas um limite da liberdade individual”. Assim, priorizam o homem egoísta restringindo os seus interesses particulares e levando a uma indiferença da vida comunitária. Marx destaca que os direitos “... só podem ser exercidos em comunidade com outros homens, seu conteúdo é a participação na comunidade, e conseqüentemente, na comunidade política, no Estado.” ( p.39)

Com esse argumento defende que Bauer estava enganado em criticar os judeus, pois a emancipação destes para com a religião não lhes permitirá a eliminação da contraditória relação com o Estado (prussiano), mesmo gozando dos direitos civis instituídos, continuará a estrutural alienação humana, conservando interesses particulares para além dos coletivos, e com isso a manutenção das características e fundamentos da sociedade burguesa.

Afirma ainda que, o homem se emancipa politicamente da religião ao bani-la do direito público transferindo-a para o direito privado. A religião então, nada tem a ver com o Estado democrático, mas deve estar vinculada a esfera da vida privada. “O chamado Estado cristão necessita da religião cristã para aperfeiçoar-se como Estado. O Estado democrático, real, não necessita da religião para seu aperfeiçoamento político.” (MARX, s/d,p.31)

Fica explicito em suas argumentações que emancipação tem a ver com democracia. Segundo Vázquez (2001) o que Marx chama de “emancipação humana” (em A Questão Judaica – 1844) equivale a “verdadeira democracia” que por sua vez “... significa a superação da eliminação do universal e do particular, do homem político e do homem real, egoísta, da sociedade burguesa.” (p.66) Marx critica a emancipação nos moldes desta sociedade, pois a emancipação apregoada  se caracteriza pelo “... indivíduo fechado em si mesmo, em seu interesse próprio e em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade.” (MARX, apud VÁZQUEZ, 2001, p. 67) A emancipação humana só poderá ser alcançada fora da sociedade burguesa, com a superação dos interesses individuais, da dominação e da falta de liberdade.

De outra forma a

 

...liberdade do egoísta e o reconhecimento desta liberdade são a expressão do reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que formam seu conteúdo de vida. Por conseguinte, não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial (MARX, s/d, p.50)

 

Na crítica à Modernidade, argumenta que os direitos humanos instituídos pela Revolução Francesa (1789) desembocaram em momentos contraditórios: por um lado revolucionaram as relações feudais, por outro, cercam o individuo em seu egoísmo, na sua propriedade, na sua liberdade perdendo a dimensão da totalidade onde está inserido. Portanto, diz MARX  que toda

 

 ... emancipação é a redução do mundo humano, das relações, ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral. Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas ‘forces propes’ como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana. (s/d,p. 52) (grifo nosso)

 

Tendo a emancipação como horizonte dos direitos humanos, Marx é determinado em dizer que o processo que extrapola o círculo do individuo independente da sociedade burguesa, para converter suas relações individuais numa dimensão social, como força social organizada na construção democrática de outro tipo de sociedade é que a emancipação humana se realiza.

Esse argumento marxiano começa a ser expresso quando o autor busca referência na economia política, a qual amadurece o seu ‘pensamento jovem”. Especificamente na “Introdução da critica da filosofia do direito de Hegel” evolui da crítica à religião à analise política da emancipação como ultrapassagem da auto-alienação através da revolução social. (FREDERICO, 1995) Esta pretende ser radical, e ser radical “... é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem.” (MARX, sd, 117) Assim sendo, a recorrência à revolução radical consiste em atacar o problema pela raiz, eliminando-o para a instituição de uma nova sociedade: a comunista. Atribui a classe proletária o papel revolucionário e a filosofia de Hegel a energia para iluminar a práxis que

 

... é sinônimo de ação política revolucionária, mas de ação movida por uma idéia que lhe é exterior e que tudo conduz. É do próprio movimento do pensamento que brota a reivindicação da emancipação humana como um ‘imperativo categórico’, para retomarmos a expressão idealista empregada por Marx. (FREDERICO, 1995, p. 108)

 

