O propósito deste trabalho é estudar os números naturais. Este estudo é muito diferente daquele que é feito no âmbito do Ensino Fundamental porque será um tratamento axiomático dos números naturais.
O primeiro matemático a publicar um tratamento axiomático dos Números Naturais foi Giuseppe Peano. Praticamente, repetiremos os passos de Peano.
Numa teoria axiomática pressupomos conhecer o objeto de estudo e conhecer algumas relações que eles possuem as quais serão aceitas sem demonstração.
A partir daí, podemos definir novos objetos e provar novos resultados sobre eles.
Peano considerou como elemento primitivo o conceito de número natural, isto é, considerou como absolutamento claro o que é um número natural e quais são eles.
O pessoal envolvido com Álgebra considera o 0 como um número natural, pois este número funciona como elemento neutro da adição, mas em estudos históricos, fica claro que o 0 não é um número natural, como se pode ver em Georges Ifrah, História Universal dos Algarismos, vol.1 e 2, Livraria Francisco Alves.
O primeiro número natural é 1 e o próprio trabalho de Peano garante este fato. É importante observar que o número 0, em algum momento deve ser construído, para permitir a ampliação das estruturas matemáticas.
Como relação primitiva entre números naturais Peano considerou a noção de sucessor. Para cada número natural n, conhecemos e podemos considerar o número s(n), seu sucessor.
As leis que expressam algumas relações imediatas entre os números naturais são chamadas axiomas. Peano escolheu 5 axiomas para os números naturais, que serão apresentados na próxima seção. A coleção de todos os números naturais será indicada por N.
Os cinco axiomas de Peano são os seguintes:
Faremos agora observações sobre os axiomas de Peano.
Podemos pensar que os números naturais estão escritos numa listagem: o primeiro, o segundo, etc.
O axioma P1 nos garante que 1 é um número natural e o axioma P3 garante que 1 não é sucessor, isto é, não existem números naturais antes de 1.
O axioma P2 garante que todo número natural tem um sucessor. O axioma P3 garante que 2 é sucessor. O que dizer dos demais números naturais: se nN com n 1 então n é ou não é sucessor de algum número natural?
Podemos definir:
2 | = | s(1) |
---|---|---|
3 | = | s(2) |
4 | = | s(3) |
... | = | ... |
O axioma P4 garante números distintos tem sucessores distintos.
O axioma P5 é conhecido como axioma da indução. Entre os cinco axiomas, este é o menos óbvio.
O axioma P5 permite que façamos definições indutivas ou recorrentes e demonstrações por indução que trataremos na sequência.
Observação importante: No livro "História Universal dos Algarismos", o seu autor Georges Ifrah, discorre bastante sobre o fato do número zero não ser um número natural. O pessoal que trabalha com Álgebra, de uma forma bastante comum, inclui o zero como um número natural, para permitir que o elemento neutro da adição faça parte do conjunto N dos números naturais.
Como este é um trabalho de Álgebra, usaremos aqui o conjunto N dos números naturais na forma:
quando se tratar de construções que envolvam conceitos algébricos.
Definir uma sequência recursivamente. Seja x0=2 e xs(k)=xk+3. Como x0=2, então x1=x1+3=2+3=5, x2=x2+3=5+3=8 e assim por diante. A sequência formará pois um conjunto:
A = {2,5,8,11,14,...}
sendo que cada termo é a média aritmética dos dois que o envolvem, razão pela qual é denominada uma sequência aritmética
Definir uma sequência recursivamente. Se x0=2 e xs(k)=2xk, obtemos uma sequência geométrica, que na forma de conjunto, ficará como:
G = {2,4,8,16,...}
Definir potência. Para todo aN *, seja:
a 0=1, a s(k) = ak×a
Se a=5, temos:
50=1, 51=50×5=1×5=5, 5²=51×5=25, ...
Definir a operação de adição em N. Se aN tomemos
a+0=a, a+s(k)=s(a+k)
Como exemplo, vamos calcular 2+3:
2+0 | = | 2 |
---|---|---|
2+1 | = | 2+s(0) = s(2+0) = s(2) = 3 |
2+2 | = | 2+s(1) = s(2+1) = s(3) = 4 |
2+3 | = | 2+s(2) = s(2+2) = s(4) = 5 |
Definir a operação de multiplicação em N. Se aN definamos
a×0=0, a ×s(k)=(a ×k)+a
Como exemplo, vamos calcular 5×3:
5×0 | = | 0 |
---|---|---|
5×1 | = | 5×s(0) = (5×0)+5 = 0+5 = 5 |
5×2 | = | 5×s(1) = (5×1)+5 = 5+5 = 10 |
5×3 | = | 5×s(2) = (5×2)+5 = 10+5 = 15 |
Observação: Às vezes escrevemos ab ao invés de a×b, por questão de simplicidade.
