A QUESTÃO DA ÁGUA NA AMÉRICA LATINA
Roberto Malvezzi
1) A QUESTÃO GERAL
Estamos em meio a uma profunda crise civilizatória. O modelo
civilizatório ocidental, alicerçado na exploração de seres humanos por
outros seres humanos e na intensa exploração da natureza por uma restrita
elite mundial, já não tem mais sustentação. Dos seis mil milhões de
pessoas que habitam a face do planeta, apenas 1,7 mil milhões pertence ao
modo consumista e predador da civilização contemporânea. Para sustentar os
caprichos dessa elite mundial são necessárias 1,5 Terras para alguns, ou
até seis Terras para outros. Essa elite não está apenas no primeiro mundo,
mas também tem seus nichos no segundo, terceiro e quarto mundo. Estender
esse modelo de produção e consumo a todos os seres humanos é impossível,
pelos próprios limites desses bens em nosso planeta. Para sustentar esse
modelo o maior tempo possível para uma elite restrita, é preciso
restringir o acesso dos demais a esses bens. O melhor mecanismo para
selecionar os incluídos do modelo é aplicar as regras do mercado a todas
as dimensões da existência. Quem puder comprar, entra. Quem não puder está
posto de fora.
A consciência dos limites do planeta começou surgir
a partir da década de 60, mas aprofundou-se na década de 70 e
generalizou-se a partir da década de 80. A Cúpula Mundial do Meio Ambiente
no Rio de Janeiro consagrou a questão ambiental como fundamental para o
destino da humanidade e do planeta Terra.
Coincide com a tomada de
consciência dos limites do planeta e implantação mundial do
neoliberalismo. Não foi por acaso. A elite mundial percebeu os limites do
planeta e que seu "modus vivendi" não poderia jamais ser estendido a toda
a humanidade. Então criou um mecanismo para estabelecer um "limite
natural" aos que têm acesso aos bens e os que jamais o terão, isto é,
aprofundou e tenta estender para todas as dimensões da vida as regras do
mercado. Assim, através das regras do mercado, a elite mundial reservou
para si os bens que antes também tinha destinação universal. Entre eles
está a água.
A regra número um do mercado é transformar todos os
bens em mercadoria. Nesse sentido, o mundo passa hoje pela disputa dos
últimos bens da natureza que ainda não foram privatizados. São muito
poucos: restavam ainda a própria vida, água, sol e ar. A vida está sendo
privatizada através do patenteamento de sementes, princípios ativos de
plantas e pelo avanço da ciência na própria genética humana. O sol e o ar
ainda não descobriram mecanismos de privatização. Mas a privatização dos
solos, da água e da biodiversidade segue a passos largos em todo o
planeta.
2) A QUESTÃO DA ÁGUA
A
privatização da água não se dá ao acaso, ou de forma dispersa. Ela passa
pela elaboração de grandes estratégias, mapeando a abundância da água nas
regiões do planeta e construindo planos que, ao longo prazo, permitam a
apropriação privada desse bem em escala mundial. Vamos citar aqui
rapidamente os planos que existem desde o Canadá até o sul do continente
latino americano, para termos uma idéia mínima do que está sendo
estrategicamente pensado. Por trás desses planos estão sempre grandes
empresas transnacionais, a intermediação dos organismos multilaterais como
Bird, Banco Mundial e FMI, sempre em articulação com os governos e elites
locais dispostas a transferir o patrimônio público para empresas privadas.
Normalmente esses planos visam investimentos em infra-estrutura.
Posteriormente, pelos tratados de livre comércio, seja em nível
continental como a Alca, ou tratados bilaterais (Os TLCs - Tratados de
Livre Comércio), essas infra-estruturas acabam privatizadas.
2.1 - Plano "Puebla Panamá" na América Central. O Plano é
um conjunto de grandes projetos de investimento em infra-estrutura,
transporte, comunicações, energia, turismo e outras obras em países da
América Central e nos estados do sul do México. Abrange Puebla, Veracruz,
Guerrero, Oaxaca, Chiapas, Tabasco, Campeche, Yucatán, Quintana Rôo,
Belize, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Panamá.
Vai desde Puebla, México, até o Panamá. Através de ferrovias, rodovias,
portos, comunicações e uma rede elétrica que permita interligar e explorar
o potencial hidroelétrico de toda região, puxando energia na direção do
norte. Fundamentalmente visa facilitar o acesso aos bens naturais da
região, criar facilidades para escoamento dos produtos do México e Estados
Unidos, controlar os guerrilheiros da região e controlar as migrações.
Um dos objetos principais de cobiça é a água. Só o estado de
Chiapas, com forte presença da guerrilha, contém 40% de toda água doce do
México. Mas a América Central é toda rica em água doce. Uma série de
empresas transnacionais, interessadas nessa água, tem se instalado na
região, principalmente cervejarias, inclusive a Ambev com uma fábrica na
Guatemala e outra na República Dominicana.
Há também um potencial
hidroelétrico fantástico. Só no México está prevista a construção de 25
novas barragens o que poderá remover cerca de oito milhões de indígenas
dos 10 milhões que habitam essas regiões.
2.2 - IIRSA
(Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional da América do
Sul). Por hora é mais uma concepção estratégica que uma realidade.
Também se planeja corredores industriais, hidrovias, rodovias que conectem
os lugares mais recônditos de toda a América Latina, inclusive a região
amazônica, onde estariam 20% de toda água doce do mundo.
Mas não é
apenas a Amazônia que é rica em água doce. Toda bacia do Prata é também
rica em água doce, considerada a segunda do mundo, logo depois da
Amazônica. É nessa região também que está o Aqüífero Guarani, um mar
subterrâneo de água doce. Os principais interessados são as empresas
engarrafadoras de água e as fabricantes de bebidas que demandam muita
água.
No Brasil dispensa comentários o plano estratégico no Estado
Brasileiro para a construção de barragens. É também do conhecimento comum
que hoje a construção de barragens foi repassada para as empresas
privadas, o que têm acarretado mais problemas para os atingidos por
barragens, que agora têm que negociar com particulares e não mais com o
governo.
2.3 - NAWAPA (North American Water and Power
Alliance). Esse é um plano dos americanos do Norte. Pretende desviar
vastos recursos de água do Alaska e do Oeste do Canadá para os Estados
Unidos. Esse é o plano de infra-estrutura. O plano de livre comércio da
região é o Nafta. Já existem problemas sérios na exploração das águas
canadenses pelos Estados Unidos.
Nos dias atuais, quando toda
riqueza natural do planeta já está mapeada, os colossais interesses
privados não têm dificuldades de armar suas estratégias. Quando se trata
da disponibilidade de solos, água doce e biodiversidade, as Américas,
principalmente a Central e do Sul, estão necessariamente incluídas em
qualquer grande estratégia, exatamente pela abundância que possuem desses
bens imprescindíveis para o futuro da humanidade e da vida no planeta.
3) O NOVO DISCURSO SOBRE A ÁGUA
O
discurso sobre a água mudou rapidamente nos últimos anos. O bem abundante
e sem valor, "insípido, inodoro e incolor", rapidamente tornou-se "ouro
azul, escasso, dotado de valor econômico, objeto de cobiça, fator de
guerras entre as nações". Esse discurso não é ingênuo, e exige um difícil
discernimento para distinguir o que é realidade e o que são os interesses
daqueles que o produzem.
Em primeiro é necessária a distinção
entre água e recursos hídricos. Água é um bem da natureza que está no
planeta há mil milhões de anos. É o ambiente onde surgiu a vida e
componente de cada ser vivo. Por isso, o supremo valor da água é o
biológico. Recurso hídrico é a parcela da água usada pelos seres humanos
para alguma atividade, principalmente econômica. Portanto, água é um
conceito muito mais amplo que recurso hídrico, embora sejam
indissociáveis.
