MANIFESTO
SURREALISTA
Por André Breton
Tamanha é a nossa
crença na vida e no que a vida tem de mais precário,
e se bem entendido, a vida que é afinal, essa crença
que se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso
com o seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual
e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu
esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não
lhe repugnou tomar essa decisão [o que ele chama decisão!].
Bem modesto é agora o seu quinhão. Sabe as mulheres
que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu. A sua
riqueza ou a sua pobreza para ele não valem nada, quanto a
isso, continua recém-nascido e quanto à aprovação
da sua consciência moral, admito que lhe é indiferente.
Se conservar alguma lucidez, não poderá senão
recordar-se da sua infância, que lhe parecerá repleta
de encantos, por mais massacrada que tenha sido, com o desvelo dos
educadores. Aí, ausência de qualquer rigor conhecido
dar-lhe-á a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo.
E ele agarra-se a essa ilusão. Só quer conhecer a facilidade
momentânea e extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs,
crianças saem de casa sem inquietação. Está
tudo perto, as piores condições materiais são
excelentes. Os bosques são claro ou escuros, nunca irá
dormir.
Mas é verdade que
não se pode ir tão longe, pois não é uma
questão de distância, apenas. Acumulam-se as ameaças,
desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar.
Esta imaginação que não admitia limites, agora
só lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária.
Ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior
e quando chega ao vigésimo ano, prefere em geral, abandonar
o homem ao seu destino sem luz.
Procura ele mais tarde,
daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões
para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação
excepcional, como seja o amor, pois ele muito dificilmente o conseguirá.
É que doravante, pertence de corpo e alma, a uma necessidade
prática imperativa, que não permite ser desconsiderada.
Faltará a amplidão aos seus gostos, envergadura às
suas idéias. De tudo o que lhe acontece e que pode acontecer-lhe,
só vai reter o que fizer a ligação deste evento
com uma porção de eventos parecidos, dos quais não
toma parte. Os eventos perdidos. Que digo, ele fará a sua avaliação
com relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo
que os outros e às suas conseqüências. Ele não
descobrirá aí, sob pretexto algum, a sua salvação.
Imaginação
querida, o que sobretudo amo em ti, é não perdoares.
Só o que me exalta ainda, é uma única palavra.
Liberdade. Eu considero-a apropriada para manter, indefinidamente,
o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, a minha única
aspiração legítima. Entre tantos infortúnios
por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de
espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer
mau uso dela. Reduzir imaginação à servidão,
fosse mesmo o caso de, ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade,
é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça.
Só a imaginação me dá contas do que pode
ser e é o bastante, para suspender por um instante a interdição
terrível. É o bastante também para que eu me
entregue a ela, sem receio de me enganar [corno se fosse possível
enganar-me mais ainda]. Onde começa ela a ficar nociva e onde
se detém a confiança do espírito? Para o espírito,
a possibilidade de errar, não é antes, a contingência
do bem?
Fica a loucura, "A
loucura que é encarcerada", como já se disse e
bem. Essa ou a outra. Todos sabem, com efeito, que os loucos não
devem a sua internação senão a um reduzido número
de atos legalmente repreensíveis e que se não houvessem
estes atos, a sua liberdade [ou o que se vê da sua liberdade]
não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa
medida, vítimas da sua imaginação, concordo com
isso, no sentido de que ela os impele à inobservância
de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o
que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença
de que dão provas em relação às criticas
que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são
impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto na sua imaginação
e apreciam o seu delírio o bastante, para suportar que só
para eles seja válido. E, de fato, alucinações,
ilusões, etc. São uma fonte de gozo nada desprezível.
A mais bem ordenada sensualidade, encontra aí a sua parte,
e eu sei que passaria muitas noites a amansar com essa mão
bonita nas últimas paginas do livro, "A Inteligência
de Taine", dedica-se a singulares malefícios. As confidências
dos loucos, passaria a minha vida a provocá-las. São
pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só
tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para
descobrir a América. E vejam, como essa loucura cresceu e durou.
Não será o medo da loucura, que nos vai obrigar a colocar
a meia-haste, a bandeira da imaginação.
O processo da atitude realista deve ser instruído, após
o processo da atitude materialista. Esta é aliás, mais
poética que a precedente e implica da parte do homem um orgulho
sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa
deposição. Convém ver nela, antes de tudo, uma
feliz reação contra algumas tendências risíveis
do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível
com uma certa elevação de pensamento.
Ao contrário, a atitude realista inspirada no positivismo,
de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo
impulso de libertação intelectual e moral. Tenho-lhe
horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida
presunção. E ela a geradora hoje em dia desses livros
ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se incessantemente
nos jornais e põe em xeque, a ciência e a arte, ao aplicar-se
em bajular a opinião nos seus critérios mais baixos.
A clareza é vizinha da tolice e a vida é dos cães.
Ressente-se com isso a atividade dos melhores espíritos. A
lei do menor esforço afinal impõe-se a eles como aos
outros. Consequência divertida deste estado de coisas em literatura,
é a abundância de romances. Cada um contribui com sua
pequena "observação". Por necessidade de depuração
o Sr. Paul Valéry propunha recentemente fazer antologia do
maior número possível de começos de romances
cuja insensatez ele à muito esperava. Os mais famosos autores,
seriam chamados a participar.
Tal idéia dignificava também Paul Valéry, que
não há muito e a propósito de romances [garantiu-me
ele] sempre se recusaria a escrever coisas do gênero: "A
Marquesa saiu às cinco horas". Mas, cumpriu ele a sua
palavra?
Se o escrito de informação pura e simples de que a frase
precipitada é exemplo, tem emprego corrente nos romances certamente
é por não ir longe a ambição dos seus
autores. O caráter circunstancial, inutilmente particular,
de cada anotação sua, faz-me pensar que se estão
divertindo à minha custa. Não me poupam a nenhuma hesitação
do personagem. Ser louro, como se chama, vamos sair juntos no Verão?
Outras tantas perguntas resolvidas decisivamente ao acaso. Só
me restou o poder discricionário de fechar o livro [o que não
deixo de o fazer] ainda perto da primeira página. E as descrições!
Nada se compara ao seu vazio.
São sobreposições de imagens de catálogo,
o autor toma-as cada vez mais sem cerimônia, aproveita para
empurrar-me os seus cartões postais e procura fazer-me concordar
com os seus lugares-comuns.
"A salinha aonde foi conduzido o rapaz era forrada de papel amarelo.
Havia gerânios e cortinas de musselina nas janelas.
O sol poente jogava sobre tudo isso uma luz clara... O quarto não
continha nada em particular. Os móveis, de madeira amarela,
eram todos velhos. Um sofá com o grande encosto inclinado,
uma mesa oval diante do sofá, um toucador com espelho entre
as janelas, cadeiras encostadas às paredes, duas ou três
gravuras sem valor, representando raparigas alemãs com pássaros
nas mãos. Eis a que se reduzia a mobília".
Dostoievski, Crime e Castigo
Que o espírito se
proponha, mesmo que por pouco tempo a tais motivos, não tenho
disposição para admiti-lo. Podem sustentar que este
desenho clássico está no lugar certo e que neste passo
do livro o autor tem os seus motivos para me esmagar. Perde o seu
tempo, pois eu não entro no seu quarto. A preguiça e
a fadiga dos outros não me prendem. Tenho da continuidade da
vida uma noção instável demais para igualar aos
melhores, os meus momentos de depressão e de fraqueza. Quero
que se calem, quando param de se ressentir E, entendam bem, que não
incrimino a falta de originalidade pela falta de originalidade. Digo
apenas, que não faço caso dos momentos nulos da minha
vida e que da parte de qualquer homem pode ser indigno de cristalizar
aqueles que lhe parecem tais. A esta descrição de quarto
e a muitas outras, permitam-me que lhes diga: Eu passo...
Ora, cheguei à psicologia e com este assunto nem penso em brincar.
O autor pega num personagem e escolhido este, faz o seu herói
peregrinar pelo mundo. Haja o que houver, este herói, cujas
ações são admiravelmente previstas, tem a incumbência
de não se desmanchar [parecendo porém desmanchar-se
sempre] com os cálculos de que é objeto. As vagas da
vida podem parecer arrebata-to, rodá-lo e afundá-lo,
mas ele depender sempre deste tipo humano formado. Simples partida
de xadrez, da qual me desinteresso, mesmo sendo o homem, qualquer
um, um medíocre adversário para mim. Não posso,
e suportar, estas reles discussões de tal ou qual lance, desde
que não se trate nem de ganhar nem de perder. E, se o jogo
não vale um caracol e se a razão objetiva prejudica
terrivelmente como é o caso, quem nela confia. Não convirá
fazer a abstração destas categorias? Se um cacho de
uvas não tem duas sementes iguais, como querem que lhes descreva
este bago pelo outro ou por todos os outros e que dele faça
um bago bom para comer? Esta intratável mania de reduzir o
desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os cérebros.
