Olho Mágico - Especial - Educação a Distância
REFLEXÃO
A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E A NOVA SAÚDE PÚBLICA

Antônio Ivo de Carvalho
Coordenador EAD – Escola Nacional de Saúde Pública

  O presente trabalho visa discutir o papel que as novas tecnologias educacionais, em especial aquelas direcionadas para programas de educação a distância, podem desempenhar na resposta aos desafios pedagógicos postos pela saúde pública contemporânea, seja no campo da formação de profissionais, seja no campo da educação (da sociedade) para a saúde.

Partindo das relações existentes entre a saúde pública tradicional e a educação, são apresentadas as mudanças programáticas e organizacionais propostas pela nova saúde pública, envolvendo a construção de um campo interdisciplinar de conhecimentos e intersetorial de práticas, assim como a emergência de novos atores e responsabilidades sociais, gerando um conjunto de demandas educacionais de magnitude e perfil inéditos no campo sanitário.

A educação a distância é então abordada não apenas como facilidade econômica e tecnológica, mas sobretudo como ferramenta pedagógica inovadora e também como abertura para uma educação aberta e continuada.

O trabalho está dividido em três blocos, dos quais apresentamos um breve resumo.

 1)       Saúde pública e educação: novas exigências programáticas e organizacionais.

·          O modelo tradicional de saúde pública corresponde a um paradigma de conhecimento e prática fortemente hegemonizado pelo enfoque biomédico do processo saúde-enfermidade. A formulação das ações é privativa da esfera técnica, espaço onde os atores profissionais desenvolvem suas práticas, sempre em ambientes institucionais verticalizados e padrões laborais altamente normatizados. Nesse modelo, tanto a formação de profissionais, quanto a educação da sociedade para a saúde, são fortemente marcados pelo modelo instrutivista de educação.

·          As tendências da saúde pública contemporânea apontam uma mudança desse paradigma, implicando numa reforma programática e numa reforma organizacional. A reforma programática em direção à construção de um campo interdisciplinar de conhecimentos e de um espaço intersetorial de práticas, onde ao arcabouço biomédico duro somam-se conhecimentos oriundos das ciências sociais para formar um novo campo das ciências da saúde, mais compreensivo e acolhendo a intersubjetividade humana. Essa nova base cognitiva proporciona interpretações mais complexas sobre os fenômenos da saúde e da doença, e reorienta a intervenção humana sobre eles. Emergem novos conceitos relevantes, como promoção da saúde, autocuidado, políticas públicas saudáveis, etc., ampliando a agenda sanitária para o campo ambiental, social, comportamental, envolvendo agora tecnologias não apenas biomédicas,  mas assistenciais, organizacionais, de intervenção social, etc.

·          Esses mesmos fatores apontam e exigem uma reforma organizacional, concernente à emergência de novos atores e ao estabelecimento de novas responsabilidades sociais no campo da saúde. Trata-se de um movimento centrífugo em relação ao padrão anterior, implicando numa delegação ampliada de tarefas sanitárias, que ultrapassa as fronteiras do setor saúde (envolvendo outros campos disciplinares e outros setores da administração pública), as fronteiras do profissional de saúde e do conhecimento especialista (envolvendo outros profissionais e mesmo os cidadãos em geral) e as fronteiras do Estado central (envolvendo uma responsabilização tanto das esferas descentralizadas do Estado, quanto da sociedade como um todo).

·          Em resumo, pode-se dizer que as tendências atuais de mudança nos sistemas de saúde apontam para um novo modelo assistencial (promoção da saúde e integralidade da atenção) e para um novo desenho institucional (descentralização e participação social).

 2)       Saúde pública e educação: novas exigências pedagógicas

·          Os processos descritos acima envolvem importantes alterações na demanda educacional relacionada à saúde pública, em termos da composição da clientela-alvo, em termos da escala da oferta necessária e em termos das competências profissionais desejadas.

·          Em termos da clientela, trata-se hoje de lidar não mais apenas com a formação de profissionais, mas também com a capacitação de cidadãos usuários, visando o cumprimento dos papéis que, como novos atores da saúde pública, eles devem assumir (autocuidado, controle de ações públicas, etc), envolvendo também um processo de empowerment.