A questão é que o uso da água hoje é muito mais
intenso que em algumas décadas atrás. Hoje, a média mundial é que da água
doce utilizada, 70% destinam-se para agricultura, 20% para indústria e 10%
para o consumo humano. Esse uso intenso da água, principalmente na
agricultura e na indústria, ocorre num ritmo mais acelerado que a
reposição feita pelo ciclo natural das águas. Dessa forma, muitos
mananciais estão sendo eliminados pelo sobre uso que deles se faz. Pior,
ao devolver a água para seu ciclo natural, ela vem contaminada pelos
agrotóxicos da agricultura e pela química da indústria. A falta de
saneamento ambiental, sobretudo em países pobres, colabora para a
contaminação dos mananciais. Em conseqüência, hoje no planeta, segundo a
ONU, 1,2 mil milhões de pessoas não têm acesso à água potável e 2,4 mil
milhões não têm acesso ao saneamento. O impacto na saúde humana e no meio
ambiente é uma tragédia. Portanto, a chamada "crise da água" é de
quantidade e qualidade, não por razões naturais, mas pelo uso
irresponsável que o ser humano dela faz. Agrava-se ainda mais essa
situação quando a ambição, visando usos futuros privados da água, também a
privatiza. A escassez produzida então passa a ser quantitativa, ou
qualitativa, ou social, ou em todos esses níveis simultaneamente.
O crescimento populacional ajuda agravar a situação. Nesse
sentido, a crise da água é progressiva. A posição da ONU é clara, ou se
muda o modo de gestão das águas, ou essa será pior crise que a humanidade
já enfrentou em sua história sobre o planeta.
Sem dúvida a chave
da questão está no intenso uso agrícola e industrial da água. A água ainda
é usada para navegação, pesca, geração de energia elétrica, uso doméstico
em geral, além de outros. É o chamado "uso múltiplo da água". Porém,
quando se constata que 70% em média vai para a agricultura, é preciso se
perguntar que agricultura é essa que consome água em tamanhas proporções
que chega a desequilibrar o próprio ciclo das águas. É uma agricultura de
primeira necessidade, ou é uma agricultura que visa produzir
permanentemente bens que na verdade são sazonais, consumidos por uma
restrita elite mundial? Essa resposta é variada e depende de país para
país. Na Ásia a produção de arroz é um bem fundamental. No Brasil, na
região do Vale do São Francisco, a água é usada para produção de frutas
para exportação, ou até mesmo para irrigar cana para produção de álcool e
açúcar. O etanol, que move carros no Brasil e na Europa, pode ser visto
como um combustível limpo, desde que não se perceba a água embutida em sua
produção. A Transposição do rio São Francisco para o Nordeste Setentrional
visa, sobretudo, a produção da camarões em cativeiro e a fruticultura
irrigada.
O conceito de escassez, introduzido como fundamento
econômico pelos neoclássicos, agora também é aplicado na questão da água.
Para esses pensadores, um produto tem mais valor econômico quanto mais
escasso ele for. Por conseqüência, aplicar o conceito de "escassez" à água
tem uma clara conotação ideológica dos princípios liberais dos
neoclássicos. Entretanto, no tocante à água, sua escassez quantitativa e
qualitativa não é uma questão natural, mas produzida pela mão humana.
Portanto, pode ser evitada. A própria ONU afirma que a crise da água é
mais uma questão de gerenciamento que de escassez.
Um dos
argumentos utilizados para justificar a escassez da água é que 97,6% das
águas do planeta são salgadas e apenas 2,4% são água doce. O quadro abaixo
nos dá uma visão detalhada da distribuição da água no planeta.
QUADRO DAS ÁGUAS
LOCALIZAÇÃO |
VOLUME (1.000 km 3 ) |
% |
Renovação |
Oceanos |
1.464.000 |
97,6 |
37.000 anos |
Massas Polares |
31290 |
2,086 |
16.000 anos |
Rochas Sedimentares |
4371 |
0,291 |
300 anos |
Lagos |
255 |
0,017 |
1 a 1000 anos |
Solo e Subsolo |
67 |
0,004 |
280 dias |
Atmosfera |
15 |
0,001 |
9 dias |
Rios |
1,5 |
0,0001 |
6 a 20 dias |
Entretanto, a natureza é sábia e até poucas décadas atrás
nunca faltou água para nenhuma forma de vida, sejam aquelas que dependem
da água salgada, sejam aquelas que dependem da água doce. Mais uma vez, o
problema não é da natureza, mas da ação humana sobre ela. A água é um bem
natural renovável, e o ciclo das águas, desde que respeitado em seu ritmo,
repõe os mesmos volumes de água doce e salgada há muitos milhões de anos.