O desejo de análise prevalece sobre os sentimentos. Disso resultam
dilatadas exposições cuja força persuasiva reside
na sua própria singularidade e que iludem o leitor pelo recurso
a um vocabulário abstrato, bastante mal definido, aliás.
Se as idéias gerais que a filosofia se propõe até
aqui debater, marcassem por aí a sua incursão definitiva
num domínio mais extenso, seria eu o primeiro a alegrar-me.
Mas, por enquanto, é só afetação, Até
aqui, os ditos espirituosos e outras boas maneiras que nos encobrem
"à porfia" o verdadeiro pensamento que se busca ele
próprio, em vez de se ocupar em obter sucessos. Parece-me,
que todo o ato traz em si mesmo a sua justificação,
ao menos para quem foi capaz de cometê-lo, pois ele é
dotado de um poder radiante que a mínima glosa, por natureza,
enfraquece. Devido a esta última, ele deixa mesmo de certo
modo, de se produzir. Não ganha nada com esta distinção.
Os heróis de Stendhal caem aos golpes deste autor, apreciações
mais ou menos felizes, que nada acrescentam à sua glória.
Onde os encontraremos de fato, é onde Stendhal os perdeu. Ainda
vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem
entendido, onde eu queria chegar. Mas, os procedimentos lógicos
em nossos dias, só se aplicam à resolução
de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua
tão em moda não permite considerar senão fatos
dependendo estritamente da nossa experiência. Os fins lógicos,
ao contrário, escapam-nos. Inútil é acrescentar,
que à própria experiência foram impostos limites.
Ela circula numa jaula, de onde é cada vez mais difícil
fazê-la sair. Ela apoia-se, também ela, na utilidade
imediata e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização
e de progresso, conseguiu se banir do espírito tudo que se
pode tachar, com ou sem razão, de superstição
e de quimera. A proscrever todo modo de busca da verdade, não
conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente
trouxe à luz uma parte do mundo intelectual e ao meu ver, a
mais importante e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se
isso, às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas
desenha-se afinal urna corrente de opinião, graças a
qual o explorador humano poderá levar mais longe as suas investigações,
pois que autorizado está, a não ter só em conta
as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação
a ponto de retomar os seus direitos. Se as profundezas do nosso espírito
escondem estranhas forças, capazes de aumentar as da superfície,
ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las.
Captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o
caso, ao controle da nossa razão. Os próprios analistas
só têm a ganhar com isso. Mas é importante observar
que nenhum meio está "à priori" designado
para conduzir este empreendimento, que até segunda ordem, pode
ser também considerado, como sendo da alçada dos poetas,
tanto como dos sábios e o seu sucesso não depende das
vias mais ou menos caprichosas a serem seguidas.
Com justa razão, Freud dirigiu a sua crítica para o
sonho. É inadmissível, com efeito, que esta parte considerável
da atividade psíquica [pois que, ao menos do nascimento à
morte do homem, o pensamento não tem solução
de continuidade, a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista do
tempo a considerar só o sonho puro/ o do sono, não é
inferior a soma dos momentos de realidade e digamos apenas dos momentos
de vigília] não tenha recebido a atenção
devida. A extrema diferença de atenção, de gravidade,
que o observador comum confere aos acontecimentos da vigília
e aos do sono, é caso que sempre me espantou. É que
o homem, quando cessa de dormir, é logo o joguete da sua memória,
a qual, no estado normal, deleita-se em lhe retraçar francamente
as circunstâncias do sonho, em privar este de toda a consequência
atual e em despedir o único determinante do ponto onde ele
julga tê-lo deixado, poucas horas antes. Esta esperança
firme, este desassossego Ele tem a ilusão de continuar algo
que vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um parêntese,
como a nojte. E como a noite, geralmente também não
traz bom conselho. Este singular estado de coisas parece-me conduzir
a algumas reflexões.
1.° Nos limites onde
exerce sua ação [supõe-se que a exerce] o sonho,
ao que tudo indica, é contínuo, e possui traços
de organização. À memória arroga-se o
direito de nele fazer cortes, de não levar em conta as suas
transições e de nos apresentar antes uma série
de sonhos do "sonho". Assim também, a cada instante
só temos das realidades uma figuração distinta,
cuja coordenação é uma questão de vontade.
Importa notar que nada nos permite induzir a uma maior dissipação
dos elementos constitutivos do sonho, lamento falar disso segundo
uma fórmula que exclui o sonho, em princípio. Quando
virão os lógicos, os filósofos adormecidos?
Eu gostaria de dormir, para poder entregar-me aos dormidores, como
me entrego aos, que lêem de olhos bem abertos. Para cessar de
fazer prevalecer nessa matéria o ritmo consciente do meu pensamento.
O meu sonho desta última noite talvez prossiga o da noite precedente
e seja prosseguido na próxima noite, com louvável rigor.
É bem possível, como se diz. E corno não está
de modo nenhum provado que, fazendo isso, a realidade que me ocupa
subsista no estado de sonho [que Lea não afunde no imemorial]
porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por
vezes à realidade, seja este valor de certeza em si mesma,
que, em seu tempo, não está exposta ao meu desmentido?
Por que não haveria eu de esperar do indício do sonho
mais do que espero de um grau de consciência a cada dia mais
elevado? Não se poderia aplicar ao sonho a resolução
de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas
as mesmas num caso como no outro e que no sonho elas já estão?
O sonho ter menos peso de sanções que o resto? Envelheço,
e mais que esta realidade a qual penso adstringir-me, é talvez
o sonho e a indiferença que lhe dedico, que me faz envelhecer.
2.°. Retomo o estado
de vigília. Sou obrigado a considerá-lo um fenômeno
de interferência. Não apenas o espírito manifesta,
nestas condições, uma estranha tendência a desorientação
[é a história dos lapsos e enganos de toda espécie
cujo segredo começa a nos ser entregue] mas ainda não
parece que, em seu funcionamento normal, ele obedeça a outra
coisa senão às sugestões que lhe vêm dessa
noite profunda das quais eu recomendo. Por mais bem condicionado que
ele esteja, o seu equilíbrio é relativo. Mal ousa expressar
se, e se o faz, é para se limitar à constatação
de que tal idéia, tal mulher, lhe faz impressão. Que
impressão, seria incapaz de dizê-lo, dando assim a medida
do seu subjetivismo, e nada mais. Esta idéia, esta mulher que
o perturba, predispõem-no a menos severidade Esta idéia,
esta mulher que o perturba, predispõem-no a menos severidade
Ela tem a ação de isolá-lo um segundo da absorção
em que se encontra e depositá-Io no céu, e converte-la
em belo, num vir a ser, ou no belo que é. Carente de esperanças.
De falar das causas anteriores, o espírito recorre ao acaso,
divindade mais obscura do que qualquer outra, a qual atribui todos
seus desvarios. E quem poderá demonstrar que a luz sob a qual
se apresenta esta idéia que impressiona ao espírito,
sob a que adverte aquilo que mais ama nos olhos daquela mulher não
seria precisamente o vínculo que o une ao sonho, que o liga
aos pressupostos básicos que, por sua própria culpa,
foi esquecido? E se não fosse assim, do que seria o espírito
capaz? Queria entregar-lhe a chave que lhe permitisse entrar nestes
corredores
3.°. O espírito
do homem que sonha satisfaz-se plenamente com o que lhe acontece.
A angustiante questão da possibilidade não mais está
presente. Mata, vem-te, mais depressa, ama o tanto quanto quiseres.
E se morreres, não tens certeza de despertares entre os mortos?
Deixa-te levar, os acontecimentos não permitem que os retardes.
Não tens nome. É inapreciável a facilidade de
tudo.
Que razão, eu te
pergunto, razão tão maior que outra, confere ao sonho
este comportamento natural e que me fez acolher sem reserva uma porção
de episódios cuja singularidade, quando escrevo, fulminar-me-ia?
E no entanto, posso crer nos meus olhos e nos meus ouvidos? Chegou
o belo dia e esse animal falou.
Se o despertar do homem
é mais duro, se ele quebra muito bem o encanto, e porque o
levaram a ter, urna fraca idéia da expiação.