·           Em termos da escala, para ambas as clientelas, impõem-se programas educacionais de larguíssima escala, tendo em vista prover, na capilaridade social em que eles estarão atuando (nível local e mesmo individual), o volume de oferta necessário à sua capacitação.

·           Em termos de novas competências, e isto é o mais relevante e desafiador, será necessário formar profissionais e cidadãos capazes de enfrentar problemas complexos e com baixo grau de estruturação, devendo ser capazes de pensar e produzir soluções criativas, e não apenas aplicar normas ou prescrições anteriormente estipuladas. Ênfase nas competências múltiplas do indivíduo, no trabalho em equipe, na capacidade de aprender e na capacidade de adaptar-se e de responder a situações novas.

·          Pode-se dizer que o desafio é construir um perfil profissional estratégico, que talvez possa ser chamado de "gestor público da saúde", a reunir competências do novo profissional de saúde pública (capacidade de processar e enfrentar problemas sanitários em sua complexidade técnica e social) e do moderno gestor de sistemas e serviços de saúde (capacidade de gerenciamento técnico e negociação política).

·          As novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), pela sua virtualidade de expandir a amplitude e a velocidade de circulação de conhecimentos, apresentam-se como naturalmente capazes de viabilizar as exigências de escala e custo-efetividade (maior eficiência na utilização de recursos educacionais - seja em termos de capacidade institucional instalada, seja em termos de recursos de custeio) desses processos educacionais. Adicionalmente, abrem possibilidades inéditas de ampliação de clientela pelo simples fato de permitirem a permanência do profissional em serviço, o que é de altíssima relevância para o campo da saúde pública.

·          Entretanto, possivelmente a maior vantagem das NTIC está em viabilizar o emprego de modelos pedagógicos centrados na aprendizagem, a serviço da formação do indivíduo, profissional de saúde ou cidadão usuário, como sujeito autônomo no aprender e no exercer ações de saúde pública. Para tanto, é necessária a superação dos marcos instrutivistas e behavioristas que ainda caracterizam boa parte dos programas de EaD, assim como o enriquecimento desses programas na perspectiva da educação aberta e ao longo da vida.

 3)       Educação aberta e a distância na nova saúde pública

·          Vê-se então que a reforma pedagógica exigida pela nova saúde pública pode ser pautada numa rota claramente direcionada a uma educação aberta e a distância, numa concepção que articule formação inicial e formação continuada. Formação inicial em que se construam competências relacionadas não tanto com a quantidade de conhecimentos estocados, mas com as habilidades de aprendizagem e com o marco da interdisciplinaridade, envolvendo também a competência de pesquisar cientificamente e produzir conhecimento relevante. Formação continuada (ao longo da vida), essencial para fazer frente à obsolescência acelerada da tecnologia e do conhecimento, em que devem se mobilizar os novos atores sociais envolvidos, estabelecendo fortes laços entre a ação educacional e a ação laboral (no caso, os serviços sanitários), e fomentando a criação de estruturas de formação continuada mais efetivas e até mesmo sediadas nos ambientes de trabalho.

·          Nessa perspectiva, a EaD na Saúde Pública não pode nem deve limitar-se a suprir demandas emergenciais nem a corrigir insuficiências pontuais ou regionais da educação presencial, devendo incorporar-se progressivamente ao sistema regular que precisa então ser reconcebido na sua dimensão de formação inicial e enriquecido com o advento de uma educação continuada ao longo da vida.

·          Para isso, programas de educação aberta e a distância em saúde pública devem hoje desenhar-se e desenvolver-se operacionalmente de modo a prover pelo menos três dimensões: (1) o desafio de aprender a aprender; (2) o desafio de aprender a ensinar / ensinar a aprender; e (3) o desafio de aprender e ensinar continuamente.