A crise da água, portanto, tem que ser focada na sua questão chave, isto
é, o modo como o ser humano vem gerenciando a parcela de água que utiliza.
Certamente um novo gerenciamento imporá limites ao desperdício e ao luxo.
Classificação de disponibilidade da água segundo a ONU (1997)
Estresse de água |
inferior a 1.000 m 3 /hab/ano |
Regular |
1.000 a 2.000 m 3 /hab/ano |
Suficiente |
2.000 a 10.000 m 3 /hab/ano |
Rico |
10.000 a 100.000 m 3 /hab/ano |
Muito rico |
mais de 100.000 m 3 /hab/ano |
Vale ressaltar que o Banco Mundial tem outro padrão para
o estresse, isto é, abaixo de 2.000 m³ por pessoa por ano para todos os
usos. Entretanto, especialistas acham essa referência baseada no padrão de
consumo dos Estados Unidos é insustentável. Portanto, é lógica a opção
para trabalhar com os padrões da ONU.
4) A ÁGUA
NA AMÉRICA LATINA
4.1 - Há um detalhe nessa reflexão.
Mesmo havendo água suficiente para todas as formas de vida, desde que
gerenciadas com sustentabilidade, há distribuição desigual da água doce
sobre o planeta. Os países mais pobres de água sofrem com sua escassez
particular. Na outra ponta, continentes inteiros, dentro deles alguns
países, têm abundância de água doce. É o caso do continente latino
americano, particularmente alguns países.
Para exemplificar, o
Peru é um país que está situado no parâmetro de "suficiente". Sua
disponibilidade per capta de água hoje é de aproximadamente 1.790 m³ por
ano. Entretanto, a projeção é que no ano de 2025 sua disponibilidade caia
para 980 m³ por pessoa por ano. Deixaria de estar na faixa de suficiente
para a situação de estresse.
Já países como Brasil, Bolívia,
Colômbia, Venezuela, Argentina e Chile situam-se no parâmetro de países
"ricos", isto é, tem entre 10.000 e 100.000.000 m³/pessoa/ano. Já a Guiana
Francesa situa-se na faixa dos "muito ricos", isto é, acima de 100.000
m³/pessoa/ano.
4.2 - Além disso, esse é um continente
privilegiado no regime das chuvas. A intensa precipitação de águas
meteóricas sobre o continente, mesmo com intensa média de evaporação,
produz um grande excedente hídrico. Mais uma vez é necessário considerar
os detalhes dentro do continente e dos países. Por exemplo, Lima no Peru
nunca chove. Entretanto, as águas que descem dos Andes abastecem a capital
peruana.
Basta compararmos o volume de nossas águas com países
onde realmente ela é escassa para termos uma noção da abundância que
temos.
País |
Disponibilidade m³/hab./ano |
Kuwait |
Praticamente nula |
Malta |
40 |
Qatar |
54 |
Gaza |
59 |
Bahamas |
75 |
Arábia Saudita |
105 |
Líbia |
111 |
Bahrein |
185 |
Jordânia |
185 |
Singapura |
211 |
Texto Base "Água, Fonte de
Vida"
4.3 - Precipitação nos continentes:
Região |
Precipitação mm/ano |
km³/ano |
Evapotranspiração mm/ano |
km³/ano |
Excedente mm/ano |
km³/ano |
Europa |
700 |
8,290 |
507 |
5,230 |
283 |
2,970 |
Ásia |
740 |
32,200 |
416 |
18,100 |
324 |
14,100 |
África |
740 |
22,300 |
587 |
17,700 |
153 |
4,600 |
América do Norte |
756 |
18,300 |
418 |
10,100 |
339 |
8,180 |
América do Sul |
1,600 |
28,400 |
910 |
16,200 |
685 |
12,200 |
Austrália e Oceania |
791 |
7,080 |
511 |
4,570 |
280 |
2,510 |
Antártica |
165 |
2,310 |
0 |
0 |
165 |
2,310 |
Totais |
800 |
119,000 |
485 |
72,000 |
315 |
47,000 |
4.4 -
Nossos rios também são abundantes. As Bacias Hidrográficas tornaram-se
hoje a referência fundamental para a gestão das águas. É um modelo
francês, mas que tem pertinência. O Brasil, por exemplo, foi dividido em
12 grandes regiões hidrográficas, cada uma delas às vezes com várias
bacias hidrográficas. A Lei Brasileira de Recursos Hídricos (9.433/97)
concebe a gestão das águas a partir das bacias hidrográficas. Aqui estão
as águas mais acessíveis ao ser humano para todos os usos. Os rios,
inclusive, tornaram-se o destino dos dejetos industriais, hospitalares,
domésticos. O Brasil, que tem o maior volume de água doce do planeta e uma
imensa malha de rios, tem 70% de seus rios poluídos. Portanto, prova que
não basta abundância, é preciso um cuidado especial para se ter água em
quantidade e qualidade.
