ISSN: 1516-4888
VOLUME 2 - NÚMERO 1 - JUN./2000 |
A QUESTÃO DO TEMPO PARA NORBERT ELIAS:
REFLEXÕES ATUAIS SOBRE TEMPO, SUBJETIVIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE
Mônica Mastrantonio Martins*
Antes de apresentar a abordagem do tempo do sociólogo alemão Norbert Elias, é necessário que se conheça um pouco mais sobre a vida, obras e pressupostos desse autor, não tão conhecido entre nós como deveria. Desse modo, pode-se compreender sua contribuição na questão do tempo a partir do contexto de sua abordagem e postulações.
Elias nasceu em Breslau (Alemanha), em 22 de junho de 1897. Filho único de Hermann Elias e Sophie Elias, serviu o exército em 1915 durante a 1ª Guerra Mundial. Depois estudou Medicina, Filosofia e Psicologia em Breslau, Freiburg e Heildeberg. Em 1924, defendeu sua tese de PhD na Alemanha. Nos anos 30, trabalhou com Alfred Weber (irmão de Max Weber) e com Karl Mannheim. Desse último, foi assistente quando ensinava Sociologia em Frankfurt. Sendo sua família judia, Elias teve que fugir da perseguição nazista, refugiando-se na França e na Inglaterra. Sua mãe foi vítima de um dos campos de concentração de Auschwitz, por volta de 1941. Seu pai também falece em 1940.
Ele publicou sua primeira obra intitulada “O processo civilizador” já em 1939, mas essa recebeu pouca atenção na época. Na verdade, Elias só obteve reconhecimento acadêmico e público na década de 70 ou seja, trinta anos mais tarde. Nesse livro, Elias estabelece relações entre a constituição do Estado e a formação da consciência e autocontrole individuais, explicitando como a sociedade transforma, ao longo de seu desenvolvimento, a coação externa em auto-coação.
Elias
foi um dos principais precursores da chamada "Sociologia Figuracional", através da qual se estuda as
relações humanas de forma processual (micro e macro social). O sentido figuracional
é usado para ilustrar redes de interdependência entre indivíduos e
a distribuição de poder nas mesmas. É importante apontar que Elias não
tem uma visão estática dessas configurações e busca captá-las em contínuo
processo de constituição e transformação. Nesse sentido, configurações
não podem ser planejadas, programadas ou previstas porque são construídas
e redimensionadas o tempo todo. Ele, inclusive, faz analogia das configurações
com uma dança de salão, onde as ações das pessoas ao dançarem são
interdependentes naquele local e no momento da dança (1994, p. 249).
Outro
aspecto que subsidia suas afirmações é que ações e autores não são
tratados separadamente, assim como indivíduo e sociedade não são
dissociáveis. Elias denuncia a cisão entre ciências humanas e naturais
como produto do desenvolvimento de um conhecimento estanque e
particularizado. Como conseqüência disso, fica mais difícil captar as múltiplas
relações estabelecidas entre homem e tempo.
Como para Elias (1989, 1993, 1994), o "saber" é desenvolvido através de configurações sociais ao longo da evolução da sociedade, também o tempo aparece como produto da evolução de nossa sociedade. Evolução essa que não significa necessariamente progresso, mas que é formada por progressos e retrocessos e que, no caso do tempo, está fundamentada no desenvolvimento da capacidade humana de síntese e representação simbólica. Faz-se importante salientar que Elias não utiliza os termos "desenvolvimento", "evolução" e "progresso", no sentido de uma necessidade automática ou intrínseca à sociedade (significado usado no século XIX). Ele refere-se a tais termos no sentido de explicitar, empírica e teoricamente, mudanças estruturais que aconteceram na sociedade a longo prazo. O tempo é postulado como um, dentre vários, elementos que têm acompanhado a evolução da humanidade.