Exercícios:
Escrever os 10 primeiros termos da sequência definida indutivamente por: x0=2 e
xs(k) = xk + |
|
---|
Defina indutivamente cada uma das sequências seguintes:
(2, 4, 6, ...)
(3, 2, 1, ...)
(3, 3/2, 3/4, ...)
(0.50, 0.60, 0.72, ...)
Efetue os cálculos abaixo, usando as definições de adição, multiplicação e potenciação definidas.
5+2
8+2
5×2
8×2
34
4³
As operações de adição e multiplicação definidas na seção anterior possui as seguintes propriedades:
Teorema: Sejam a,b,cN valores arbitrários. Então, valem:
(a+b)+c=a+(b+c)
Existe 0N tal que a+0=0+a=a para todo aN
Existe 1N tal que a×1=1×a=a para todo aN
Para todo aN tem-se que a+1=1+a=s(a)
a×(b+c)=(a×b)+(a×c)
(a×b)×c = a×(b ×c)
a+b=b+a.
a×b=b×a.
Demonstração de 1: Seja S = {cN: (a+b)+c = a+(b+c)}. Com o axioma P5 em mente, vamos verificar se 0S. Se c=0, o primeiro membro desta igualdade é: (a+b)+0=a+b enquanto que o segundo membro é: a+(b+0)=a+b. Visto isto, 0S.
Admitamos agora que kS, ou seja, (a+b)+k=a+(b+k) (*). Será que s(k)S?
Temos que (a+b)+s(k)=s((a+b)+k) pela definição de soma e s((a+b)+k)=s(a+(b+k)) devido a (*). Daí, por definição de soma, s(a+(b+k))=a+s(b+k)=a+(b+s(k)) comprovando que s(k)S.
Pelo axioma da indução, S=N, ou seja (a+b)+c=a+(b+c) é válida para todo cN, independente dos valores de a, bN.
Demonstração de 2: Pelo axioma P1, 0N. Que a+0=a decorre da definição de adição. Resta mostrar que para todo aN segue que 0+a=a. Para isso, seja:
Temos 0S pois 0+0=0 é válido. Admitindo que kS, ou seja, que 0+k=k, podemos escrever:
donde se conclui que s(k)S ,ou seja, S=N
Demonstração de 3: Temos 1=s(0)N. Também a×1=a×s(0)=a×0+a=0+a=a, devido à definição de multiplicação.
Resta mostrar que 1.a=a. Para tal, seja
0S pois 1×0=0. Admitindo que 1×k=k, segue que 1×s(k)=1×k+1=k+1=s(k) donde se conclui que s(k)S e pelo axioma da indução S=N, isto é, 1×x=x para todo xN.
Demonstração de 4: Para começar, a+1=a+s(0)=s(a+0)=s(a). Resta mostrar que 1+a=s(a) para todo aN.
Como antes, seja S={rN : 1+r=s(r)}. É claro que 0S, pois 1+0=1=s(0).
Supondo que kS, temos que 1+k=s(k) e segue que 1+s(k)=s(1+k)=s(s(k)) comprovando que s(k)S.
Demonstração de 5: Se
então 0S, já que o primeiro membro seria a(b+0)=a.b e o segundo membro a.b+a.0=a.b+0=a.b.
Se kS, temos a(b+k)=a.b+a.k e então,
(esta última igualdade decorre da definição do produto a.s(k)=a.k+a). Mas então S=N
Demonstração de 6: Se T = {cN : (a.b).c = a(b.c)} então 0T pois os dois membros seriam iguais a 0.
Admitindo que kT, temos (a.b).k=a.(b.k) e daí,
onde esta última igualdade resulta da aplicação do ítem 5) deste teorema.
Prosseguindo, obtemos
e o resultado é válido.
Demonstração de 7: Se S = {bN : a+b=b+a} então o ítem 2) deste teorema mostra que 0S, já que a+0=0+a=a.
Suponha que kS, isto é, admita que vale (A): a+k = k+a para todo aN. Precisamos mostrar que para todo aN, vale a+s(k)=s(k)+a. Para quais aN isto é verdade?
Seja
Ora, 0T pois 0+s(k)=s(k)+0 é válido por 2). Admita que pT, ou seja, (B): p+s(k)=s(k)+p para todo s(k)N. Agora, s(p)+s(k)=s(s(p)+k)=s(k+s(p)) já que vale (A).
Depois,s(k+s(p))=s(s(k+p)=s(s(p+k), novamente por (A).
Seguindo, s(s(p+k)=s(p+s(k))=s(s(k)+p) devido a (B) e finalmente, s(s(k)+p)=s(k)+s(p), donde concluímos que s(p)T e portanto T=N. Mas então s(k)S e portanto S=N e o resultado é válido.