Aqui mais uma vez a América Latina aparece
de forma destacada no cenário mundial. As duas maiores bacias
hidrográficas do planeta estão em território latino-americano, isto é, a
Amazônica e a do Prata. São as duas maiores vazões hidrográficas da face
da Terra. A vazão média da bacia Amazônica é de 212.000 m³/s, enquanto a
do Prata é de 42.400 m³/s. O Brasil, com a água da Amazônia Internacional,
detêm 53% das águas da América do Sul e 13,8 do total mundial.
Estas duas bacias hidrográficas, além de oferecer água doce em
abundância, integram os países latino-americanos. Se forem sabiamente
manejadas e preservadas, garantem tranquilamente o futuro de nossos povos.
4.5 - Aqüífero Guarani: A América Latina foi ainda
abençoada com o maior lençol freático de água do planeta, com 1,2 milhões
de km². Atinge 7 estados brasileiros (Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do
Sul, S. Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul) e parte da
Argentina, Paraguai e Uruguai. Estende-se pelo Brasil (840.000 km²),
Paraguai (58.500 km²), Uruguai (58.500 km²) e Argentina, (255.000 km²).
Tem água para abastecer 360 milhões de pessoas indefinidamente desde que
bem gerenciado. É a população de toda América Latina.
Toda essa
água, praticamente ainda inexplorada, é objeto de cobiça nacional e
internacional. Somente agora há um esforço conjunto dos países banhados
pelo aqüífero Guarani para o estabelecimento de uma série de medidas que
facilitem a gestão e preservação comum do manancial. Entretanto, a
abundância de água do aqüífero também traz ambições. As grandes
transnacionais da água já buscam colocar-se no espaço do aqüífero e
reservar seu quinhão em vista do futuro.
4.6 - Pantanais e
Alagados: Nosso continente tem ainda uma série pantanais e de áreas
alagadas, fundamentais para a dinâmica das águas e para a biodiversidade.
O Pantanal Mato-grossense, que atinge também a Bolívia e o Paraguai é um
caso exemplar. Com uma fantástica biodiversidade animal e vegetal,
situa-se no coração da América do Sul. Sua biodiversidade inclui mais de
650 espécies diferentes de aves, 262 espécies de peixe, 1.100 espécies de
borboletas, 80 espécies de mamíferos e 50 de répteis. Além disso, o
Pantanal conta com 1.700 espécies de plantas. É também uma área
ambicionada por sua riqueza. A Igreja do Reverendo Moon comprou nessa
região uma área de 10 milhões de hectares de terra. O tamanho da
propriedade causou problemas no Brasil, onde por muita gente é considerada
até uma questão de segurança nacional.
Entretanto, as áreas
alagadas da América Latina são muito mais amplas que o Pantanal
Mato-grossense. Uma pequena listagem nos dá a visão mais completa da
abundância de pantanais e alagados de nosso continente.