O
cuidado que Elias toma é o de não reduzir seus pressupostos ao estado de
coisas fixas e imutáveis e sim compreendê-los em termos de sua
processualidade. Mesmo assim, Elias (1994, p. 216) aponta que: "...ainda
faltam teorias empiricamente baseadas para explicar o tipo de mudanças
sociais de longo prazo que assumem a forma de processo e, acima de tudo,
de desenvolvimento". Desse modo, parece que a ciência ainda
carece de instrumentos para captar eventos de forma processual e
interdisciplinar.
Para
estabelecer novos caminhos na compreensão das relações entre homem e
tempo, Elias utiliza pesquisas e investigações que explicam como
configurações temporais vão sofrendo modificações e quais as funções
que essas adquirem no decorrer do desenvolvimento social.
Além
disso, os princípios da "Sociologia
Figuracional" influenciaram vários pensadores da atualidade e
possuem colaboradores espalhados por diversos países. Alguns desses são: Eric Dunning, Richard Kilminster, Jonathan Fletcher,
Mike Featherstone, Stephen Mennell, Roger Chartier, Johan Gouldsblom,
entre outros.
Elias também trabalhou e levou suas idéias para Leicester (Inglaterra) e depois para Ghana (África). Além disso, viajou e expôs seus pressupostos em vários países, como: Alemanha, França, Estados Unidos. Vale ressaltar que na Inglaterra, quando Elias estava no Departamento de Sociologia da Universidade de Leicester, encontrou e trabalhou com outros sociólogos importantes desse século; por exemplo: Anthony Giddens, John H. Goldthorpe e Ilya Neustadt.
Elias
fixa, então, residência em Amsterdã, tornando-se professor visitante de
diversas universidades alemãs e holandesas. Ele vem a falecer em primeiro
de agosto de 1990, aos 93 anos de idade.
Na
vasta obra de Elias, os mais diversos temas são discutidos, desde
sociologia, formação do Estado, sociologia do esporte, solidão e medo
da morte, teoria do símbolo, até lazer. Tamanha variedade e atualidade
de temas demonstra um autor preocupado com questões que continuam a
permear nossa sociedade. Alguns de seus trabalhos já publicados em
português, são: “O processo
civilizador" (2 volumes), “A sociedade dos indivíduos”,
“Mozart - uma biografia”.
Com
relação à questão do tempo, Elias levanta algumas reflexões entre a
história da civilização e o tempo em sua obra chamada "O
processo civilizador", publicada no original em alemão, em 1939.
Em 1984, o livro "Sobre el
Tiempo" foi publicado na língua alemã e depois traduzido para o
espanhol. Em especial nessa obra, Elias contrapõe linhas filosóficas,
naturalistas e históricas, constituindo um modo particular de abordar o
tempo, através da superação dos hiatos produzidos entre as diferentes
áreas do conhecimento científico.
Quando Elias (1989) faz comparações dos modos como diferentes civilizações determinam o tempo, estabelece funções universais para o modo como esse coordena as experiências humanas entre natureza e sociedade. Além disso, Elias descreve coerções exercidas pelo tempo que interligam estruturas psicológicas individuais com estruturas sociais mais amplas.
Ao
escrever "O processo
civilizador", Elias (1994) relaciona a constituição do Estado
desde a Idade Média, através da arrecadação de impostos, polícia, forças
armadas, lei e outros, com a elaboração de aspectos temporais presentes
na formação da consciência e no autocontrole individual. Ou seja, a
regulamentação do Estado teria acompanhado o desenvolvimento de regras
internas presentes na formação da subjetividade e na coordenação de
atividades na sociedade. Tempo, na perspectiva do "processo
civilizador", é uma rede fundamental de configuração de relações
sociais desenvolvida pela civilização.
Por
conseguinte, a crescente importância dada ao tempo em nossa sociedade
tende a ser fruto do próprio desenvolvimento social que fez desse um item
primordial para regulação da vida em sociedade. O que Elias (1994, p.