Demonstração de 8: Deixamos como exercício. Você deve seguir passos análogos aos utilizados em (7), bem como provar que 0×a=0 para todo aN.
Vamos tratar agora do Princípio da Indução Finita (PIF) que tem muitas aplicações em toda a Matemática.
Uma proposição P(n), dependente de n, é verdadeira se forem verdadeiras as proposições P(0), P(1), ....
Exemplo: Seja P(n): 2 n>n verdadeiro para todo nN.
Trocando n=0 obtemos 20>0 que é verdade; trocando n=1, obtemos 21>1 que tambem é verdade. Escolha um valor qualquer k para n e verifique que P(k) será verdadeira. Será que P(n) é verdadeira para todo nN?
Teorema (PIF): Se P(n) é uma proposição dependente de nN que verifica as condições seguintes:
então P(n) é verdadeiro para todo nN.
Demonstração: Seja S = { rN: P(r) é verdadeiro }. A condição (i) do enunciado garante que 0N.
Suponha que kS. A condição (ii) leva a concluir que s(k)S e o Axioma da Indução garante que S=N, isto é, P(n) é verdadeiro para todo número natural n.
Observação: Às vezes nossas proposições P(n) só valem a partir de um determinado valor k0, assim o teorema acima pode ser modificado para a seguinte forma:
Teorema: Se P(n) é uma proposição dependente de nN que verifica às condições seguintes:
então P(n) é verdadeiro para todo nN, n > r.
A demonstração fica como exercício.
Prove que a proposição P(n): 0+1+...+n=n(n+1)/2 é verdadeira para todo número natural n.
Em acordo com o PIF, devemos verificar se P(0) tem sentido e é verdadeiro. O primeiro membro é a soma e vale 0.
O segundo membro é a fração e para n=0 é 0(0+1)/2=0, de modo que o resultado vale para n=0, isto é, (i) P(0) é verdadeiro.
Admita que P(k) é verdadeiro, isto é, admita que é válida Hipótese de Indução:
0 + 1 +...+ k = |
|
---|
Queremos provar que P(s(k))=P(k+1) é verdadeiro, isto é, a Tese de Indução:
0 + 1 +...+ k + (k+1) = |
|
---|
Observe que devido à Hipótese de Indução, tem-se que P(k+1):
0+1+...+k+(k+1) = (0+1+...+k)+(k+1) = |
|
+(k+1) |
---|
Ora esta última soma é precisamente (k+1)(k+2)/2, assim acabamos de provar a nossa Tese de Indução.
Prove que 6÷n(n+1)(2n+1) qualquer que seja n número natural.
O resultado vale para n=0 pois 6 ÷ 0(0+1)(0+1);
Se vale o resultado para n=k, isto é: 6÷k(k+1)(k+2) implica que k(k+1)(2k+1)=6q para algum qN ou seja, após efetuarmos as multiplicações: 2k³+3k²+k=6q que é nossa Hipótese de Indução.
Se n=k+1, temos que:
(k+1)(k+2)(2k+3)=2k³+9k²+13k+6=(2k³+3k²+k) +6k²+12k+6=6q+6k²+12k+6
ou seja
(k+1)(k+2)(2k+3)=6(q+k²+2k+1)
donde se conclui que 6 ÷ (k+1)(k+2)(2k+3).
Provar que para todo n > 1:
|
+ |
|
+ |
|
+ ... + |
|
< 2 − |
|
---|
A proposição não tem sentido para n=0 e sim para n> 1. Por isso, começamos verificando a válidade da proposição para n=1.
O primeiro membro vale 1 para n=1 e o segundo membro vale 2−1/1=2−1=1 também. Assim o resultado vale para n=1.
Admitindo o resultado para n=k > 1, temos:
1 + |
|
+ ... + |
|
< 2 − |
|
---|
Daí,
1 + |
|
+...+ |
|
+ |
|
+ (1 +...+ |
|
) + |
|
< 2 − |
|
+ |
|
---|
logo
1 + |
|
+...+ |
|
+ |
|
= 2 − ( |
|
− |
|
) = 2− |
|
< 2 − |
|
= 2 − |
|
---|
Assim o resultado é verdadeiro.
Exercícios: Usando o PIF, prove que:
2 + 4 +...+ 2n = n(n+1).
1 + 3 +...+ (2n−1) = n².
2 n+1 é ímpar para todo n>1.
3 n > 2n+1 para todo nN.
Para encerrar esta seção vamos estudar o comportamento de igualdades versus operações.
Teorema: Se a,b,c,dN então valem:
a=b se, e somente se, a+c=b+c para qualquer cN.
a=b se, e somente se, ac=bc para todo c natural com c>1.
Se a=b e c=d então a+c=b+d.
Demonstração de 1: Se a=b então a+c e b+c devem ser iguais por se tratar da mesma adição.
