Combater o racismo passa por garantias da permanência da população negra nos espaços sociais, pela identificação de forças contrárias à consolidação dessas garantias e pelo combate a empecilhos estruturais. Esses apontamentos são feitos pelo professor Delton Aparecido Felipe, do curso de História da Universidade Estadual de Maringá.
O professor Delton Felipe participou de mesa-redonda do 7º Encontro das Especializações em História, do Departamento de História da UEL, realizado de 29 de outubro a 1º de novembro. Ele dividiu as reflexões com a professora Beatriz Gallotti Mamigonian, do curso de História, da Universidade Federal de Santa Catarina.
Confira os principais trechos da entrevista que os professores deram ao Jornal Notícia.
A igualdade racial no Brasil é um mito e um processo construído?
Delton - A ideia de uma nação democrática em termos raciais foi difundida e propagada por intelectuais brasileiros, no intuito de promover uma representação - como hoje sabemos, ilusória. Esse mito implicou em um imaginário social que concebe o Brasil livre das discriminações raciais. Um dos meios de conceber o racismo, para além de sua faceta promovida e articulada pelas questões de classe, é entender seu funcionamento como um sistema de poder advindo de fatos históricos e sociais. Se hoje, a população negra se encontra, majoritariamente, em situação de vulnerabilidade econômica, devemos atribuir essa situação aos processos de escravização e exploração de pessoas negras, durante o período colonial.
"Precisamos entender que o racismo brasileiro é estrutural. Quando falamos de racismo, estamos nos referindo a um processo de internalização de ideias", afirma o professor Delton Felipe
Quais os principais prejuízos para a comunidade negra?
Delton - Devemos compreender que o racismo brasileiro se constitui em um sistema de poder abrangente que envolve diversas relações de hierarquia, cujos efeitos são vislumbrados não apenas na condição financeira de negros e negras brasileiras, mas também nas formas pelas quais esse grupo é representado ou sub-representado, em espaços como a mídia, a política, a cultura, etc. Como criar estratégias pedagógicas que compreendam o racismo e a discriminação racial como agentes que deterioram o tecido social e, ao mesmo tempo, traçar mecanismos de reversão da imagem negativa do negro e negra brasileira? Essa questão deve ser analisada com cuidado pelos professores envolvidos nesse processo, pois um dos erros mais comuns que se comete em sala de aula, ao se abordar o tema é, exatamente, o esvaziamento de conteúdos relacionados à atuação e participação da população negra na História do país.
E quanto à negação da diversidade étnico-cultural? Como reverter esse processo?
Delton - Precisamos entender que o racismo brasileiro é estrutural. Quando falamos de racismo, estamos nos referindo a um processo de internalização de ideias, a partir do qual nos relacionamos com as pessoas. Por exemplo, não estranhamos pessoas negras em trabalhos braçais, mas se nos depararmos com uma médica negra, muito provavelmente vamos estranhar. Essas situações se repetem no nosso dia a dia. Ao longo da História, foram desenvolvidas ideias sobre as relações entre brancos e negros no Brasil nas quais preconizava-se que não haveria problema racial porque não tivemos leis de segregação, como nos Estados Unidos e na África do Sul, como o apartheid. Assim, internalizamos a ideia de que nós brasileiros estabelecemos relações entre brancos e negros sem preconceito algum. Ao mesmo tempo, mantivemos, por exemplo, expressões que maculam a imagem da pessoa negra. Por exemplo, pelo dicionário, a palavra "denegrir", significa "tornar negro", e seu sentido figurado é "manchar a reputação" ou "difamar". Outras expressões populares também dão conta da ligação direta que o pensamento faz entre o termo "negro/a" e os sentidos pejorativos, como "magia negra", "a coisa tá preta", "trabalho de preto". Para combater isso é preciso reconhecer as desigualdades raciais e o racismo estrutural. É preciso rever a história contada nas escolas, voltar os olhos para os estudos que denunciam esses processos e evidenciam o racismo estrutural como componente constitutivo da sociedade brasileira.
Delton Felipe: "Precisamos entender que o racismo brasileiro é estrutural. Quando falamos de racismo, estamos nos referindo a um processo de internalização de ideias"
As políticas afirmativas têm impacto positivo no acesso da população negra à universidade e a concursos? Qual a sua avaliação sobre o sistema de cotas?
Delton - De modo bem geral, as cotas raciais servem de eficiente "óleo desincrustante" dessas desigualdades que, pela indiferença estatal prolongada no tempo, se alojaram de modo persistente em nossa estrutura social. O sistema permite a criação de condições favoráveis para que a população negra participe dos processos decisórios e crie políticas públicas mais democráticas e racialmente conscientes que possam favorecer a todos. Por isso, as cotas raciais podem ser defendidas quer seja pela perspectiva de reparação histórica, quer seja pela perspectiva de fomento da diversidade, propiciando, assim, a integração social de segmentos numerosos, porém, subalternizados da sociedade. É preciso que toda a discussão tenha como fio condutor a necessidade de tornar nítido que as cotas raciais visam, por meio da fixação de percentuais mínimos, garantir a presença de minorias raciais nas universidades, ou seja, por meio da convivência, mesmo que obrigada por meios jurídicos, romper com preconceitos e imagens estigmatizantes que se formaram sobre as pessoas negras. Importante, ainda, é deixar explícito, desde o início, que as cotas são ações paliativas, portanto, temporárias.
O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravização e quando o fez não planejou estruturas para dar suporte à população negra. Políticas afirmativas no Brasil são tardias. Isso se deve à estratégia do esquecimento, que você cita no livro "Africanos Livres"?
Beatriz Mamigonian - A abolição da escravidão, em 1888, foi uma medida "arrancada" pelo movimento abolicionista, sobretudo pelas fugas em massa dos meses anteriores ao 13 de maio. Portanto, não é de se surpreender que não tenha havido uma política pública para proteger os recém-emancipados. E também, pouco depois, a monarquia caiu e foi instituída a república. Muito convenientemente, a escravidão e a monarquia passaram a ser tratadas como coisa do passado, página virada. Deu-se uma atualização da política do esquecimento que discuto em Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil, voltada para encobrir o tráfico ilegal de escravos e a escravização ilegal de pessoas. Creio, no entanto, que precisamos escapar desse lugar comum que vitimiza a população negra no século XIX. Desde o período colonial, o Brasil contava com uma população liberta e livre de origem africana considerável. Isso quer dizer que entre a população recenseada como livre, muitos eram descendentes de africanos, e tinham pais, avós ou bisavós que haviam sido escravos. Já havia uma grande experiência da vida em liberdade; a abolição não caiu como uma novidade para os negros. Em maio de 1888 foram emancipados os últimos que ainda estavam escravizados. No senso comum, deu-se o infeliz efeito de igualar todos os negros a ex-escravos. Mas já se conhecia a liberdade, já se sabia o valor do trabalho, há muito se alimentava o sonho de autonomia: não ter senhor nem patrão, ser auto-suficiente na cidade ou no campo. Muitos ex-escravos tiveram acesso à terra, por ocupação ou herança. Foi na República que perderam.
Esta matéria foi publicada no Jornal Notícia nº 1.403. Confira a edição completa: