Matemática Essencial

Ensino Fundamental, Médio e Superior no Brasil

Superior >> Cálculo Diferencial e Integral
Números reais (I)
Olívio A. Weber
Ulysses Sodré

Material desta página

1 Importância dos números reais

Em geral, os cursos de Cálculo começam por um breve estudo dos números reais e um curso de Análise Matemática tem início por um estudo bastante completo e rigoroso destes números. A razão é simples. No Cálculo e na Análise, estuda-se o comportamento de funções e o comportamento de uma função depende dos três elementos importantes que a compõem:

domínio, contradomínio e lei de definição

Assim, é importante ter clareza sobre as propriedades dos números reais, para compreender as funções de uma variável real. Esta compreensão dos números reais não é tão simples como parece. O problema começa pelo método de introdução dos reais: o método construtivo ou o método axiomático.

O interessante é que na ponta inicial do método construtivo também está o método axiomático. Na realidade, o método axiomático fundamenta toda teoria matemática. Por isso, vamos falar um pouco dele. Compreender como se faz matemática é algo vital para um professor de Matemática. Ninguém pode ensinar algo que não sabe, que não compreende.

2 A construção dos números reais

Em uma teoria axiomática temos:

  1. Termos indefinidos
  2. Relações indefinidas
  3. Axiomas relacionando termos indefinidos e relações indefinidas
  4. Definições
  5. Teoremas baseados em axiomas e definições

Os termos e as relações indefinidas também são denominados conceitos primitivos. Axiomas são propriedades aceitas como verdadeiras, sem questionamento e sem demonstração.

Exemplo: Um exemplo simples de teoria axiomática é a teoria dos conjuntos.

  1. Conjunto e elemento de um conjunto são termos indefinidos.
  2. Um elemento pertence a um conjunto é uma relação não definida.

A teoria dos conjuntos possui dois axiomas fundamentais (que não são os únicos):

Axioma da Extensão: Dois conjuntos \(A\) e \(B\) são iguais se, e somente se, cada elemento de \(A\) pertence a \(B\) e cada elemento de \(B\) pertence a \(A\).

Axioma da Especificação: Se \(P(x)\) é uma proposição qualquer e \(A\) é um conjunto qualquer, então existe um único conjunto \(B\) tal que:

\[B = \{a: a \text{ pertence a } A, P(a) \text{ é verdadeira} \}\]

Nota: Usamos a forma simbólica simplificada \(x\in Z\) para substituir o texto: o elemento \(x\) pertence ao conjunto \(Z\).

A partir da informação desta nota, a expressão matemática anterior pode ser escrita na forma mais simples:

\[B = \{a: a\in A, P(a) \text{ é verdadeira} \}\]

Com os elementos disponíveis, podemos definir novos objetos, como por exemplo, a reunião de dois conjuntos:

A reunião dos conjuntos \(A\) e \(B\) é o conjunto de todos os elementos que pertencem ao conjunto \(A\) ou ao conjunto \(B\), o que em símbolos matemáticos, pode ser escrito:

\[A \cup B = \{x: x\in A \text{ ou } x\in B \}\]

Com a definição anterior e o axioma da extensão podemos enunciar a propriedade associativa para a reunião:

Teorema: Se \(A\), \(B\) e \(C\) são conjuntos quaisquer, então:

\[(A \cup B)\cup C = A\cup(B\cup C)\]

Uma das consequências do axioma da especificação é a existência do conjunto vazio, geralmente mal compreendido.

Por exemplo, consideremos no conjunto dos números naturais a seguinte proposição:

\[P(x):\quad x+4=1\]

Se o nosso universo de trabalho é o conjunto dos números naturais, o conjunto \(B\) acima definido é vazio, denotado por:

\[B = \{x\in N: P(x) \text{ é verdadeiro} \} = \{ \} = \emptyset\]

pois não existe um número natural que somado ao número 4, seja igual a 1.

Nota: Historicamente, no século XIX ocorreram grandes controvérsias na Matemática e pela falta de uma fundamentação precisa de conceitos e teorias, como a:

  1. Teoria dos conjuntos,
  2. Teoria das funções,
  3. Teoria dos números reais,
  4. Teoria dos números complexos,

Foi na construção destes tipos de teorias que ficou consolidado o método axiomático.

Esperamos ter elucidado o que é o método axiomático.

A partir daí, podemos voltar ao estudo dos números reais.

O conjunto \(R\) dos números reais é um conjunto não vazio, caracterizado por alguns axiomas. Não vamos fazer aqui um estudo completo de todos, mas daqueles que decorrem propriedades importantes e que são usadas no cotidiano no âmbito do Ensino Fundamental e Médio.