4.°. Do momento em
que seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a
serem determinados se chegarmos a dar-nos conta do sonho na sua integridade
[isto pressupõe uma disciplina da memória que atinge
gerações, mas mesmo assim comecemos a registrar os fatos
salientes], quando a sua curva se desenvolve com regularidade e amplidão
sem iguais, então pode-se esperar que os seus mistérios,
não mais o sendo, dêem lugar ao grande Mistério.
Acredito na resolução futura destes dois estados, tão
contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa
espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se
pode chamar.
Parto à sua conquista,
certo de não conseguí-la, mas bem despreocupado com
o minha morte, vou desfrutar um pouco os prazeres de tal posse.
Conta-se, que todos os dia à hora de dormir, Sáint-Roux
mandava colocar à porta do seu Solar em Camaret um cartaz onde
se lia: "O Poeta Trabalha". Muito haveria ainda por dizer,
mas de passagem, só quis aflorar um assunto que, por si só,
necessitaria um alongado discurso e um maior rigor. Voltarei a esse
ponto. Desta vez, a minha intenção era dizer a verdade
sobre o ódio ao maravilhoso que grassa em certos homens, deste
ridículo no qual o querem fazer cair. Falando claro, o maravilhoso
é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só
mesmo o maravilhoso é belo.
No domínio literário,
só o maravilhoso é capaz de fecundar obras dependentes
de um gênero inferior, como o romance e de modo geral, de tudo
o que participa da anedota. Uma prova admirável é "'O
Monge", de Lewis. O sopro do maravilhoso anima-o por inteiro.
Bem antes de o autor ter libertado os seus principais personagens
de qualquer coerção temporal, já se percebe que
estão prontos para agir com uma altivez sem precedentes. Esta
paixão da eternidade, que os exalta sem cessar, confere inesquecíveis
acentos ao seu tormento e ao meu. Entendo que este livro só
exalta, do começo ao fim e da forma mais pura do mundo, aquilo
que do espírito aspira a deixar o chão e que, despojado
de uma parte insignificante da sua afabulação romanesca,
à moda do tempo, constitui um modelo de justeza, de inocente
grandiosidade.
Parece-me que não se fez melhor e a personagem de Matilde,
em particular, e a criação mais comovente que se possa
ativar este modo figurado em literatura. É menos um personagem
que uma contínua tentação. E se um personagem
não é uma tentação, o que é?
Tentação extrema aquela. O "nada é impossível
a quem sabe ousar" dei em "O Monge" toda a sua convincente
medida. As aparições aí têm um papel lógico,
pois que o espírito crítico não se apoderará
delas para as contestar. Também o castigo de Ambrósio
é tratado de maneiro legítima, pois é finalmente
aceito pelo espírito crítico como desenlace natural.
Pode, parecer arbitrário
que eu proponha este modelo, quando se trata do maravilhoso, do qual
as literaturas no Norte e as literaturas orientais tiraram subsídios
e mais subsídios, sem falar das literaturas propriamente religiosas
em toda a parte. É que, a maior parte dos exemplos que estas
literaturas poderiam fornecer-me estão eivadas de puerilidade,
pela boa razão de serem dirigidas às crianças.
Cedo elas são cortadas do maravilhoso e mais tarde, não
guardaram suficiente virgindade de espírito para sentirem o
extremo prazer com "Pele de Asno". Por mais encantadores
que sejam, o homem julgaria decair ao nutrir se de contos de fadas
e concordo que estes não são todos para a sua idade.
O tecido de adoráveis inverossimilhanças requer mais
finura, à medida que se avança e ainda se esta à
espera dessas espécies de aranhas... Mas as faculdades não
mudam radicalmente. O medo, a atração do insólito,
as chances, o gosto do luxo são molas às quais não
se apela em vão. Há contos a escrever para adultos,
contos de fadas, quase sempre.
O maravilhoso não
é o mesmo em todas as épocas. Participa obscuramente
de uma classe de revelação geral, de que só nos
chega o detalhe. São as ruínas românticas, o manequim
moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover
a sensibilidade humana por algum tempo. Nestes quadros que nos fazem
sorrir, no entanto sempre se pinta a inquietação humana
e é por isso que os levo a sério, que os julgo inseparáveis
de algumas produções geniais, as quais mais que as outras,
estão dolorosamente impregnadas dessa inquietação.
São os patíbulos de Villon, as gregas de Racine, os
divas de Baudelaire. Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito
para suportar, eu que tenho do gosto a idéia de um grande defeito.
No mau gosto da minha época, procuro ir mais longe que os demais.
Por hoje, penso num castelo, cuja metade não está obrigatoriamente
em ruína. Esse castelo pertence-me, eu vejo-o num sítio
agreste, não longe de Paris. As suas dependências não
acabam mais e quanto ao interior, foi terrivelmente restaurado, de
modo a nada deixar a desejar em matéria de conforto. Junto
à porta, encoberta pela sombra das árvores, estão
os automóveis, estacionados, Alguns dos meus amigos, aí
estão em permanência. Eis o Louis Aragon que parte. Ele
só tem tempo para cumprimentar-nos. Philippe Soupauit, levanta-se
com as estrelas e Paul Eluard, o nosso grande Eluard, ainda não
voltou. Eis Robert Desnos e Roger Vitrac, que decifram no parque um
velho edital sobre o duelo. Georges Auric, Jean Paulhan, Max Morise
[que rema tão bem] Benjarnin Peret, nas suas equações
de pássaros, Joseph Delteil, Jean Carrive, Georges Limbour
[há uma fileira de Georges Limbour] e Marcel Noll. Eis T. Traenke
que nos acena do seu balcão cativo, Georges Malkine, Antonin
Artaud, Francis Gerard, Pierre Naville e J. A. Boiffard. Depois Jacques
Baron e o seu irmão, belos e cordiais, tantos outrosainda e
mulheres deslumbrantes, palavra. Estes jovens não podem recusar-se
a nada, os seus desejos são, para a riqueza, ordens. Francis
Picabia vem visitar-nos e na semana passada, recebeu-se na galeria
dos espelhos um tal Marcel Duchamp que ainda não se conhecia.
Picasso caça aí por perto. O espírito de desmoralização
ergueu o seu domicílio no castelo e é com ele que tratamos
sempre que há problema de relação com os nossos
semelhantes Mas as portas, estão sempre abertas e sabeis, que
não se começa "por agradecer" às pessoas.
Demais a mais, a solidão é vasta e não nos encontramos
muito. Pois o essencial não e sermos senhores de nós
mesmos, das mulheres e do amor também?
Vão atribuir-me
por certo uma mentira poética. Cada um vai dizer que moro na
Rue Fontaine e que não vai beber dessa água, É
verdade! Mas esse castelo cuja as honras lhe faço, têm
eles a certeza que seja mesmo uma miragem? E se, não obstante,
o palácio existisse? Os meus hóspedes, aí estão,
para o responderem. O seu capricho é a estrada luminosa que
a conduz,. Vivemos de fato a nossa fantasia, quando estamos lá.
E corno o que um faz, poderia incomodar o outro, ali, ao abrigo da
procura sentimental e dos encontros ocasionais?
O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se
por inteiro, isto e, manter em estado anárquico o bando cada
vez mais medonho dos seus desejos. A poesia ensina-lhe isso. Traz
nela a perfeita compensação das misérias que
padecemos. Ela pode ser também uma ordenadora, bastando que
ao golpe de uma decepção menos íntima se tenha
a idéia de toma-lá ao trágico. Venha o tempo
em que ela decrete o fim do dinheiro e reparta, única, o pão
do Céu para a Terra! Haverá ainda assembléias
nas praças públicas e movimentos dos quais não
pensaste participar. Adeus seleções absurdas, sonhos
de abismo, rivalidades, lonqas paciências, a evasão das
estações, a ordem artificial das idéias, a rampa
do perigo e o tempo para tudo! Basta ter-se o trabalho de praticar
a poesia. Não é a nós que compete, que já
vivemos dela, o esforço de fazer prevalecer o que guardamos
para a nossa mais ampla inquietação?
Não importa se há desproporção entre esta
defesa e a ilustração que vai segui-la. Tratava-se de
remontar às fontes da imaginação poética
e mais ainda, ficar aí. Não tenho a pretensão
de ter feito isso. É preciso muito domínio sobre si,
para querer estabelecer-se nestas recuadas regiões onde tudo
parece andar tão mal e com maior razão, para querer
aí conduzir alguém. E nunca se tem certeza de aí
se estar em absoluto. Como não se vai qostar, fica-se disposto
a deter-se em outra parte. A verdade, é que agora urna flecha
indica a direção destes luqares e que alcançar
a meta verdadeira só depende da resistência do viajante.
