O conjunto dos números naturais não é suficiente para que tratemos de muitas questões matemáticas, mesmo algumas bem corriqueiras.
Por exemplo, se dividimos um bolo em duas partes iguais, não temos como exprimir o resultado dessa divisão usando números naturais. Os saldos bancários nem sempre são positivos, isto é, às vezes sacamos do banco quantias que não temos.
Muitas são as situações em que o conjunto N é insuficiente. Para resolver essa situação vamos construir um novo conjunto ampliando N. Temos duas escolhas: construir o conjunto dos números inteiros (é o que faremos) ou o conjunto dos números fracionários positivos.
Para construção de Z vamos considerar equações do tipo x+a=b com a,b N. Se a equação for solúvel em N sua solução é b−a como já vimos. Ainda que a equação acima não seja solúvel em N, vamos indicar sua solução por b−a.
Definição: O conjunto dos números inteiros, deniotado por Z, é definido por
Um resultado imediato é que N Z, uma vez que se p N então p=p−0 Z.
Por outro lado, Z não está contido em N pois, 2−3 Z mas 2−3 N.
Para as operações em Z queremos que o maior número possível de propriedades de N continuem válidas. Mais especificamente, queremos que sejam válidas as propriedades enunciadas nos dois teoremas do capítulo anterior. Usando-os, temos as seguintes definições:
Define-se a adição em Z por:
Exemplos:
Define-se a multiplicação em Z por:
Exemplos:
Uma primeira observação a respeito de Z que fazemos é a seguinte: os números naturais de Z podem ser escritos de muitas formas. Por exemplo: 2=2−0=3−1=4−2=5−3 ….
Observe que em qualquer das igualdades a soma "dos extremos é igual à soma dos meios": 3−1=4−2 e 3+2=1+4.
Vamos usar esse fato para enunciar o seguinte teorema:
Teorema: Os números inteiros a−b e c−d são iguais se, e somente se, a+d=b+c.
Demonstração: Admitamos que a−b=c−d, isto é, as soluções de x+b=a e y+d=c sejam iguais. Somando d aos dois membros da primeira das equações e b aos dois membros da segunda equação (o que não muda suas soluções) obtemos: as soluções de x+b+d=a+d e y+b+d=b+c são iguais.
Ora, isso só é possível se a+d=b+c. Por outro lado, se a+d=b+c estas últimas equações são idênticas (só diferindo no nome da incógnita) e portanto elas tem a mesma solução. A solução da primeira é a−b e a solução da segunda é c−d, o que conclui a demonstração.
Exemplo
Para evitar tantas formas de escrever um número inteiro, temos o seguinte teorema.
Teorema: Sejam m,n N. Então:
Se m > n então m−n e (m−n)−(n−n)=(m−n)−0 são iguais;
Se m<n então m−n e (m−m)−(n−m)=0−(n−m) são iguais.
Demonstração: m−n=(m−n)−0 porque m+0=n+(m−n).
Analogamente, m−n=0−(n−m) porque m+(n−m)=n+0.
Como aplicação deste resultado vamos escrever uma forma mais simples para 20−12 e para 13−21. Como 12<20, vamos subtrair 12 de cada termo, reduzindo a 8−0. Para o segundo número, vamos subtrair 13 de cada termo obtendo 0−8.
Resumindo, podemos escrever:
Notação: Os números inteiros da forma 0−a com a N serão indicados por −a; os números da forma a−0 com a N serão indicados por +a ou apenas a, dependendo da situação.
Assim
Com o objetivo de ser mais completo na exposição, temos os seguintes teoremas:
Teorema: As operações com números inteiros não dependem das diferenças utilizadas.
Antes da demonstração faremos alguns exemplos:
Demonstração: Suponha que a−b=a'−b' e que c−d=c'−d'. A soma (a−b)+(c−d)=(a+c)−(b+d) e a mesma que (a'−b')+(c'−d')=(a'+c')−(b'+d')?
São, pois por hipótese a+b'=b+a' e c+d'=d+c' e assim,
A demonstração para a multiplicação fica como exercício.
Exercícios:
Calcular 3+2, (−3)+2, 3+(−2) e (−3)+(−2)
Calcular 3×2, (−3)×2, 3×(−2) e (−3)×(−2).
Enunciar regras para a soma e produto de números inteiros (as regras de sinais). (Note que não precisamos delas ...)
Provar que a equação x+a=b com a,b Z sempre tem solução em Z. Obs. Utilizar a=m−n e b=r−s.
Definir a subtração de números inteiros a partir dos últimos teoremas da seção anterior. Calcular 3−2, (−3)−2, 3−(−2) e (−3)−(−2).
Teorema: As operações adição e multiplicação em Z tem as seguintes propriedades:
Associativa: Para quaisquer a,b,c Z, tem-se que (a+b)+c=a+(b+c) e (ab)c=a(bc).
Comutativa: Para quaisquer a,b Z, tem-se que a+b=b+a e ab=ba.