País |
Total de áreas |
Extensão (hectares) |
Brasil |
38 |
59.789.733 |
Venezuela |
29 |
14.447.155 |
Chile |
49 |
9.188.713 |
Argentina |
57 |
5.797.930 |
Paraguai |
5 |
5.723.528 |
Bolívia |
18 |
4.017.920 |
México |
40 |
3.377.900 |
Nicarágua |
17 |
2.111.349 |
Colômbia |
36 |
1.928.389 |
Uruguai |
12 |
773.500 |
5) PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS DA ÁGUA
5.1 - O uso múltiplo da água: o grande problema da água está
na equação mais justa de seu uso múltiplo. O padrão mundial adotado de se
utilizar 70% da água doce em agricultura indica ser sem sustentação. O uso
da água na agricultura precisará ser redefinido. Esse embate já existe,
por exemplo, no Brasil. É correto usar a pouca água disponível no Nordeste
Brasileiro para irrigar cana de açúcar? É correto usar 80% da água do rio
São Francisco, também no Nordeste Brasileiro, para gerar energia, enquanto
milhões de pessoas espalhadas pela região não têm um copo de água potável
para beber? Portanto, o uso múltiplo da água exige critérios éticos, não
apenas técnicos ou econômicos. Por isso, além de falarmos do "uso
múltiplo" das águas, é necessário falar também de seus "valores
múltiplos". Portanto, é necessário falar do valor biológico, social e
ambiental da água. Além desses, a água tem valor simbólico, religioso,
cultural, paisagístico, turístico. A água ainda tem dimensões econômicas,
políticas e de poder. Controlar a água é ter poder sobre os demais seres
humanos e os demais seres vivos.
5.2 - Privatização e
mercantilização: a privatização e a mercantilização da água é o grande
desafio para a água no mundo contemporâneo. A estratégia das grandes
multinacionais da água é transformá-la numa mercadoria comum. Entretanto a
água é um bem imprescindível e insubstituível. Nenhum ser vivo sobrevive
sem a água. Controlar a água é controlar a vida. Por isso, em nível
mundial também surgem resistências a toda tentativa de privatizar e
mercantilizar a água. Na América Latina temos resistências na Bolívia,
Argentina, Brasil, Peru, Chile, Uruguai e outros. Entretanto, na América
Central os serviços de água já estão sendo privatizados. Há também
privatização da água na Índia, Filipinas, países africanos e Europa.
5.3 - Poluição: outra questão fundamental é a degradação
qualitativa das águas. A civilização humana fez dos rios seus caminhos,
depois sua moradia, depois seu esgoto. Há vários rios no mundo,
principalmente aqueles que cortam os grandes centros urbanos e agrícolas,
praticamente imprestáveis em sua utilização para consumo humano. No Peru a
poluição vem principalmente das mineradoras ao longo dos rios que
abastecem Lima. Os dados do saneamento dos países mais pobres são
estarrecedores. O Brasil, por exemplo, tem 20% de sua população sem acesso
à água potável, 50% de seus domicílios sem coleta de esgoto e 80% do
esgoto coletado são jogados diretamente nos rios sem nenhum tipo de
tratamento. Isso faz com que 70% dos rios brasileiros estejam poluídos.
Porém, há situações ainda piores, como é o caso do Haiti, onde mesmo em
Porto Príncipe, os esgotos correm a céu aberto pelo centro da cidade.
5.4 - A perda de qualidade das águas é um dos
grandes dilemas da humanidade. Hoje se fala em contaminação fina, à base
de hormônios, antibióticos e metais pesados. Normalmente esses elementos
não são detectáveis nos tratamentos mais comuns das águas para consumo
humano. Portanto, a qualidade da água consumida nos dias de hoje não
oferece segurança total. No Brasil estima-se que 40% das águas das
torneiras não têm potabilidade confiável.
5.5 -
Desflorestamento das matas ciliares: agrava ainda mais a situação das
águas o desflorestamento. Há uma íntima correlação entre cobertura
vegetal, armazenamento de água nos lençóis subterrâneos e a preservação
dos mananciais de superfície. Onde há cobertura vegetal a água das chuvas
tende a infiltrar-se mais nos solos, elevando o nível dos lençóis
subterrâneos. Onde a terra está nua, a tendência da água é escorrer para o
leito dos rios, com pouco processo de infiltração. Além disso, a cobertura
vegetal das margens dos rios - as matas ciliares - protege os leitos do
assoreamento provocado por materiais sólidos carreados pelas enxurradas.