Conhece-se pouco, mais
ou menos, o caminho percorrido. Tive o cuidado de o contar, no decurso
de um estudo sobre o caso de Robert Desnos, intitulado: "Entrada
dos Médiuns", que eu tinha sido levado a "fixar as
minhas atenções sobre frases mais ou menos parciais,
que em plena solidão e quase pegando no sono, ficam perceptíveis
para o espírito, sem ser possível descobrir-lhes uma
determinação prévia". Eu mal acabara de
tentar uma aventura poética, com o mínimo de chances,
isto é, as minhas aspirações eram as mesmas de
hoje, mas eu tinha fé na lentidão da elaboração
para fugir a contatos inúteis, contactos que eu reprovava intensamente.
Era o pudor do pensamento, de que me sobra ainda alguma coisa. No
fim da minha vida, com dificuldade chegarei a falar como falam todos,
por culpa da minha voz e dos meus gestos escassos. A virtude da palavra
[da escrita: bem maior] parecia-me ligada faculdade de encurtar de
modo marcante a exposição [pois era uma exposição]
de alquns poucos fatos, poéticos ou outros, substanciais para
mim. Na minha idéia, não era outro o processo usado
por Rimbaud. Eu compunha e o meu empenho de variedade merecia melhor
sorte, os últimos poemas do "Mont de Pieté",
isto é, conseguia tirar das linhas em branco desse livro um
partido incrível. Essas linhas eram o olho fechado sobre as
operações do pensamento, que, julgava eu, deviam ser
ocultadas do leitor. Não era desonest idade, mas sim, o gosto
de precipitar as coisas. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade
possível, cada vez menos dispensável para rnim. Eu contraíra
o hábito de afagar imoderadamente as palavras pelo espaço
admitido em torno delas, pelas suas tangências e com outras
inumeráveis palavras não pronunciadas por mim. O poema
"Floresta- Negra" marca exatamente este estado de espírito.
Passei seis meses a escrevê-lo e podem acreditar, não
descansei um só dia. Mas tratava-se da estima a que eu então
me dedicava, não é o bastante, compreendam. Adoro estas
confissões estúpidas. Naquele tempo, a pseudo-poesia
cubista procurava implantar-se, mas saíra desarmada do cérebro
de Picasso e quanto a rnim, eu era tido como tão enfadonho
quanto a chuva [e ainda sou]. Eu desconfiava, aliás, que do
ponto de vista poético, eu estava no caminho errado, mas eu
safava-me corno podia, desafiando o lirismo a golpes de definição
e de receitas [os fenômenos Dada não tardariam a manifestar-
se] e fingindo encontrar uma aplicação da poesia na
publicidade [eu sustentava que o mundo acabaria, não por um
belo livro, mas por uma bela propaganda do Inferno e do Céu].
Na mesma época,
um homem, tão ou mais enfadonho que eu, chamado Pierre Reverdy,
escrevia:
... A imagem é uma
criação pura do espírito.
Ela não pode nascer
da comparação, mas da aproximação de duas
realidade mais ou menos remotas.
Quanto mais longínquas
e justas forem as afinidades de duas realidades próximas, tanto
mais forte será a imanem - mais poder emotivo e realidade poética
ela possuirá, etc.
Estas palavras, se bem
que sibilinas para os profanos eram indicadores muito forles e sobre
elas meditei longamente. Mas a imagem era fugidia. A estética
de Reverdy, estética toda " posteriori", fazia-me
tomar os efeitos pelas causas. Entrementes, fui obrigado a renunciar
definitivamente ao meu ponto de vista.
Certa noite então
antes de adormecer, percebi nitidamente e articulada a ponto de ser
Impossível mudar-lhe uma palavra, mas bem separada do ruído
de qualquer voz, uma frase bem bizarra que me alcançava sem
trazer indício dos acontecimentos, aos quais, segundo o testemunho
da minha consciência, eu estava preso nessa ocasião,
frase que me pareceu insistente, frase que se posso ousar, batia na
vidraça. Rapidamente tive a sua noção e já
me dispunha a passar adiante quando o seu caráter me reteve.
Na verdade, esta frase espantava-me. Infelizmente não a guardei
até hoje. Era algo corno: "Há um homem cortado
em dois pela janela", mas não poderia haver ambiguidade,
acompanhada como estava pela fraca representação visual
de um homem andando e seccionado a meia altura por urna janela perpendicular
ao eixo do seu corpo. Fora de dúvida, era a simples arrumação
no espaço de um homem debruçado à janela. Mas
esta janela e tendo seguido o deslocamento do homem vi que se tratava
de uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la
ao meu material de construção poética. Assim
que lhe concedi este crédito ela deu lugar a uma sucessão
quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam menos
e deixaram me sob a impressão de uma tal gratuidade que pareceu-rne
ilusório o império que até então eu mantinha
sobre mim mesmo e só pensei então em liquidar a interminável
disputo travada em mim. Knut Hamsun põe na dependência
da fome este tipo de revelação que me assaltou e talvez
não esteja o mesmo errado [o fato é que nessa época
eu não comia todos os dias].
Com toda certeza, são de fato, as mesmas manifestações
que ele relata nestes termos:
... No dia seguinte acordei
cedo. Estava ainda escuro. Os meus olhos estavam abertos fazia algum
tempo, quando ouvi o relógio do apartamento inferior tocar
as cinco horas. Quis novamente dormir mas não consegui, eu
estava completamente desperto e mil coisas baralhavam a minha cabeça.
De repente vieram-me uns bons trechos, próprios paia utilização
num esboço ou folhetim. Subitamente e por acaso, achei frases
muito bonitas, frases como jamais escreverei. Eu repetia-as lentamente,
palavra por palavra e eram excelentes. E vinham outras mais. Levantei-rne,
peguei em lápis e papel da rnesa atrás de minha cama.
É como se eu tivesse rompido uma veia, uma palavra seguia a
outra, colocava-se em seu lugar, surgiam as réplicas em meu
cérebro e eu gozava profundamente. Os pensamentos vinham-me
tão rapidamente e fluíam tão abundantemente que
eu perdia uma porção de detalhes delicados, porque o
meu lápis não podia andar tão depressa e entretanto
eu apressava-me, com a mão sempre em movimento sem perder um
minuto. As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe do
meu assunto.
Apolinaire afirmava que
os primeiros quadros de Chirico haviam sido pintados sob a influência
de distúrbios cinestésicos [enxaquecas e cólicas].
Tão ocupado estava eu com Freud nessa época e familiarizado
com os seus métodos de exame, pois eu também tivera
ocasião de praticar em doentes durante a guerra, que decidi
obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo
de fluência tão rápida quanto possível
sobre o qual o espírito crítico do sujeito não
emita nenhum julgamento e que não seja portanto, embaraçado
com nenhuma reticência e que seja tão exatamente quanto
o possível, "pensamento falado".
Parecia-me e ainda me parece que a maneira como me chegara a frase
do homem seccionado o comprovava; que a velocidade do pensamento não
é superior à da palavra e que ele não desafia
forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre.
Foi com estas disposições que Philippe Soupault, [a
quem eu comunicara estas primeiras conclusões] e eu começamos
a escrever, pouco nos importando com o que pudesse suceder literariamente.
A facilidade de realização fez o resto.
No fim do primeiro dia
podíamos ler umas cinquenta páginas obtidas por este
meio e começar a comparação dos nossos resultados.
No conjunto, os de Soupault e os meus, mostravam uma notável
analogia. O mesmo vício de construção, falhas
similares, mas também de cada lado, a ilusão de um estro
maravilhoso e muita emoção na escolha considerável
de imagens de uma tal qualidade que não teríamos sido
capazes de preparar uma só delas, mesmo com muito empenho.