O produto dessa evolução é a verdadeira democracia  que aparece em “... substituição à antiga sociedade burguesa, com suas classes e seus antagonismos, surgirá uma associação livre na qual o livre desenvolvimento de cada um será a condição do livre desenvolvimento de todos.’” (MARX, apud VÁZQUEZ, 2001, p.69)

Marx faz a crítica à democracia burguesa (sem negar seus elementos progressistas)[7] indicando sua incapacidade de abranger o bem geral, além de sua classe. O limite da democracia está no limite da classe, por conseguinte, um meio e não um fim, um meio ladeado por fundamentos formais e liberais que são inseparáveis da instituição da propriedade privada. A derrubada do poder burguês e a construção da democracia do proletariado significam a “vitória da democracia”.

Não considera as conquistas da democracia burguesa como efetivamente democráticas, mas as supera considerando a importância da democracia representativa (própria da sociedade burguesa), dando-lhe outra forma e articulando-a a democracia direta. Assim não haverá a concentração do poder nas mãos de uma minoria, mas sim concorrerá a uma fase superior de uma nova sociedade, através da autogestão da classe trabalhadora (VÁZQUEZ, 2001)

Para Marx a democracia está intrinsecamente vinculada a liberdade e para tanto, enquanto existir o Estado Burguês, a parte ou acima da Sociedade Civil, a liberdade não poderá existir. Sua proposta é que o Estado seja um órgão complementar e subordinado à sociedade civil, e no desenvolvimento desta relação democrática – o Estado será extinto e serão criadas instituições democráticas no seio da Sociedade Civil: “A democracia é, ao mesmo tempo, causa e efeito desse processo; em conseqüência, a democracia é parte indissolúvel e vital dessa nova sociedade. Tal é o ensinamento que oferece a análise marxiana da Comuna de Paris” (VÁZQUEZ, 2001, p. 75)

A Comuna (1871) conhecida como a primeira manifestação verdadeiramente revolucionária da luta de classes na história moderna, representou a emancipação da classe operária caracterizada como uma emancipação coletiva, superando o trabalho alienado pela socialização de atividades e de poderes públicos, enfrentando a dominação da classe burguesa e do Estado, negando a propriedade privada e do capital. A classe operária teve o papel primordial de governar o país, o proletário teve o poder nas mãos, porém tal experiência não logrou êxito por muito tempo, o governo francês fez a contra revolução tomando poder novamente.

No argumento marxiano para a instituição de uma nova sociedade é necessária a emancipação da classe oprimida (que é a “... condição vital de toda sociedade fundada sobre o antagonismo de classes.” – MARX in FERNANDES, 2001 -). E para esta se libertar  “... é  preciso que as forças já adquiridas e as relações sociais existentes não possam mais existir umas do lado das outras.” (idem, ibidem) Nenhum organismo, ou outra classe a libertará da condição de opressão senão a própria classe oprimida. “A emancipação da classe operária deve ser tarefa dos próprios operários; ... a luta pela emancipação da classe operária não é uma luta por privilégios e monopólios de classe, mas pelo estabelecimento de direitos e deveres iguais e pela abolição de todo domínio de classe” (MARX, apud IANNI, 1985, p.82)

Löwy (2000) debatendo a importância de um “marxismo crítico” na atualidade,  também remete sua análise a essa posição de Marx dizendo que “... não há outra forma de emancipação autêntica que não a auto-emancipação (p.60) 

Concordamos com Löwy na afirmativa de que existe “... uma ética emancipadora universal que atravessa a obra de Marx e Engels...” (p.63) Em especial  A Questão Judaica  e a Introdução à critica da Filosofia do Direito de Hegel – nas quais o jovem Marx dedica maior atenção à temática ou em outras obras trazidas nesta sistematização,como A Guerra Civil na França e a Ideologia Alemã.