Portanto, o processo contínuo de desflorestamento influi diretamente na
disponibilidade hídrica dos mananciais de superfície e subterrâneos.
5.6 - Pobres sem água: a exclusão de grande parte da
humanidade da "segurança hídrica" já é uma realidade mundial. Repetindo os
dados iniciais, no mundo contemporâneo 1,2 mil milhões de pessoas não têm
água de qualidade para beber e 2,4 mil milhões não têm acesso ao
saneamento básico. Essa realidade, segundo a ONU, tende a se agravar com o
crescimento da população mundial. Não é um problema de escassez, mas de
cuidado, gerenciamento e justiça social.
5.7 - Hoje em
vários lugares do Brasil começa se instalar o "cartão pré-pago" de
água, como na telefonia celular. Evidente que ai está uma flagrante
violação do direito humano à água. As populações mais pobres não podem
estar sujeitas a essas regras do mercado. Muitos pobres não têm como
comprar sua água, mas como todo ser vivo têm direito a ela. O surgimento
dos "sem-água" é uma das mais aberrantes tragédias que poderiam assolar a
humanidade.
6) LUTAS POPULARES PELA ÁGUA
6.1 - Água como bem público, direito humano, patrimônio de todos
os seres vivos: Como reação ao processo de privatização,
mercantilização e degradação das águas, surgiu a consciência do "cuidado",
da "preservação", da água como "bem público, universal, patrimônio da
humanidade e de todos os seres vivos". Essas articulações prosperam em
todo o mundo, através de ONGs, defensores de direitos humanos, Igrejas e
especialistas que tem uma visão ampla da água, não apenas mercantilista.
No Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, fortaleceu-se a "RED
VIDA", como uma articulação de entidades que lutam em defesa da água
seguindo uma série de dez princípios, todos na direção da água como um bem
público.
6.2 - Da parte das Igrejas e das entidades
defensoras dos direitos humanos, cresce a consciência e a defesa da água
como um "direito humano". Porém, há resistências dos governos locais e das
transnacionais da água. A tendência é admitir a água apenas como uma
"necessidade", não como o direito. É a mesma postura que se tem em relação
ao "direito humano à alimentação". Se a água for reconhecida como direito
humano, assim como a alimentação, então é obrigação do estado perante seus
cidadãos. Sob a direção dos verbos "proteger, promover e prover", o Estado
está obrigado a garantir a todos seus cidadãos a alimentação e a água
necessária para sua segurança hídrica. Portanto, muda a relação mercantil
com os alimentos e a água que as transnacionais querem aplicar a esses
bens fundamentais para a vida.
Assim, as transnacionais da água
estabelecem uma ruptura entre o direito natural e o direito positivo. O
direito natural não é mais reconhecido automaticamente como um direito
positivo e até é posto em subalternidade em relação a esse.
Embora
o reconhecimento da água como direito humano não garanta sua execução
prática, é muito importante para a luta dos mais pobres. Importante também
é a luta das Igrejas e das entidades dos direitos humanos para que a água
seja definitivamente reconhecida como direito humano.
6.3 -
Muitos esforços concretos existem em todo território latino americano
para que as populações mais pobres tenham acesso à água em quantidade,
qualidade e regularidade. Cresce também o esforço para a água na produção
de alimentos. Um exemplo é o que acontece no semi-árido brasileiro, onde
oitocentas entidades estão articuladas para construir um milhão de
cisternas para um milhão de famílias da região. Até hoje já foram
construídas aproximadamente 150 mil. Embora esteja longe de alcançar seu
objetivo, praticamente 900 mil pessoas hoje têm água de qualidade ao menos
para beber. Sem esse tipo de iniciativa, deixando apenas para as
iniciativas do Estado, essas famílias não teriam sua água para consumo
garantida. Esse é o tipo de prática que contempla as necessidades dos mais
deserdados, garantido-lhes o acesso à água a qual têm direito.
13/setembro/2005
Fonte: http://resistir.info/ .
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