O primeiro conjunto de axiomas que caracterizam \(R\), recebe o nome de axiomas de corpo. Isto significa que \(R\) é um conjunto não vazio onde se pode construir duas operações fechadas, denominadas: adição \(+:R{\times}R \to R\) definida por \((x,y)\to x+y\) e multiplicação \(*: R{\times}R \to R\) definida por \((x,y)\to x*y\) que satisfazem aos axiomas seguintes.

3 Axiomas da Adição e da Multiplicação

A1. Associatividade: Quaisquer que sejam \(x\in R\) e \(y\in R\), tem-se:

\[(x+y)+z = x+(y+z)\]

A2. Comutatividade: Quaisquer que sejam \(x\in R\) e \(y\in R\), tem-se:

\[x+y = y+x\]

A3. Elemento neutro: Existe \(0\in R\) (denominado zero), tal que para todo \(x\in R\):

\[x+0 = x\]

A4. Simétrico: Todo elemento \(x\in R\) possui um simétrico \(-x\in R\) (ou oposto), tal que:

\[x+(-x)=0\]

M1. Associatividade: Quaisquer que sejam \(x,y,z\in R\), tem-se:

\[(x*y)*z = x*(y*z)\]

M2. Comutatividade: Quaisquer que sejam \(x,y\in R\), tem-se:

\[x*y = y*x\]

M3. Elemento neutro: Existe \(1\in R\) (denominado um), tal que para todo \(x\in R\), vale:

\[1*x = x\]

M4. Inverso multiplicativo: Todo \(x\neq 0\) em \(R\), possui um inverso \(x^{-1}\in R\) tal que

\[x \cdot x^{-1} = 1\]

4 Axioma da Distributividade

D. Quaisquer que sejam \(x,y,z\in R\), tem-se:

\[x \cdot (y+z)=x \cdot y+x \cdot z\]

Os axiomas A4 e M4 permitem definir, respectivamente, as operações de subtração \(+ :R{\times}R\to R\) definida por \((x,y)\to x+(-y)\) e divisão de números reais: \(\div:R{\times}R*\to R\) definida por \((x,y)\to x\div y=x \cdot y^{-1}\) onde \(R*=R-\{0\}\).

Quando adotamos o método axiomático, estas propriedades não são demonstradas mas são admitidas como verdadeiras pois são axiomas.

Do ponto de vista axiomático não sabemos o que é um número real, mas sabemos quais propriedades o conjunto dos números reais satisfaz.

Uma consequência muito importante dos axiomas dos números reais, é conhecida como a regra dos sinais.

5 Regra dos Sinais

Um desafio para o professor do curso Fundamental é ensinar e tentar justificar a intrigante regra dos sinais. Para algumas regras existem justificativas que chamamos de naturais, mas justificar porque

\[(-1)\cdot(-1) = (+1)\]

é complicado e o pior ainda: algumas justificativas bastante usadas são logicamente falsas, como aquela velha história de que: O inimigo do meu inimigo é meu amigo.

No livro Meu Professor de Matemática e outras histórias, Coleção do Professor de Matemática, SBM, 1991, Rio de Janeiro, o professor Elon Lages Lima dedica um capítulo à questão quando cita e comenta algumas sugestões encaminhadas à excelente Revista do Professor de Matemática, para explicar e justificar a regra acima citada.

Na opinião do Prof. Elon, a melhor sugestão foi a que mais se aproximou da demonstração algébrica da regra. A regra dos sinais é uma consequência dos axiomas de corpo, e em especial do axioma da distributividade.

Vamos conhecer a demonstração através de quatro passos:

  1. O simétrico de \(-x\) é \(x\), isto é, \(-(-x)=x\), para todo \(x\in R\). Assim:
    \[-x + x = x + (-x) = 0\]
    Somando \(-(-x)\) a ambos os membros da igualdade e usando o axioma A1, obtemos em sequência:
    \[\begin{align*} [-(-x) + (-x)] + x &= -(-x) + 0 \\ 0 + x &= -(-x) \\ x &= -(-x) \end{align*}\]
  2. \(x \cdot 0=0\), para todo \(x\in R\). Com efeito,
    \[\begin{align*} x + x \cdot 0 &= x \cdot 1+x \cdot 0 \\ &= x \cdot (1+0) \\ &= x \cdot 1 \\ &= x \end{align*}\]
    Assim, \(x+x \cdot 0=x\) e somando \(-x\) a ambos os membros da igualdade, obtemos:
    \[(-x) + x + x \cdot 0 = (-x) + x = 0\]
    de onde segue que
    \[0+x \cdot 0 = 0\]
    logo
    \[x \cdot 0 = 0\]
  3. \((-1) \cdot x = -x\), para todo \(x\in R\). Realmente, obtemos em sequência
    \[\begin{align*} x + (-1) \cdot x &= 1 \cdot x + (-1) \cdot x \\ &= [1+(-1)] \cdot x \\ &= 0 \cdot x \\ &= 0 \end{align*}\]
    Logo, \((-1)x\) é o simétrico de \(x\), ou seja:
    \[(-1) \cdot x = -x\]
    Em particular, se \(x=-1\), temos que
    \[(-1) \cdot (-1) = -(-1) = 1\]
    onde a última igualdade segue do primeiro passo.
  4. Quaisquer que sejam \(x\in R\) e \(y\in R\), tem-se:
    \[(-x) \cdot y = -(x \cdot y)\]
    logo
    \[(-x) \cdot (-y) = x \cdot y\]
    De fato:
    \[\begin{align*} (-x) \cdot y &= [(-1) \cdot x] \cdot y \\ &= (-1) \cdot (x \cdot y) \\ &= -(x \cdot y) \\ (-x) \cdot (-y) &= (-1) \cdot x \cdot (-1) \cdot y \\ &= (-1) \cdot (-1) \cdot x \cdot y \\ &= 1 \cdot x \cdot y \\ &= x \cdot y \end{align*}\]