 Passando de uma crítica à religião, a alienação, ao direito, ao Estado moderno até chegar (através da aproximação com a economia política) na crítica do modo de produção capitalista e a centralidade do trabalho – meio de alienação e desalienação humana – e nestes situar o proletariado como classe revolucionária responsável pela implantação do comunismo e com este a efetivação de emancipação humana.

Também dessa sistematização podemos concluir que para Marx a emancipação poderá ocorrer num processo de auto – conscientização da classe proletária (no âmbito das relações sociais de produção através da absorção da filosofia enquanto instrumento de conhecimento revolucionário), a qual poderá lutar pela instauração de uma nova sociedade, implicando na extinção do capitalismo. A emancipação da classe operária é tarefa dos próprios operários, e se dará através da emancipação do trabalho alienado. Marx distingue a emancipação política da emancipação humana, questionando os direitos humanos burgueses, e que, através deles não se chegará a verdadeira emancipação humana, pois são limitados a uma classe da sociedade burguesa.  “Esta classe emancipa toda a sociedade, mas apenas sob a hipótese de que toda a sociedade se encontre na situação desta classe, isto é, que possua, por exemplo, dinheiro e cultura ou que possa adquiri-los.” (MARX, s/d, p.121)

Sobre a relação contraditória entre os direitos humanos burgueses e o seu alcance, Castel (1998) , esclarece que antes de 1848 não havia debate público expressivo sobre a indigência e sobre as condições de trabalho ocasionadas principalmente pela Revolução Industrial e seu esquema de acumulação capitalista. Somente na metade do século XIX – por força das manifestações operárias –é que existe uma tomada de consciência sobre a miséria reinante na classe trabalhadora versus o desenvolvimento da riqueza e do progresso. Deste modo, configura-se a Questão Social

 

...suscitada pela tomada de consciência das condições de existência das populações que são, ao mesmo tempo, os agentes e as vítimas da revolução industrial. É a questão do pauperismo (...) Difunde-se então a convicção de que aí de fato ‘uma ameaça à ordem política e moral’ (...) Entenda-se isso como fato de que a sociedade liberal corre risco de explodir devido às novas tensões sociais que são a conseqüência de uma industrialização selvagem. (CASTEL, 1998, p. 30)

 

Diz o autor que a sociedade da primeira metade do século XIX não ficou indiferente à Questão, mas sim, lança mão de “estratégias sociais e de um fazer social”, no sentido de estabelecer uma relação social tutelada e protegida, criando redes de interdependência entre superiores e inferiores, “...entre o povo miúdo e seus guias preocupados com o bem comum” (p.282). Transcendendo essa “relação de ajuda” entre as classes, tem-se um denominador comum que pretende “perpetuar a menoridade social dos dominados” (p. 282), ou seja, impedir a emancipação social através da determinação moral e individualista da pobreza e da desigualdade.

Aquela liberdade preconizada pelos movimentos burgueses acaba incidindo de forma negativa e parcial no fenômeno da pobreza, que atravessava o progresso e o desenvolvimento, pois “todo cidadão era livre”, portanto, era de sua responsabilidade a sua condição econômica e social. Desta forma há uma moral individualista que molda a leitura do social, e não aquela individualidade apregoada pelo movimento revolucionário do período. O social ganha espaço no palco das discussões do século XIX devido às proporções da Questão Social, porém com um viés impróprio e contraditório.

Sabemos também que há uma positividade nestes movimentos, pois trazem a tona, ao debate público, questionamentos sobre as condições de trabalho e renda. Após longo processo de luta neste sentido, decorrem as conquistas de direitos à classe trabalhadora. Todavia, negativamente, temos a direção social e o rumo que estas tomaram – nas mãos da classe burguesa, do liberalismo, do capitalismo – impedindo o gozo dos direitos pela classe subalterna e a saída de sua menoridade social, nas palavras de Castel.

Portadoras de um múltiplo caráter, as conquistas sociais e políticas advindas dos movimentos, revoluções e correntes filosóficas dos séculos onde a sociedade moderna emergiu e se desenvolveu, não podem ser desprezadas, pois forneceram elementos e  questionamentos políticos para os países que viviam sistemas de governo autoritários, subsidiaram ações políticas mais diversas e também fizeram aparecer os reclames pelos direitos humano-sociais, pelo trabalho digno, cidadania e pela justiça social.