Existência de Elemento Neutro: Para qualquer a Z
existe 0 Z tal que a+0=0+a=a.
existe 1 Z tal que a.1=1.a=a.
Existência de oposto: Para qualquer a Z, existe −a Z tal que a+(−a)=(−a)+a=0
Distributiva: Para quaisquer a,b,c Z, tem-se que a(b+c)=ab+ac.
A demonstração fica como exercício. Convém adotar a forma m−n para um número inteiro, com m,n N.
Nesta seção, nosso objetivo é ordenar o conjunto ds números inteiros, ou seja, dados dois números inteiros m e n, dizer qual deles é o menor.
Definição: Sejam a,b Z. Diremos que a<b se, e somente se b−a N.
Assim, −2<5 porque 5−(−2)=5+2=7 N.
Do mesmo modo, −8<−3 porque −3−(−8)=−3+8=5 N.
No caso de comparar dois números inteiros que são números naturais, temos: a<b se, e somente se, b−a N.
Mas, isso significa que x+a=b tem solução em N. A conclusão que se tira é a seguinte: a nova definição de<coincide com a definição de<dada antes quando lidamos com números naturais, ou seja, a nova relação de ordem é uma extensão da anterior.
Teorema: A ordem<em Z possui as seguintes propriedades:
Para todo a Z, tem-se que a<a .
Se a<b e b<c então a<c.
Se a<b e b<a então a=b.
Se a<b e c Z, tem-se que a+c<b+c.
Se a<b e c > 0 então ac<bc.
Se a<b e c<d então a+c<b+d.
Se 0<a<b e 0<c<d então ac<bd.
Demonstração de 1: Imediata, já que a−a=0 N;
Demonstração de 2: b−a N; c−bN implica que (c−b)+(b−a)=c−a N, isto é, a<c.
Demonstração de 3: Os números b−a e a−b são ambos números naturais e um é o oposto do outro. Só pode ser 0. Assim, a=b.
Demonstração de 4: Se a<b temos b−a =(b+c)−(a+c) N donde segue o resultado.
Demonstração de 5: Os números b−a e c são números naturais. O produto (b−a).c=bc−ac tambem é um número natural, donde segue que ac<bc.
Demonstração de 6: Os números b−a e d−c são números naturais. Assim, sua soma é um número natural, isto é, (b−a)+(d−c)=(b+d)−(a+c) N, donde segue que a+c<c+d;
Demonstração de 7: Diante das hipóteses, c > 0 logo ac<bc, usando (5). Também temos que b > 0 donde tiramos bc<bd. Uma aplicação de (2) permite concluir o resultado.
Nem toda equação da forma ax=b tem solução em Z. Por exemplo, a equação 2x=6 tem solução 3 em Z, enquanto que a equação 3x=5 não tem solução inteira.
Definição: Se a equação ax=b tem solução em Z, a mesma será indicada por b/a.
Note que, por definição, segue que a.(b/a)=b. O número b/a tem forma de fração, mas é um número inteiro.
Teorema: Se as frações b/a e d/c são números inteiros então valem:
O denominador a da fração b/a nunca é zero.
As frações b/a e (kb)/(ka) são soluções da mesma equação ax=b.
(b/a) + (d/c) =(bc+ad)/(ac);
(b/a)×(d/c) = (bd)/(ac).
Demonstração de 1: De fato, a equação 0.x=b nunca tem solução inteira, se b 0;
Demonstração de 2: De fato, as equações ax=b e kax=kb tem a mesma solução. Mas, por definição, essas soluções são b/a e (kb)/(ka).
Demonstração de 3: Temos, por hipótese, a×(b/a)=b e c×(d/c)= d. Assim, segue que: ac×(b/a)= bc e ac×(d/c)=ad. Se somarmos as igualdades, obteremos:
ac × |
|
+ ac × |
|
= bc+ad |
---|
ou seja,
ac×( |
|
+ |
|
) = bc+ad |
---|
de onde segue que
|
+ |
|
= |
|
---|
Demonstração de 4: Como no ítem anterior: a×(b/a)=b e c×(d/c)=d. Multiplicando essas igualdades, obtemos
ac × |
|
× |
|
= bd |
---|
donde sai
|
× |
|
= |
|
---|
.
Chegou o momento de criarmos os números fracionários positivos e negativos, isto é, de criarmos o conjunto dos números racionais Q.
A exemplo do que foi feito na construção de Z, partiremos da equação ax=b que nem sempre tem solução em Z.
Por exemplo, a equação 2x=6 tem solução x=3 em Z, mas a equação 5x=8 não tem solução em Z.
Procuramos um conjunto mais amplo, no qual todas as equações ax=b com a 0 tenham soluções. Indicaremos essa solução por b/a, ainda que esse número não seja um inteiro. É imediato que a×(b/a)=b.