Um pitoresco muito especial e de um lado e de outro, alguma proposição
de pungente burlesco. As únicas diferenças entre os
nossos dois textos pareceram-me corresponder essencialmente aos nossos
temperamentos recíprocos, [o de Soupault menos estático
que o meu] e se ele me permite esta leve crítica, ao fato de
ter sido ele a cometer o erro de distribuir, ao alto de certas páginas
e sem dúvida por espírito de mistificação,
algumas palavras à guisa de títulos. Em compensação,
devo-lhe a justiça de dizer que, opôs-se sempre com toda
energia, a qualquer retoque, à mínima correção
ao curso de toda a passagem desse gênero que me parecia até
então descabida. Tinha ele toda a razão nisso. É
com efeito muito difícil apreciar em seu justo valor, os diversos
elementos presentes, diga-se mesmo, é impossível aprecia-los
numa primeira leitura. A vós que escreveis, estes elementos
na aparência e que vos são tão estranhos quanto
a outro qualquer, naturalmente desconfiais. Falando poeticamente,
eles reconhecem-se sobretudo por um alto grau de absurdidade imediata,
sendo próprio desta absurdidade, num exame mais aprofundado,
dar lugar a tudo que há de admissível, de legítimo
no Mundo. A divulgação de um certo número de
propriedades e de fatos não menos objetivos, em suma, que todos
os outros.
Em homenagem a Guillaume
Apoilinaire, que morrera há pouco e que por diversas vezes
nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem
entretanto ter aí sacrificado os medíocres meios literários,
Soupault e eu designamos com o nome de Surrealismo o novo modo de
expressão pura, agora à nossa disposição
e com o qual estávamos impacientes para beneficiar os nossos
amigos. Creio não ser mais necessário, hoje, repisar
esta palavra e que a acepção em que a tomamos acabou
por prevalecer sobre a acepção "Apoilinaireana”.
Ainda com maior razão poderíamos ter-nos apossado da
palavra Super-Naturalismo, empregada por Gerard de Nerval na dedicatória
de "Filles de Feu". Com efeito, parece que Nerval possuiu
às mil maravilhas o espírito ao qual recorremos, enquanto
Apoilinaire não possuía senão a letra, ainda
que imperfeita do surrealismo, tendo sido incapaz de lhe traçar
um esboço teólico que valesse a pena. Eis duas frases
de Nerval, que acerca disso, me parecem bem significativas.
... Vou explicar-lhe, meu
caro Dumas, o fenômeno que V. Exa. citou acima. Como V. Exa.
sabe, há certos contistas que não podem inventar sem
se identificarem aos personagens da sua imaginação.
V. Exa. sabe com que convicção o nosso velho amigo Nodier
narrava em como tivera a desgraça de ser guilhotinado na época
da Revolução. Ficava-se de tal modo persuadido, que
queríamos saber, como conseguira ele recolocar a sua cabeça
de novo no sítio.
... E já que V.
Exa. teve a imprudência de citar um soneto composto neste estado
de devaneio onírico super naturalista, como diriam os alemães,
vai ouví-los a todos. Não são nada mais obscuros
do que a metafísica de Hegel ou as "Memoráveis"
de Swedenborg e perderiam encanto se fossem explicados. E se a coisa
fosse possível, concedam-me ao menos o mérito da expressão....
Só com muita fé
poderiam contestar-nos o direito de empregar a palavra Surrealismo
no sentido muito particular em que o entendemos, pois ficou claro
que antes de nós esta palavra não obteve êxito.
Defino-a pois, de uma vez por todas.
Surrealismo - Automatismo
psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente,
seja por escrito, seja de qualquer outra forma, o funcionamento real
do pensamento. Ditado seja o pensamento, na ausência de todo
o controle exercido pela razão, fora de toda a preocupação
estética ou moral.
O Surrealismo repousa sobre
a crença na realidade superior de certas formas de associações
desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no desempenho
desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos
os outros mecanismos psíquicos e a substituir-se a eles na
resolução dos principais problemas da vida. Deram testemunho
de Surrealismo Absoluto os Senhores: Aragon, Baron, Boiffard, Breton,
Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gerard, Limbour, Malkine,
Morise, Naville, Noll, Peret, Picon, Soupault e Vitrac. Parece que
são, até agora, os únicos e não haveria
engano, não fosse o caso apaixonante de Isidore Ducasse, sobre
o qual me faltam elementos. E certamente, não considerando
senão superficialmente os seus resultados, um bom número
de poetas poderiam passar por surrealistas, a começar por Dante
e nos seus melhores dias, Shakespeare. No curso das diferentes tentativas
de redução em que me empenhei, do que se chama por abuso
de confiança "o Gênio", nada encontrei que
se possa finalmente atribuir a outro processo que. Não seja
este.
- As "Noites"
de Young são surrealistas do começo ao fim. Infelizmente
é um padre que fala, mau padre sem dúvida, mas padre,
- Swift é surrealista
na maldade.
- Sade é surrealista
no sadismo.
- Chateaubriand é
surrealista no exotismo.
- Constant é surrealista
na política.
- Hugo é surrealista
quando não é parvo.
- Desbordes Valmore é
surrealista em amor.
- Bertrand é surrealista no passado.
- Rabbe é surrealista
na morte.
- Põe é surrealista
na aventura.
- Baudelaire é surrealista
no moral.
- Rimbaud é surrealista
na prática da vida e alhures.
- Mallarmé e surrealista
na confidência.
- Jarry é surrealista
no absinto.
- Nouveau é surrealista
no beijo.
- Saint-Pol-Roux é
surrealista no símbolo.
- Fargue é surrealista
na atmosfera.
- Vaché é
surrealista em mim.
- Reverdy é surrealista
na sua casa.
- Saint-John Persa é
surrealista à distância.
- Roussel é surrealista
na anedota.
Insisto, que eles nem sempre
são surrealistas, neste sentido que descubro neles um certo
número de idéias preconcebidas, às quais, bem
ingenuamente, eles se apegavam. Apegavam porque ainda não tinham
ouvido a "voz surrealista", a que continua a preqar à
véspera da morte e acima das tempestades, porque não
queriam servir somente para orquestrar a maravilhosa partitura. Eram
instrumentos soberbos demais e por isso nem sempre produziram som
harmonioso.
Nós, porém,
que não nos dedicamos a nenhum trabalho de filtração,
que fizemos das nossas obras os surdos receptáculos de tantos
ecos, modestos aparelhos registradores que não se hipnotizam
com o desenho traçado, talvez sirvamos uma causa mais nobre.
Assim devolvemos com probidade o "Talento" que nos atribuem.
Falem-me do talento deste metro de platina, deste espelho, desta porta
e do céu, se quiserem.
Não temos talento?
- Perguntem a: Philippe Soupault
"As manufaturas anatómicas
e as habitações baratas destruindo as mais importantes
cidades".
A Roger Vitrac
"Recém-invocara
eu o mármore-almirante [A Mesa de Mármore era um Tribunal
instalado no Palácio de Justiça em Paris, realizando
as suas sessões numa imensa mesa de mármore, que lhe
deu o nome. Era de sua alçada o julgamento de militares e a
sua jurisdição tinha três divisões. O almirantado,
as florestas e as águas e a área do condestável]
quando este se virou nos calcanhares corno um cavalo que se empina
diante da estrela polar e me. indicou no plano do seu chapéu
bicorne uma região onde eu devia passar a minha vida".
A Paul Eluard
"Conto uma história
bem conhecida e releio um poema célebre. Estou apoiado a um
muro, orelhas verdejantes e lábios calcinados".
A Max Morise
"O urso das cavernas
e a sua companhia que mia, o volante e seu valete ao vento, o grão-chanceler
com sua mulher, o espantalho e o seu amigo alho, a fagulha e a agulha,
o carniceiro e o seu irmão carnaval, o varredor com o seu tapa-olho,
o Mississipi e o seu sapo, o coral e o colar, o Milagre e o seu Santo,
por favor desapareçam da superfície do mar".
A Joseph Deiteil
"Ai de mim! Creio
na virtude das aves. E basta uma pena, para me matar de tanto rir!".
A Louis Aragon
"Durante uma interrupção
da partida, quando os jogadores reunidos, rodeavam a poncheira escaldante,
perguntei à árvore se ainda tinha a sua fita vermelha".
E a mim mesmo, que não
pude impedir-me de escrever as linhas repentinas e alucinantes, deste
prefácio.
Perguntem a Robert Desnos,
que dentre nós, foi talvez quem mais se aproximou da verdade
surrealista, aquele que, em obras ainda inéditas e ao longo
de múltiplas experiências as quais prestou, justificou
plenamente a esperança que eu depositava no surrealismo e me
intima a esperar muito dele ainda. Hoje em dia Desnos "fala surrealista
à discrição". A prodigiosa agilidade de
que ele dispõe para seguir oralmente o seu pensamento vale
nos, quanto nos apraz, discursos esplêndidos e que se perdem.
Desnos tem mais que fazer do que fixa-los. Ele lê em si, como
em livro aberto e nada faz para reter as folhas que se desvanecem
no vento da sua vida.