A partir dos movimentos e dos reclames sociais, identificamos a demanda histórica que clama pela emancipação social e política, devido às necessidades concretas dos movimentos revolucionários empreendidos na sociedade moderna, mas que ainda se mostram contemporâneos.

A exemplo, podemos citar Hobsbawm, em seu livro  “Ecos de Marselhesa: dois séculos revêem  a Revolução Francesa”,  analisa  o seu significado em seu bicentenário, destacando-a como um paradigma das revoluções sociais futuras, com os seus impactos liberais,  como a fundação do século XIX,  entre outros, afirmando que

 

... não se pode deixar de repetir sempre – tanto o liberalismo quanto a revolução social, quanto a burguesia quanto, potencialmente, o proletariado, tanto a democracia (em qualquer de suas versões) quanto a ditadura,  encontram seus ancestrais na extraordinária década que começou com a convocação dos Estados-Gerais, a Tomada da Bastilha e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.” (HOBSBAWM,  1996: 81)

 

  Esse período...

 

... constitui a maior transformação da história humana desde os tempos remotos quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado. Essa revolução transformou, e continua a transformar, o mundo inteiro. Mas ao considerá-la devemos distinguir cuidadosamente entre os seus resultados de longo alcance, que não podem ser limitados a qualquer estrutura social, organização política ou distribuição de poder de recursos internacionais, e sua fase inicial e decisiva, que estava intimamente ligada a uma situação internacional e social específica. A grande revolução de 1789 – 1848 foi o triunfo não da ‘indústria’ como tal, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da sociedade ‘burguesa’ liberal; não da ‘economia moderna’ ou do ‘Estado moderno’, mas das economias e Estados em uma determinada região geográfica do mundo (parte da Europa e alguns trechos da América do Norte)... (HOBSBAWM, 2001,p.17) (grifo nosso)

 

Essas características moldam também o século XX e agora o XXI, limitando a emancipação a uma parcela da população localizada globalmente e mesmo assim não a totalidade desta população. Esse momento histórico mostra-se multifacetário, ou seja, de um lado aboliu o Antigo Regime (Absolutismo/Feudalismo) instituindo direitos, liberdade e igualdade àqueles de sua classe, e por outro, excluiu aqueles que não tinham propriedades nem capital, que apenas contavam com sua força de trabalho. Como conseqüência, a igualdade e a liberdade não se aplicam a esta parcela da população.

 A emancipação difundida pelos ideólogos burgueses preconizava o homem em geral, mas ficou limitada ao sujeito histórico que encabeçou o movimento iluminista, que lutava pela “liberdade” de comércio, de expressão, ou seja, o burguês. Portanto, o Iluminismo reflete e caracteriza-se também como uma filosofia burguesa, se expressando num movimento contraditório, porém, de outro lado, de extrema importância para a remodelagem da sociedade moderna.

Segundo Rouanet (1987 e 1993) o Iluminismo é uma tendência intelectual, não limitada a qualquer época específica, portanto tem caráter “trans-epocal” que cruza tranversalmente a história e que existe ainda hoje. O autor é um defensor acirrado do Iluminismo, mas também, discute as lacunas e dificuldades da filosofia iluminista, não abrindo mão da sua vitalidade, aplicabilidade e vigência na sociedade contemporânea, caracterizada pelo autor, como moderna.