Definição: O conjunto dos números racionais é definido como o conjunto de todas as frações b/a sendo que a,b Z, b 0, isto é,
Q= { |
|
: a,b Z, b 0 } |
---|
Conhecido o conjunto Q, passamos a definir as operações de adição e multiplicação nesse conjunto. Para manter válidas as propriedades citadas no último teorema da seção anterior, vamos colocar:
|
+ |
|
= |
|
---|
e
|
× |
|
= |
|
---|
Assim, temos:
|
+ |
|
= |
|
---|
e
|
× |
|
= |
|
---|
Como ocorreu com o conjunto Z, em Q os números não tem uma forma única para serem escritos! Por exemplo, 2/3=6/9.
Esclarecendo: 2/3 é solução da equação 3x=2, ou seja, 3×(2/3)=2. Multiplicando os dois membros desta igualdade por 3, obtemos: 3×3×(2/3)=3×2, isto é, 9×(2/3)=6 o que equivale a afirmar que 2/3 é solução de 9y=6. Ocorre que a solução de 9y=6 é 6/9. Assim ...
Teorema: As operações acima estão bem definidas em Q, isto é, o resultado não depende da particular forma dos operandos.
Ao invés de demonstrar, vamos dar um exemplo.
Imagine que queremos somar e multiplicar 1/3 e 2/5. A soma é 14/15 e o produto 3/15. Acontece que, por exemplo, 1/3=4/12 e 3/5=6/10. Operando com esses valores obtemos a soma 112/120 e o produto 24/120, resultados iguais aos obtidos anteriormente.
Teorema: O conjunto Q, com as operações + e . acima definidas, possui as seguintes propriedades:
Propriedade Associativa: Para quaisquer a,b,c in Q tem-se que (a+b)+c=a+(b+c) e (ab)c=a(bc).
Propriedade Comutativa: Para quaisquer a,b in Q tem-se que a+b=b+a e ab=ba.
Existência de elemento neutro: Para todo a Q,
existe 0 Q tal que a+0=a.
existe 1 Q tal que a.1=a.
Existência de Inversos: Para cada a Q,
existe −a Q tal que a+(−a)=0.
com a 0, exists a −1 Q tal que a.a −1=1.
Propriedade Distributiva: Para quaisquer a,b,c Q tem-se que a(b+c)=ab+ac.
A demonstração é deixada como exercício.
Para o desenvolvimento da teoria, vamos, a partir de agora considerar que o denominador de todo número racional é um inteiro positivo. Isso pode ser feito pois a/b=(−a)/(−b) e, evidentemente, b ou −b é um inteiro positivo.
Para maior esclarecimento, o número racional 2/(−3) será escrito como −2/3, obtido pela multiplicação do numerador e também do denominador por −1.
Definição: Atendidas as exigências acima, diremos que a/b<c/d se, e somente se, ad−bc<0, ou seja, ad<bc.
Como exemplo, 1/2<2/3 pois 1×3<2×2 e −2/5<3/4 pois (−2)×4<5×3.
Particularmente importante: a/b<0 se, e somente se, a<0.
No caso dos números racionais serem números inteiros, nossa definição coincide com a definição de ordem em Z.
A ordem em Q é, pois, uma extensão da ordem de Z.
Nosso próximo teorema examina as propriedades da relação<acima definida, bem como sua relação com as operações em Q.
Teorema: Valem as seguintes propriedades:
Para qualquer a Q tem-se que a<a.
Se a<b e b<a então a=b.
Se a<b e b<c então a<c.
Para qualquer a Q tem-se que a² > 0.
Se a<b e c Q então a+c<b+c.
Se a<b e c > 0 então ac<bc.
Se a<b e c<d então a+c<b+d.
Se 0<a<b e 0<c<d então ac<bd.
Demonstração: Fica como exercício. Como exemplo provaremos (4) e (5).
Demonstração de 4: Se a=m/n, então a²=m²/n². Como m² > 0 e n² > 0 segue o resultado.
Demonstração de 5: Suponha a=m/n e b=r/s e c=p/q. Então
a+c= |
|
---|
e
b+c= |
|
---|
de onde segue que
a+c<b+c | sse, | (mq+np)sq−(qr+ps)nq<0 |
---|---|---|
sse, | msq²+nspq−nrq²−nspq<0 | |
sse, | (ms−nr)q²<0 | |
sse, | ms−nr<0 | |
sse, | a<b |
Finalmente, vamos apresentar números que não são racionais.
Teorema: 2 não é um número racional.
Demonstração: Admitamos, por absurdo, que 2=m/n onde m/n é uma fração irredutível, isto é, não pode ser simplificada.
Elevando ao quadrado a igualdade acima, obtemos: m²/n²=2 isto é,
e concluímos que m² é um número par. Se m² é par, m não pode ser ímpar, logo é da forma m=2p. Substituindo este valor na segunda igualdade, chegamos a 4p²=2n² ou seja n²=2p² garantindo que n² é par, assim n é par.
Assim, a fração irredutível m/n tem numerador par e denominador par, o que é um absurdo.
Será que este número 2 é importante? É, pois o comprimento da diagonal de um quadrado de lado unitário vale precisamente 2.
A conclusão é que Q contínua sendo um conjunto insuficiente para o desenvolvimento de toda a Matemática.