SEGREDOS DA ARTE MÁGICA
SURREALISTA
Composição surrealista escrita do primeiro ao último
impulso
Mande trazer com que escrever,
quando já estiver colocado no lugar mais confortável
possível para concentração do seu espírito
sobre si mesmo. Ponha se no estado mais passivo ou receptivo dos talentos
de todos os outros. Pense que a literatura é um dos mais tristes
caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido,
bastante depressa para não reprimir e para fugir à tentação
de se rever. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que
a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente/
pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil decidir
sobre a frase seguinte. Ela participa sem dúvida, a um só
tempo, da nossa atividade consciente e da outra [admitindo se que
o fato de haver escrito a primeira supõe um mínimo de
percepção]. Isto não lhe importa, aliás.
É a que reside, na maior parte, o interesse do jogo surrealista.
A verdade e que a pontuação se opõe, sem dúvida,
à continuidade absoluta do vazamento que nos interessa, se
bem que ela pareça tão necessária quanto a distribuição
dos nós numa corda vibrante. Continue enquanto lhe apraz. Confie
no caráter inesgotável do murmúrio. Se o silêncio
ameaça cair, por uma falta de inatenção, digamos,
que o leve a cometer um pequeno erro, não hesite em cortar
uma linha muito clara. Após uma palavra cuja origem lhe pareça
suspeita, ponha uma letra qualquer, a letra "ï" por
exemplo, sempre a letra "I" e restabeleça o arbitrário,
impondo esta letra como inicial à palavra que vem a seguir.
Para não mais se
aborrecer acompanhado
É difícil.
Não receba ninguém e às vezes quando ninguém
tiver forçado a sua porta para interrompê-lo em plena
atividade surrealista e cruzar os seus braços, pense: - É
igual, certamente há coisas melhores para fazei ou para não
fazer. O interesse da vida não se mantém? Simplicidade.
O que se passa em mim ainda me aborrece. - ou qualquer outra banalidade
revoltante.
Para fazer discursos
Fazer-se inscrever, na
véspera da eleição, na lista de candidatos a
um primeiro lugar que ache bom procedei a esse gênero de consulta.
Cada um tem em si o material da orador. Tangas multicores, vidrilhos
das palavras. Pelo surrealismo ele vai surpreender o desespero em
sua pobreza. Urna tarde, numa estrada, ele sozinho cortará
em pedaços o céu eterno, esta "Pele do Urso".
Vai prometer tanto, que se cumprir mesmo uma insignificância
será lima consternação. Dará as reivindicações
do povo toda uma entoação parcial e derrisória.
Obterá a comunhão dos mais irredutíveis adversários
num desejo secreto que acabará com as Pátrias. E conseguirá
isso apenas deixando-se exaltar com a palavra imensa que se derrete
em piedade e rola em ódio. Incapaz de um desalento, brincará
sobre o veludo de todos os desalentos. Será mesmo eleito e
as mais suaves mulheres o amarão com violência.
Para escrever falsos romances
Você, seja quem for,
se é do seu agrado, faça queimar algumas folhas de louro
e sem atiçar este fogo fraco comece a escrever um romance.
Você tem a permissão do surrealismo. Basta você
mudar a agulhei de Tempo bom e estável - para – Ação
- e a magia está feita. Eis aqui, personagens com atitudes
disparatadas. Os nomes deles em sua escriturei são uma questão
de maiúsculas e estarão tão à vontade
nos verbos ativos como na conjugação impessoal, os pronomes
estão subentendidos em expressões tais como: chove,
há, é preciso, etc. Eles vão comandá-lo,
por assim dizer, quando observação, à reflexão
e às faculdades de generalização que não
lhe tenham ajudado em nada. Esteja certo de que eles vão-
Retribuir-lhe mil intenções que você não
teve. Assim dotados de poucas características físicas
e morais, estes seres, que em verdade lhe devem tão pouco,
não se desviarão de urna certa linha de conduta, com
a qual você não precisa se incomodar. Daí resultará
uma intriga mais ou menos hábil na aparência, justificando
ponto por ponto esse desfecho comovente ou tranqüilo, ao qual
você não dá nenhuma atenção. O seu
falso romance imitará admiravelmente um romance verdadeiro.
Você ficará rico e todos concordarão em dizer
que você tem "algo na barriga", pois é aí
mesmo que este algo está.
Bem entendido, se por um processo análogo e à condição
de ignorar o que vai comentai, poderá aplicar-se com sucesso
falsa crítica. Ou, para se exibir a uma mulher qualquer que
passe na rua.
Contra a Morte
O surrealismo vai entrouxe-lo
na Morte, que é uma sociedade secreta. Ele vai enluvar a sua
mão, sepultando aí o "M" profundo por onde
começa a palavra Memória. Não deixe de tomar
felizes disposições testamentárias. Pela minha
parte, peço apenas que seja conduzido ao cemitério num
carro de mudanças*. E que os meus amigos destruam até
ao último exemplar, a edição do "Discurso
sobre o Pouco da Realidade".
*N.A. - Entenda-se como
viatura de transporte de mobílias.
A linguagem foi concedida
ao homem para fazer dela um bom uso surrealista. Na medida em que
lhe é indispensável fazer-se compreender, ele consegue,
bem ou mal, exprimir-se e assim assegurar o desempenho de algumas
funções mais banais. Falar, escrever urna carta, não
lhe oferecem nenhuma dificuldade real, desde que, fazendo o, ele não
se proponha a um objetivo acima da média, isto é, desde
que se limite a entreter [pelo prazer de entreter] alguém.
Ele não fica aflito com as palavras que virão, nem com
a frase que virá, terminada a sua. Ele será capaz de
respondei à queima-roupa a uma pergunta bem simples. À
falta de tiques contraídos no convívio com os outros,
ele pode opinar espontaneamente sobre alguns poucos assuntos. Para
isso não lhe é preciso antes contar até dez,
nem ter fórmulas preparadas. Quem poderá tê-lo
convencido de que esta faculdade de falar logo a primeira só
serve para desserví-lo, quando ele se propõe estabelecer
ligações mais delicadas? Ele não deve recusar-se
a falar ou escrever de improviso sobre nada. Ouvir, ler, não
tem outro efeito senão o de suspender o oculto, o admirável
auxílio. Não conto para me compreender [Chega! Sempre
me compreenderei!]. Se esta ou aquela das minhas frases me traz na
hora urna leve decepção, confio na frase seguinte para
redimí-la, tornando cuidado para não recomeça-la
ou aperfeiçoá-la. A mínima perca de ímpeto
ser-me-á fatal. As palavras, os grupos de palavras que se sucedem
exercem entre si a maior solidariedade. Não me compete favorecer
estas em detrimento daquelas. Quem deve intervir é urna miraculosa
compensação. E ela intervém.
Não só esta
linguagem sem reservas, que procuro tornar sempre válida e
que me parece adaptar-se a todas as circunstâncias da vida,
não só esta linguagem não me desfalca nenhum
dos meus recursos, mas ainda me confere uma extraordinária
lucidez, justo no domínio, onde eu menos esperava dela. Posso
até sustentar que ela me instrui e com efeito já me
aconteceu utilizar surrealmente palavras cujo sentido, eu, esquecera.
Pude verificar depois que o uso feito por mim correspondia exatamente
à sua definição. Isto poder-me-ia fazer crer
que não se "aprende" e que sempre se "reaprende".
Há expressões felizes com as quais assim me familiarizei.
E não me referia à "consciência poética
dos objetos que só pude adquirir pelo seu contato espiritual
mil vezes repetido".
É ainda ao diálogo,
que as formas da linguagem se adaptam melhor. Aí, dois pensamentos
se confrontam; enquanto um ser se revela o outro ocupar-se-á
com ele. Mas como? Supor que o incorpore a si seria admitir que certo
tempo lhe é possível viver inteiramente deste outro
pensamento, coisa muito improvável. De fato, a atenção
que lhe é dada é toda exterior. Só tem ensejo
de aprovar ou de desaprovar, geralmente desaprovar, com toda a deferência
de que o homem é capaz. Este modo de linguagem não permite,
aliás, chegar ao fundo de um assunto. A minha atenção
é vítima de uma solicitação que não
pode decentemente repelir e trata o pensamento alheio como inimigo.
Na conversação usual ela censura o quase sempre pelas
palavras e pelas figuras de que se serve. Ela põe-me em condições
de tirar partido delas, desnaturando-as. Isto é tão
verdade que em certos estados mentais patológicos, onde os
distúrbios sensoriais afetam toda a atenção do
doente, limita-se este, que continua a responder às perguntas,
a pegar na última palavra pronunciada junto dele ou no último
grupo de frases surrealistas que deixou algum vestígio em seu
espírito.