Por outro lado, seja S={cN : a+c=b+c }.
É imediato que 0S porque a+0=a=b=b+0 que vale, por hipótese.
Admita, agora, que a+k=b+k implica que a=b.
Daí segue que, a+s(k)=b+s(k) implica que s(a+k)=s(b+k) que por sua vez implica que a+k=b+k e finalmente a=b, portanto s(k)S donde se conclui que S=N e o resultado é válido.
Demonstração de 2: Se a=b então ac e bc indicam a mesma operação, logo os resultados devem ser iguais.
Para a recíproca, seja S={cN *:ac=bc implica que a=b}.
Como a.1=b.1 implica que a=b, decorre que 1S.
Suponha que kS, isto é, ak=bk implica que a=b. Daí, a.s(k)=b.s(k) implica que ak+a=bk+a que por sua vez implica que ak=bk pelo item 1 provado acima e portanto a.s(k)=b.s(k) implica que a=b, logo s(k)S e S=N−{0}.
Demonstração de 3: Partindo de a=b e utilizando 1 tiramos a+c=b+c; partindo de c=d e utilizando 1 obtemos (somando b) b+c=b+d e finalmente, se a+c=b+c e b+c=b+d decorre a+c=b+d, como queríamos.
Dados dois números naturais, estamos acostumados a reconhecer qual deles é o "menor" ou qual é o "maior". Vamos agora tornar esse conceito mais preciso.
Definição: Sejam a,bN. Dizemos que a<b se, e somente se, a equação a+x=b tem solução em N, isto é, a<b se, e só se, existe cN tal que a+c=b.
Diremos que a > b se, e somente se, b<a.
No teorema a seguir estudaremos o comportamento das desigualdades frente às operações.
p>Teorema: Sejam a,b,c,dN. Então:a<b se, e somente se, a+c<b+c.
a<b se, e somente se, ac<bc desde que c 0;
Se a<b e c<d então a+c<b+d.
Se a<b e c<d então ac<bd.
Demonstração de 4: Se a<b existe rN tal que a+r=b. Se c<d existe sN tal que c+s=d.
Multiplicando as igualdades membro a membro, obtemos (a+r)(c+s)=bd se, e somente se, ac +(as+cr+rs)=bd, portanto ac<bd.
Os demais ítens podem ser provados de modo análogo. Apresentamos a seguir, em forma de teorema, alguns resultados válidos em N e de grande interesse teórico.
Teorema: Valem os seguintes resultados:
Todo número natural, exceto o 0, é sucessor de outro número natural.
Se n é um número natural então n > 0.
Nenhum número natural é seu próprio sucessor, isto é, s(p) p para todo pN.
Entre 0 e 1 não há números naturais.
Se pN e m<p<s(m) então p=m ou p=s(m).
Se m,nN então m<n ou n<m, ou seja N é completamente ordenado por <.
Deixamos a demonstração como exercício.
Sejam m,nN com m > n. Então a equação n+x=m tem solução que será indicada por m−n, a diferença entre m e n. Desta definição, segue que n+(m−n)=m e (m−n)+n=m.
Teorema: Sejam a,b,c,d números naturais. Se as diferenças indicadas tiverem sentido, são válidas as seguintes propriedades:
(a−b)+b=a;
(a−b)+c=(a+c)−b;
(a−b)+(c−d)=(a+c)−(b+d);
(a−b)−(c−d)=(a+d)−(b+c).
Demonstração de 1: Vale, por definição de diferença;
Demonstração de 2: a−b é a solução de x+b=a. Daí, somando c aos dois membros obtemos x+b+c=a+c ou (x+c)+b=a+c de modo que a equação y+b=a+c tem como soluções (a+c)−b bem como (a−b)+c;
Demonstração de 3: a−b é solução de x+b=a, c−d é solução de y+d=c. Somando as duas igualdades, obtemos
de modo que a equação X+(b+d)=(a+c) tem como soluções (a+c)−(b+d) e (a−b)+(c−d) donde segue o resultado.
Demonstração de 4: Se as diferenças acima fazem sentido, (a−b)−(c−d) é solução da equação x+(c−d)=(a−b). Somando b e d aos dois membros desta equação não mudamos a solução.
Mas então a equação muda para x+b+c=a+d que tem como solução (a+d)−(b+c) e portanto (a−b)−(c−d)=(a+d)−(b+c)
Teorema: Se as diferenças a−b e c−d tem sentido, temos:
m(a−b)=(ma)−(mb) para todo mN.
(a−b).(c−d)=(ac+bd)−(ad+bc)
Demonstração: Fica como exercício.
Utilizando os resultados dos teoremas acima calcule, se possível:
(6−4)+(5−2);
(6−4) × (5−2);
(6−4)−(5−2);
(8−4)−(5−2);
3 × (5−2);
(5−2) × 3