Mostramos estes detalhes para deixar claro que a regra dos sinais é uma consequência dos axiomas de corpo e que algumas propriedades, por mais evidentes que possam parecer como as expressas nos passos 1 e 2, são passíveis de demonstração.

Na Matemática (e também na vida) todo o cuidado é pouco com as chamadas coisas evidentes. Mas, o chamado rigor matemático, não pode ser aplicado em qualquer nível e seria um absurdo tentar explicar a regra dos sinais para alunos do ensino Fundamental da forma acima exposta.

Vejamos agora a sugestão do Prof. Fred Gusmão dos Santos, de Mogi das Cruzes, S.P, comentada pelo Prof. Elon no mesmo livro acima citado e que tomamos a liberdade de reproduzir.

Como:

\[5 \cdot (2-2) = 0\]

pela lei distributiva vem que:

\[5 \cdot 2 + 5 \cdot (-2) = 0\]

ou seja

\[10 + 5 \cdot (-2) = 0\]

logo

\[5 \cdot (-2) = -10\]

Em seguida, como:

\[-5(2-2) = 0\]

novamente temos que:

\[-5 \cdot 2 + (-5)(-2) = 0\]

ou seja

\[-10 + (-5)(-2) = 0\]

logo

\[(-5) \cdot (-2) = 10\]

Alguém poderia questionar, por que tanto esforço para fazer a demonstração algébrica, se um exemplo numérico elucida tudo? Que resposta você daria?

6 O Corpo ordenado dos números reais

Um segundo conjunto de axiomas caracteriza o conjunto \(R\) dos números reais como um conjunto ordenado. Este fato tem consequências importantes com as quais o professor do Fundamental se depara a todo momento. O fato de \(R\) ser um corpo ordenado dá sentido às desigualdades, também conhecidas como inequações.

Dizer que \(R\) é um corpo ordenado é equivalente a garantir que, existe um conjunto \(P\) (da palavra positivo) contido no conjunto \(R\), denominado conjunto de elementos positivos de \(R\), com as seguintes condições (axiomas) satisfeitas:

  1. P1: A soma e o produto de números positivos são positivos.
  2. P2: Dado \(x\in P\), ocorre somente uma das três alternativas: \(x=0\) ou \(x\in P\) ou \(-x \in P\).

Se indicarmos com \(-P=\{-x: x\in P\}\) podemos escrever:

\[R = P \cup (-P) \cup \{0\}\]

Os elementos do conjunto \(-P\) são denominados números negativos.

No cotidiano, convivemos de modo bastante natural com muitos números positivos como os números naturais mas o interessante é que somente uma caracterização formal dos mesmos, através dos axiomas introduzidos anteriormente, é que permite extrair as suas propriedades.

Uma propriedade bem conhecida dos números reais e de muitas consequências é a que garante que o quadrado de todo número real não nulo é positivo:

Propriedade: Para todo \(x\) real, \(x \neq 0\), tem-se que \(x^2=x \cdot x\) está em \(P\).

Demonstração: Dado \(x\neq 0\) real, temos que \(x\in P\) ou \(-x \in P\).

  1. Se \(x\in P\), pelo axioma P1: \(x \cdot x\in P\).
  2. Se \(-x\in P\), então: \((-x) \cdot (-x)=x \cdot x\in P\) e pela regra dos sinais, temos o resultado desejado.

7 Números Naturais

Pela propriedade acima e usando o axioma P1, podemos construir o conjunto \(N\) dos números naturais como um subconjunto \(P\) dos números reais positivos, com algumas características indutivas. Vejamos:

\begin{align} 1\;\cdot\;1 = 1 \in P \\ 1 + 1 = 2 \in P \\ 2 + 1 = 3 \in P \\ \cdots+\cdots=\cdots \\ (n)+1 = (n+1) \in P \end{align}

Assim

\[N=\{1,2,3,4,\cdots,n,\cdots\}\]

É claro que \(N\) está contido em \(P\) e que \(P\) está contido em \(R\).