- Que idade você
tem?
Tem! *
- Como você se chama?
- Quarenta e cinco casas!
**
* Ecolalia, define um estado
mental marcadamente repetitivo.
** Síndroma de Ganser, ou o síndroma das respostas absurdas.
Não há conversa
onde não entre algo desta desordem. O esforço de sociabilidade
aí reinante e a nossa grande prática é que nos
disfarçam esse fato, mas por pouco tempo, também e de
grande fraqueza o livro entrar sempre em conflito com seus melhores
leitores, quero dizer, com os mais exigentes. No pequeníssimo
diálogo que acima improvisei, entre o médico e o alienado,
é este aliás, quem leva alguma vantagem, pois as suas
respostas impõem-o-no atenção do médico
examinador. E é isso, ser o mais forte? Talvez. Este ao menos
tem a liberdade de não se importar com o seu nome nem com a
sua idade.
O surrealismo poético,
ao qual consagro este estudo, dedicou-se até agora a restabelecer
o diálogo na sua verdade absoluta, isentando os dois interlocutores
das obrigações de cortesia. Cada um deles simplesmente
prossegue em seu solilóquio, sem procurar tirar daí
um prazer dialético particular e nem se impor ao seu vizinho,
de forma alguma. Os conceitos emitidos na conversa não visam,
como geralmente, o desenvolvimento de uma tese, tão insignificante
quanto se queira. Eles são tão desafetados quanto possível.
Quanto a resposta que reclamam, ela é, em princípio,
totalmente indiferente ao amor próprio de quem falou. As palavras,
as imagens não se oferecem senão como trampolim ao espírito
de quem escuta. É dessa forma que devem apresentar-se em "Lês
Champs Magnétiques" [a primeira obra puramente surrealista]
as páginas reunidas sob o titulo de "Bairrières"
nas quais Soupault e eu nos mostramos como esses interlocutores imparciais.
O Surrealismo não
permite àqueles que se entregam a ele que o abandonem a seu
bel prazer. Tudo leva a crer que ele atue no espírito como
os estupefacientes. Como eles, cria um certo estado de dependência
e pode impelir o homem a revoltas terríveis. Também
é, se quiserem, um paraíso artificial pelo prazer que
nele se tem. Assim como também a análise dos misteriosos
efeitos e dos gozos particulares que ele pode produzir. Em muitos
aspectos o surrealismo aparece como um vício novo, que não
deve ser apanágio de alguns homens apenas. Como o haxixe, ele
pode satisfazer todos os dedicados e urna tal análise não
poderia faltar neste estudo.
Passa-se com as imagens surrealistas o mesmo que com as imagens do
ópio, não mais evocadas pelo homem, mas que se lhe oferecem»
espontaneamente e despoticamente. Não se pode mandá-las
embora, porque a vontade não tem força e não
governa mais as faculdades.
Resta saber se alguma vez se "evocou" tais imagens. Se a
pessoa se apóia, corno eu taco, na definição
de Reverdy, não parece possível aproximar voluntariamente
do que ele chama de "duas realidades distintas". A aproximação
ou se faz ou não se faz, eis tudo. Nego, pela minha parte e
da maneira mais formal/ imagens de Reverdy tais com:
No regato corre uma canção...
ou;
O dia desdobrou-se como
uma toalha branca...
O mundo esconde-se num
saco. Ofereçam o mínimo grau de premeditação,
Considero falso pretender que o espírito discerniu as relações
das duas realidades em presença. Para começar, nada
é discernido conscientemente. É da aproximação,
por assim dizer, fortuita dos dois termos que emana uma luz especial,
a luz da imagem, à qual somos infinitamente sensíveis.
O valor da imagem depende da beleza da centelha obtida. E, por conseguinte,
função da diferença de potencial entre os dois
condutores. Se esta diferença mal existe como na comparação,
a centelha não se produz. Ora, não está, a meu
ver, em poder dei homem combinar a aproximação de duas
realidades tão distantes. O princípio da associação
de idéias, tal como o concebemos, opõe-se a isso. Ou
então, seria preciso voltar a uma arte elíptica, condenada
por Reverdy, como também por mim. E forçoso, portanto,
admitir que os dois termos da imagem não são deduzidos
um do outro pelo espírito em visto da centelha a produzir,
que eles são os produtos simultâneos da atividade que
denomino surrealista, limitando-se a razão a constatar e a
apreciar o fenómeno luminoso.
E assim, como a centelha
que aumenta quando produzida através de gazes rarefeitos, a
atmosfera surrealista criada pela escrita mecânica, que fiz
questão de colocai ao alcance de todos, presta-se especialmente
à produção das mais belas imagens. Pode-se dizer
até que as imagens aparecem nesta corrida vertiginosa como
os guiões únicos do espírito, Aos poucos o espírito
convence-se da suprema realidade das imagens. Limitando-se no começo
a prestar-lhes a sugestão e logo que ele se aperceba que lhe
lisonjeiam a razão, aumenta o seu conhecimento. Ele toma conhecimento
dos espaços ilimitados onde se manifestam os seus desejos,
onde se reduzem sem cessar o pró e o contra e onde a sua obscuridade
não o atraiçoa. Ele vai, conduzido por estas imagens
que o seduzem e que apenas lhe dão tempo para soprar os dedos
queimados. É a mais bela das noites, a noite dos fulgores.
Perto dela, o dia é a noite.
Os tipos inumeráveis
de imagens surrealistas reclamariam uma classificação,
que por ora não me disponho a tentar. Agrupá-los conforme
as suas afinidades particulares levar-me-ia para longe. Pretendo levar
em consideração e essencialmente, a sua virtude comum.
Não escondo, que para mim, a mais forte é a que tem
o mais elevado grau de arbitrário. A que exige mais tempo para
ser traduzida em linguagem práctica, seja por contei urna enorme
dose de contradição aparente, seja por ficar com urn
dos seus termos curiosamente disfarçado. Seja por se apresentar
como sensacional e pareça se desenlaçar pouco [fechando
bruscamente o ângulo do seu compasso], seja porque retira dela
mesma uma justificação formal derrisória. Seja
por ser de ordem alucinatória, seja por atribuir com naturalidade
ao abstraio a máscara do concreto ou o inverso. Seja por implicar
a negação de alguma propriedade física elementar
ou seja por provocar o riso. Eis, por ordem, alguns exemplos:
- O rubi do champanhe.
Lautreamont
- Belo, corno a lei parada
do desenvolvimento do peito nos adultos, cuja propensão ao
crescimento, não tem relação com a quantidade
de moléculas assimiladas pelo seu organismo. Lautreamont
- Uma igreja erguia-se,
estrepitosa, como um sino. Philippe Soupault
- No sonho de Rose Sélavy,
um anão surgido de um poço, com um ar soturno, vem comer
o seu pão com o rapaz do horário noturno. Robert Desnos
- Sobre a ponte, o orvalho
com cara de gata, embalava-se, André Breton
- Um pouco à esquerda,
no meu firmamento imaginado, vislumbro. Será apenas uma névoa
de sangue e morte ou o brilhante fosco, das perturbações
da liberdade. Louis Aragon
- Na floresta abrasada.
Roger Vitrac.
- A cor das meias de uma
mulher, não está obrigatoriamente à imagem dos
seus olhos, o que fez um filósofo [inútil nomeá-lo]
dizer: "Os cefalópodes têm mais razão que
os quadrúpedes, para odiar o progresso". Max Morise
1.° Quer se queira
quer não, há aqui matéria para satisfazer as
várias exigências do espírito.
Todas estas imagens parecem comprovar que o espírito está
maduro para outra coisa, diferente das benignas alegrias a que ele
geralmente se concede. É a única maneira que ele tem
de fazer virar a seu favor a quantidade ideal de acontecimentos de
que está carregado. Estas imagens dão-lhe a medida da
sua dissipação ordinária e dos movimentos resultantes.
As frases que citei providenciam bastante para isso. Saboreando-as,
o espírito tira dessas frases a certeza de estar no caminho
certo. Para ele próprio, não poderia condenar-se por
argúcia. Nada tem a temer, pois além de tudo, ele sente-se
capaz de alcançar o todo.
2.° O espírito
que mergulha no surrealismo revive com exaltação a melhor
parte da sua infância. Para ele é um pouco como a certeza
de quem, a ponto de morrei afogado, repassa em menos de um minuto
todo o insuperável de sua vida. Dirão que e muito animador.