O Iluminismo se mantém vivo pela sua constante que é o trabalho de negação e crítica permanente da realidade, estendendo-a inclusive como auto-avaliação de sua programática e de suas realizações históricas. Congrega diferentes correntes de pensamento, as quais incorporam de diversas formas as categorias iluministas,  modelando-as conforme suas teleologias. A exemplo, Rouanet (1987) lembra que a sociedade liberal moderna é fruto do Iluminismo, transformando a liberdade e autonomia humana (seus maiores objetivos) em meras fachadas formais. Lembra que o Iluminismo também é referência para os marxistas que questionam o seu desvirtuamento, lutando por “... uma emancipação universal do gênero humano, indo além da emancipação parcial alcançada pela Revolução Francesa.” (1987, p. 201)  Inclusive utilizam-se da análise critica, que é peculiar ao Iluminismo, para repensá-lo e manter acessa a chama iluminista na sociedade contemporânea, através do fomento a ideais racionais e de uma sociedade  igualitária.

As críticas ao Iluminismo e a Modernidade referem-se, então, ao não alcance da universalidade dos direitos humanos, que foi cooptada por uma determinada classe social e por uma determinada tendência ideo-política (burguesia e liberalismo), conforme vimos anteriormente. Deste modo, a “... batalha para estender a todos o uso dos direitos humanos ainda não está ganha. É uma batalha Iluminista, que não pode ser travada sem uma critica do Iluminismo institucionalizado...” (ROUANET, 1987, p.205) pela burguesia e pelo liberalismo. Este Iluminismo, segundo o autor, desqualifica a autonomia e a liberdade humana retraindo a sua “maioridade”.

Sabemos que as críticas à Modernidade e ao Iluminismo  (devido ao otimismo utópico à razão e à ciência, vistas como uma fé ingênua, que resultaram em novas formas de dominação e de particularismos) desembocaram em movimentos contra a Modernidade, sem mesmo, termos a experimentado plenamente. Enquanto projeto teleológico à humanidade, através de seus valores (autonomia e  individualidade humanas, universalidade de direitos) é apropriado à constituição de uma sociedade mais igualitária. Porém, diante da fragilidade de sua concretização e desvirtuamento de seus valores,  em favor de uma classe, podemos então, concluir que vivemos uma pseudo Modernidade e um pseudo Iluminismo.

Para sintetizar as discussões aqui trazidas sobre Modernidade e emancipação, podemos afirmar que convivemos com esse quadro desigual e contraditório desde a emergência do capitalismo, o que vem se acirrando com sua fase tardia[8], porém, lembremos que neste mesmo espaço, conquistas democráticas foram sendo edificadas; e que, através das desigualdades e das contradições que as lutas sociais foram sendo historicamente construídas, como conquistas dos homens, e não acima deles. A história humana moderna nos mostra as várias expressões das múltiplas faces de uma sociedade complexa, que é palco de muitas forças em presença, constituindo um movimento dialético de negação, superação e emergência de novos conflitos.

 

A modernidade se afirma e reafirma por meio da negação. A modernidade pode manter sua identidade somente se várias coisas mudarem constantemente e se pelo menos algumas coisas forem continuamente substituídas por outras. A Modernidade prospera sobre conflitos internos. Quando um conflito, chamado de contradição pelos filósofos, é negado (ou superado) novos conflitos ocupam imediatamente seu lugar, e esse processo de negação/superação continua infinitamente. (HELLER e FEHÉR, 1995,p. 53)

 

Nesse movimento aberto e contraditório, acreditamos que existe, paralelamente a  tendência hegemônica moderna, uma razão emancipatória, não manifestada em sua totalidade, mas que também move a história da humanidade e compõe todos os marcos históricos trazidos nesta sistematização (Iluminismo, Revolução Francesa, movimentos revolucionários, Modernidade). Existem forças em luta tendendo para lados opostos e configurando dimensões que representam visões de mundo diferenciadas. Sabemos que ideológica e economicamente prevaleceu uma visão que não prima pela emancipação social, mas nem por isso o debate e a perspectiva crítica estiveram ausentes, pelo contrário, desempenharam um papel preponderante - através das rupturas com o instituído - na construção do pensamento moderno.

Neste estudo visualizamos como a emancipação social foi sendo construída e/ou desconstruída pela história, atendendo às demandas que se fizeram hegemônicas, configurando expressões da emancipação humana. Hegemonicamente tendendo para valores e formatos burgueses modernos, mas também, se movimentando pelos valores crítico-modernos, fazendo,  também, avançar processos emancipatórios.

Visualizando a essa movimentação histórica,  lembramos as palavras de Voltaire, 1694 – 1778: “Temos de pensar que nem tudo é compacto na natureza, há vazios, lacunas, e que nem todo movimento se propaga progressivamente” (in MOTA, 1989, p. 13) Portanto, para ocupar os “vazios” existes e fazer avançar uma perspectiva critico-emancipatória contra-hegemônica, há que se investir em valores crítico-modernos (como  o conhecimento crítico, a autonomia e liberdade humanas, a democracia), aproveitando as lacunas dos movimentos sócio-históricos com a  materialização de ações concretas que correspondam, ético e politicamente, a essa direção nas mais variadas dimensões a que estamos vinculados.

Para podermos materializar práticas emancipatórias e ocupar espaços neste sentido, um dos elementos fundamentais é desmistificar os processos históricos em que a categoria emancipação foi sendo construída na sociedade moderna. Especialmente para o Serviço Social que tem declarado, em seu Código de Ética,  a perspectiva de luta pela materialização de valores emancipatórios.

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* Este artigo representa parte da tese de doutorado intitulada rupturas Moleculares Emancipatórias: a potencialidade da prática do Serviço Social, pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

[1] “O desenvolvimento do capitalismo se classifica numa série de estágios, caracterizados por níveis diversos de maturidade e cada qual reconhecível por traços bastante distintos.” (DOBB, 1987, p.26) Em especial no século XVIII: Capitalismo Industrial / Concorrencial e no século XIX Capitalismo Imperialista ou Monopolista.

[2] “Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho assalariado. Por proletários compreende-se a classe dos trabalhadores assalariados modernos, que, privados dos meios de produção próprios, se vêem obrigados a vender sua força de trabalho para poderem existir”. (Nota de Engels edição inglesa de 1888) (in FERNANDES, 2001, p. 365)

[3]  Fontes Hobsbawm ( 2001) Martinelli (1989), Mota (1989), Castel (1998)

[4] São representantes do liberalismo clássico John Locke (1690) – Hobbes (Leviatã -1651)

[5] “...Bruno Bauer (1809 – 1882), teólogo que foi aluno de Hegel e que, com base nos ensinamentos de seu mestre, exerceu aguda crítica às interpretações vigentes da Bíblia, tentando ver historicamente o fenômeno do cristianismo” (FERNANDES, 2001, p. 194)

[6] Havia um embate entre o Estado prussiano (que tinha no cristianismo sua base religiosa) e os judeus que queriam emancipar-se politicamente do mesmo tendo acesso e igualdade de direitos perante o Estado como os demais cidadãos prussianos.

[7] “A democracia, pelo contrário, é para Marx um fim em si. A partir dessa ótica, critica a democracia burguesa liberal, sem que isso signifique negar seus elementos progressistas e, à frente deles, o princípio da representatividade, uma vez liberado de sua limitação burguesa. A esse respeito, aborda em mais de uma ocasião o sufrágio universal, vendo-o dentro do processo de luta pela abolição do Estado e da sociedade civil.” (VAZQUEZ,2001, p.70)

[8] O termo capitalismo tardio segundo NETTO (1996) é  encontrado em Mandel como característica do capitalismo monopolista contemporâneo “... que quer enfrentar a nova agudização das suas contradições imanentes recorrendo a um outro regime de acumulação, ‘flexível’, que implica, necessariamente, um correspondente modo de regulação.” (p. 90) Também encontramos o termo em JAMESON (1997) quando analisa o pós-modernismo como tendência cultural da fase mais profunda do capitalismo, o capitalismo multinacional com suas marcas: nova divisão internacional do trabalho, nova dinâmica de transações bancárias internacionais e das bolsas de valores, computadores e automação, a fuga da produção para áreas desenvolvidas do Terceiro Mundo, além das conseqüências sociais e do desemprego estrutural.

 

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