·          O desafio de aprender a aprender, habilidade a ser desenvolvida pelo aluno que, em nossa sociedade, não está previamente preparado para esse papel, devendo o próprio processo educacional apoiá-lo e capacitá-lo nessa habilidade. Diversas experiências tem apontado alguns fatores de importância crucial para isso:

·                      A importância dos materiais de auto-estudo que, sendo sempre específicos para um dado curso, devem ser adequados à clientela, em termos do meio tecnológico de comunicação, da disposição dos conteúdos, das ferramentas pedagógicas. A importância de ser produzido em parceria pelo especialista temático e pelos especialistas pedagógico e tecnológico.

·                      A importância do envolvimento da organização de serviços no processo educativo - o conceito das "organizações que aprendem" (valorizam a formação profissional para desenvolver sua própria capacidade e qualidade produtiva). Importância dos estímulos concretos (utilização de horário de trabalho, viabilização de grupos de estudo, fornecimento de problemas reais da organização para estudo, etc.)

·                      A importância das metodologias da resolução de problemas, sejam específicos do profissional aluno, sejam da organização, de modo que a construção do conhecimento se dê não na busca de soluções "corretas", mas na capacitação para o diagnóstico de problemas e para o encontro de soluções inovadoras.

·O desafio de aprender a ensinar, que é acoplado ao de ensinar a aprender, habilidade ou atributo indispensável ao professor que, aqui, muito mais que um portador do conhecimento, deverá ter um papel de gerenciador da circulação e reprodução desse conhecimento, assim como um orientador da aprendizagem. Não só o professor, mas a própria instituição de ensino deverá reestruturar-se para apoiar seja o aluno, seja o professor, em suas novas funções. Por isso é possível falar num professor coletivo nos processos de educação a distância.

·                      Formação de professores - não há professores prontos para essa tarefa, daí a necessidade de um processo permanente de monitoramento e estruturas de apoio docente, onde possam ser desenvolvidas as dimensões técnico-didáticas (campo científico específico), pedagógicas (campo das teorias e práticas educacionais) e tecnológicas (campo das novas TIC). Aqui não há o professor especialista e sim o professor coletivo que provê perante o aluno essas múltiplas dimensões do processo.

·                      A escolha tecnológica deve subordinar-se à escolha pedagógica no sentido de que o centro do processo é a facilitação da autoaprendizagem e não a ostentação tecnológica. Limitações de natureza social, geográfica, devem ser respeitadas, embora levando em conta a rápida disseminação de inovações tecnológicas tanto na vida cotidiana quanto na profissional. A tendência a empregar selfmedia ou narrowcasting, no lugar de broadcasting usado nos anos 70

·                      A organização de ensino deve disponibilizar a professores e alunos um sistema de informação e serviços que dê suporte a atividades extra-curriculares, mas com função pedagógica, como acesso a serviços de informação, bases de dados, participação em estudos e pesquisas acadêmicas, ambientes próprios para chats, foruns, listas, ambientes para aprendizagem colaborativa.  

·          O desafio de ensinar e aprender continuamente diz respeito ao fortalecimento de uma educação ao longo da vida, através de redes de cooperação entre instituições de ensino, organizações de serviço e profissionais-alunos, possibilitadas e mediadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação.

·                      A possibilidade e oportunidade de acordos formais entre a academia e as organizações de serviços, como mecanismos de detectar demandas e pactuar ofertas.

·                      A organização de ensino deve disponibilizar a professores e alunos serviços permanentes de informação, acessíveis também a alunos egressos, voltados para alimentar a rede de cooperação. Tem importância aqui não apenas a oferta de serviços e facilidades, quanto as oportunidades de interatividade entre componentes da rede, sejam institucionais, sejam individuais.

·                      Os profissionais e organizações de serviços devem ter a possibilidade de acesso a bases de dados de forma articulada ao acesso a mecanismos remotos de apoio docente e aconselhamento disponibilizados pela instituição de ensino.

·                      É aconselhável a adoção periódica de momentos sincrônicos (on line) de interação entre os componentes da rede, visando fortalecer a construção de uma identidade comum e o sentido de pertencimento à rede.

Rio de Janeiro, maio de 2000