Mas, não faço questão de animar, quem isso me
diz. Das recordações de infância e de algumas
outras, vem um sentimento de não abarcado e de desencaminhado,
que considero o mais fecundo que existe. Talvez seja a infância
que mais se aproxima da vida verdadeira. A infância, além
da qual, o homem só dispõe do seu salvo- conduto e de
alguns bilhetes de favor. A infância onde tudo concorria entretanto
para a posse eficaz e sem os acasos, de si mesmo. Graças o
surrealismo, parece-me que estas chances voltam. É como se
a pessoa ainda corresse para a sua salvação, ou a sua
perda. Revive-se, na sombra, um terror precioso nas Graças
de Deus e do Purgatório. Atravessa-se em sobressalto, o que
os ocultistas chamam de paisagens perigosas. Os meus passos suscitam
monstros que os espreitam. Eles não estão ainda muito
mal-intencionados a meu respeito e não estou perdido, pois
temo-os. Eis, os elefantes com cabeça de mulher e os leões
voadores, que Soupault e eu, ainda há pouco, tremíamos
de medo de encontrar. Eis o "peixe solúvel" que ainda
me assusta um pouco. Peixe Solúvel, não serei eu o peixe
solúvel. Nasci sob o signo de Peixes e o homem; é solúvel
em seu pensamento! A fauna e a flora do surrealismo são deveras
inconfessáveis.
3.° Não creio
que esteja próximo de se estabelecer qualquer decalque surrealista.
Os caracteres comuns a todos os textos do gênero entre os quais
aqueles que acabo de assinalar e muitos outros que só poderíamos
entender com a análise gramatical e lógica cerradas,
não se opõem a uma certa evolução da prosa
surrealista no tempo. Vindo depois de inúmeros ensaios aos
quais nesse sentido me dedico há cinco anos e de que tenho
a fraqueza de julgar extremamente desordenados pela sua maior parte,
as historietas que formam a sequência deste volume, trazem-me
uma prova flagrante disso mesmo. Mas, nem por isso as considero mais
dignas de figurar aos olhos do leitor que os benefícios do
subsídio surrealista que ésusceptível de fazer
a sua consciência realizar.
Os meios surrealistas reclamariam,
aliás, uma ampliação. Tudo é bom para
obter de certas associações a desejável subitaneidade.
Os papéis colados de Picasso e de Braque têm o mesmo
valor que a introdução de um lugar-comum num desenvolvimento
literário ao estilo mais castiço. É até
mesmo permitido intitular de "Poema" o que se obtém
por uma agregação tão gratuita quanto possível.
Observemos por favor, a sintaxe, de. títulos e fragmentos de
títulos recortados dos jornais:
Nota do Autor - Seguiam-se
uma série de recortes de Jornais, que compunham o seguinte
poema:
Um sorriso
de safira na ilha de Ceilão
As mais belas palhas
Têm a cor esmaecidas
Na prisão
Numa fazenda isolada
No dia-a-dia
agrava-se
O agradável
Um caminho sinuoso
vos conduz ao desconhecido
O Café
roga por si mesmo
o artesão quotidiano
da vossa beleza
Senhora,
um par
de meias de seda
não é
Um salto no vazio
Um cervo
Antes de tudo o amor
Tudo poderia acabar tão
bem
Paris é uma grande
aldeia
Vigiai
O fogo incubado
a oração
Sabei que
Os raios ultravioleta
Terminaram o seu trabalho
bom e rápido
O primeiro jornal branco
do acaso
vermelho será
O cantor errante
Onde estará?
na memória
em sua casa
No baile dos ardentes
Faço dançando
O que se fez, o que se
fará
E os exemplos poderiam
ser multiplicados. O teatro, a filosofia, a ciência e a crítica
ainda conseguiriam encontrar-se aí. Quero já dizer,
que as futuras técnicas surrealistas não me interessam.
Bem mais graves parecem-me
ser, e já suficientemente o dei a entender, as aplicações
do surrealismo à ação. Claro, não creio
na virtude profética da palavra surrealista. O que digo é
puro oráculo. Sim, enquanto eu o quiser. Mas o que é
este mesmo este oráculo? A devolução dos homens
não me engana. A voz surrealista que sacudia Cumes, Dodona
e Delfos não é senão a que me dita os meus discursos
menos irados. O meu tempo não deve ser o seu, então
porque iria ela ajudar-me a resolver o problema infantil do meu destino?
Finjo e por desgraça, agir num mundo em que para se chegar
a ter em consideração as suas sugestões, seria
obrigado a passar por dois tipos de intérpretes. Uns para me
traduzirem as suas proposições. Outros, impossíveis
de encontrar, para impor aos meus semelhantes a compreensão
que eu dele teria. Este mundo no qual eu suporto [e o que eu suporto,
não queiram saber]. Este mundo moderno, onde afinal, que diabo
querem que eu faça nele? A voz surrealista calar-se talvez,
perdi a conta dos desaparecimentos. Não entrarei nem mais um
pouco, na discriminação maravilhosa dos meus anos e
dos meus dias. Serei como Nijinski, que conduzido no ano passado ao
Ballet Russo, não compreendeu a que espetáculo assistia.
Estarei só, bem só em mim, indiferente a todos os ballet
do mundo. O que eu fiz, a Vós, tudo vos deixo.
Desde logo, dá-me
uma grande vontade de considerar com indulgência os devaneios
científicos, afinal de contas e a tantos respeitos, tão
inconvenientes. Não veio mal nisso.
'Cinema?' Bravo! Para as salas escuras. 'Guerra?’ - Bem, o que
nós nos ríamos, 'telefone?'
Alo?... Sim! 'Mocidade?' - Encantadores sem os cabelos brancos. Procurem
fazer me dizer:
Obrigado! Obrigado, Obrigado...
Se o vulgo dá valor ao que é, propriamente e falando,
pesquisa de laboratório, é o que levou ao lançamento
de uma máquina, à descoberta de um soro, com os quais
o vulgo se acha diretamente interessado. Ele não duvida, quiseram
melhorar a sua sorte. Não sei quanto entra exatamente no ideal
dos sábios de votos humanitários, mas não me
parece que isto tudo constitua um grande ato de bondade. Falo, bem
entendido, dos verdadeiros sábios e não dos vulgarizadores
de toda ordem que se fazem entregar por um certificado. Creio que
neste domínio corno num outro, a pura alegria surrealista do
homem é que, advertido pelo fracasso sucessivo de todos os
outros, não se dá por vencido. Parte de onde quer e
por um caminho qualquer que não é o razoável,
chega aonde pode. Tais ou tal imagem, com que ele julgará oportuno
balizar a sua marcha e que talvez valer-lhe-á o reconhecimento
público, posso confessar que me é indiferente em si.
O material com o qual ele precisa de se atravancar, tão pouco
me impressiona: os seus tubos de vidro, as suas peças metálicas...
Quando ao seu método, para mim, troco pelo que vale o meu.
Vi em ação o inventor do reflexo cutâneo a plantar:
manipulava sem descanso os seus pacientes e o que praticava era bem
outra coisa que não um exame. Estava claro, que ele não
confiava em mais nenhum plano. Daqui e dali, formulava uma observação
de modo distante, sem pôr de lado a sua agulha, enquanto o seu
martelo batia sempre. O tratamento dos doentes, isso deixava-o ao
cuidado de outros, essa tarefa fútil. Estava possuído
dessa febre sagrada. O surrealismo, tal como o encaro, declara bastante
bem o nosso "nâo-conformismo" absoluto, para que possa
ser discutido e trazê-lo no processo, ao mundo real. Como testemunho
de defesa. Ao contrário, ele só pode justificar o estado
completo de distração da mulher em Kaint, a distração
das uvas em Pasteur e a distração dos veículos
em Curie, que são a esse respeito, profundamente sintomáticos.
Este mundo só está relativamente à altura do
pensamento e os incidentes deste gênero são apenas os
episódios, até aqui mais marcantes, de uma guerra de
independência, da qual tenho o orgulho de participar. O surrealismo
é o "raio invisível" que um dia nos fará
vencer os nossos adversários. Não mais temerás,
vil carcaça. Neste Verão, as rosas são azuis
e a madeira é de vidro. A Terra envolta no seu esplendor faz-me
tão pouco efeito, quanto um qualquer fantasma.
VIVER E DEIXAR DE VIVER
É QUE SÃO SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS.
A EXISTÊNCIA ESTÁ EM ALGUM OUTRO LUGAR.
André Breton - 1924