Nota sobre o zero: O número \(0\) não foi incluído no conjunto dos números naturais, pois este número foi criado artificialmente para dar significado ao conceito de nulidade (falta de um elemento) quando da criação do sistema posicional pelos hindús e este conjunto dos números naturais recebe este nome exatamente porque está associado às ideias de contagem de coisas da natureza como \(1,2,3,\cdots\) Para que o interessado possa esclarecer a maioria dos detalhes concernentes ao número zero \(0\) e conhecer uma enorme gama de detalhes sobre os algarismos e números, sugiro a leitura do livro de Georges Ifrah: História Universal dos Algarismos, Tomos I e II (A inteligência dos homens contada pelos Números e pelo Cálculo!), 1997, Livraria Nova Fronteira.

O conjunto dos números reais é indutivo, isto é:

  1. Ind1: \(1\in R\).
  2. Ind2: Para todo \(x\in R\), \(x+1\in R\).

que é uma consequência óbvia do que apresentamos até aqui.

Algo não óbvio e que não será feito aqui, é que o conjunto \(N\) dos números naturais, em um certo sentido, é o conjunto com menor número de elementos que é subconjunto indutivo de R que possui a propriedade muito importante conhecida como o Princípio da Indução Finita.

8 Princípio da Indução Finita (PIF)

Se \(X\) é um subconjunto do conjunto dos números naturais \(N\), tal que:

  1. \(1\in X\).
  2. Se \(n\in X\), então \((n+1)\in X\), para todo \(n > 1\).

Então, \(X\) coincide com o próprio \(N\).

Ao introduzir o conjunto dos números reais pelo método construtivo, é usual iniciar pela construção axiomática dos números naturais. Neste caso, o princípio da indução finita é conhecido como o Terceiro axioma de Peano. O que importa é que ele é válido e de grande utilidade.

Aplicação do PIF: Provamos que a soma dos n primeiros números naturais pode ser escrita como a metade do produto de \(n\) por \(n+1\), isto é, para todo \(n\in N\), vale a igualdade:

\[P(n):\quad (1+2+3+\cdots+n) = \frac{n(n+1)}{2}\]

Demonstração: Seja \(X\) o subconjunto dos números naturais tal que \(P(n)\) seja válida. Realmente, \(1\in X\), pois para \(n=1\), a igualdade P(1) se reduz a:

\[1 = \frac{1 \cdot (1+1)}{2} = \frac{1 \cdot 2}{2} = \frac{2}{2}=1\]

Suponhamos que \(n\in X\) (Hipótese de Indução), isto é, que é válida a propriedade \(P(n)\):

\[1+2+3+\cdots+n = \frac{n(n+1)}{2}\]

Mostramos que também vale a propriedade \(P(n+1)\), o que equivalente a mostrar que \((n+1)\in X\).

Desenvolvendo o membro da esquerda de \(P(n+1)\), obtemos:

\begin{align} 1+2+3+\cdots+n+n+1 &= (1+2+3+\cdots+n)+(n+1) \\ &= n(n+1)/2 + (n+1) \\ &= (n+1)(n/2+1) \\ &= \frac{(n+1)(n+2)}{2} \end{align}

Mostramos assim que:

\[(1+2+3+\cdots+n)+(n+1) = \frac{(n+1)(n+2)}{2}\]

e esta igualdade corresponde exatamente a \(P(n+1)\) e dessa forma \(X\) é o próprio conjunto \(N\), ou seja, \(P(n)\) é válida para todo \(n\in N\).

Exercício: Mostrar que são verdadeiras as seguintes proposições:

  1. \(P(n): 1+3+5+7+\cdots+(2n-1) = n^2\)
  2. \(P(n): 1^2+2^2+3^2+\cdots+n^2 = n(n+1)(2n+1)/6\)
  3. \(P(n): 1^3+2^3+3^3+\cdots+n^3 = n^2(n+1)^2/4\)
  4. \(P(n): 1^4+2^4+\cdots+n^4 = n(n+1)(6n^3+9n^2+n-1)/30\)

9 Números Inteiros

Já vimos que o conjunto \(N\) dos naturais é um subconjunto do conjunto \(P\) dos números reais positivos. Levando em consideração a definição dos números positivos \(P\) e dos números negativos \(-P\), obtemos o conjunto dos números inteiros

\[Z=\{\cdots,-3,-2,-1,0,1,2,3,\cdots\}=(-N)\cup\{0\}\cup N\]

Nota: A letra \(Z\) usada para representar o conjunto dos números inteiros, provém da palavra alemã Zahl que significa número ou algarismo.