207) especialmente coloca no "processo
civilizador", foi o estabelecimento do tempo como propiciador do
desenvolvimento da sociedade, cujas redes de ações estavam cada vez mais
imbricadas umas nas outras, havendo:
"...necessidade de sincronização da conduta humana em territórios mais amplos e a de um espírito de previsão no tocante a cadeias mais longas de ações como jamais haviam existido...também há manifestação do grande número de cadeias entrelaçadas e interdependência, abrangendo todas as funções sociais que os indivíduos têm que desempenhar, e da pressão competitiva que satura essa rede densamente povoada e que afeta, direta ou indiretamente, cada ato isolado da pessoa. Esse ritmo pode revelar-se, no caso do funcionário ou empresário, na profusão de seus encontros marcados e reuniões e, no do operário, na sincronização e duração exatas de cada um de seus movimentos. Em ambos os casos, o ritmo é uma expressão do enorme número de ações interdependentes, da extensão e densidade das cadeias compostas de ações individuais, e da intensidade das lutas que mantém em movimento toda essa rede interdependente...".
Nesse
relato, aponta-se que o "processo
civilizador" acabou impondo aos indivíduos um número maior de
atividades e encadeamento dessas, assim como maior dependência e
complexidade na rede de relações sociais. Tais fatores exigiram um
denominador comum que regulasse tais relações. Nesse caso, o denominador
chama-se "tempo".
Aliás,
segundo Elias (1993, p. 208) não foi a moeda que caracterizou a passagem
da Idade Média para a Moderna, mas a mudança no ritmo e extensão do
movimento que mudou qualitativamente a estrutura das relações humanas na
sociedade. É na transição da Idade Média para o Renascimento que se
tem um fortalecimento do autocontrole individual das emoções e também
do tempo.
Nesse
sentido, a preocupação mais acentuada com o tempo, e com medidas
temporais atuais, parecem decorrer de processos de urbanização,
comercialização e mecanização da sociedade. Principalmente, quando
trouxeram maior dependência ao homem acerca de instrumentos criados para
medir o tempo e menor dependência de medidas baseadas em fenômenos da
natureza. Para Elias (1989, p. 64, 65), o "processo
civilizador" demonstra que quanto mais ampla e interdependente
for a ação humana, maior será sua dependência do tempo. Nesse caso:
"...Com a crescente urbanização e comercialização, tornou-se cada vez mais urgente a exigência de sincronizar um número cada vez maior de atividades humanas e de dispor de um retículo temporal contínuo e uniforme como marco comum de referência de todas as atividades humanas. Foi tarefa das atividades centrais (profanas e religiosas) preparar esse retículo e assegurar seu funcionamento. Dele dependia o pagamento ordenado e recorrente de tributos, interesses, salários, e o cumprimento de outros muitos contratos e obrigações, assim como os numerosos dias festivos que os homens descansavam de seu cansaço" (tradução do espanhol da autora).
Portanto,
tempo parece constituir elemento imprescindível na coordenação e
integração das relações sociais atuais, visto que o número de
atividades a serem sincronizadas na modernidade é maior e em redes cada
vez mais complexas. Por causa da maior dependência das medidas temporais,
ocorre uma ênfase excessiva na temporalidade e a sensação que se tem é
de escassez do tempo.
Diante
de um processo social de tão longa data como o tempo, Elias aponta que
estudos sobre esse tema devem ser associados à história e ao
desenvolvimento da humanidade, pois "...o
tempo é uma rede de relações,
muitas vezes bastante complexa e que substancialmente, determinar o tempo
é uma atividade integradora, uma síntese" (1989, p. 67, grifo
do autor). Presente em diversas comunidades e desde tempos mais remotos, o
tempo é uma convenção social que têm acompanhado nosso próprio
desenvolvimento. Pesquisar o tempo, partindo de uma abordagem crítica,
histórica e processual, contribui para que se tenha visão mais integrada
dos avanços e retrocessos de nossas próprias construções sociais.
Em
geral, as configurações e medições do tempo oferecem padrão,
uniformidade e repetição para a organização de nossas rotinas diárias.
Nesse sentido, a palavra tempo significa para Elias (1989, p. 56 ) "...símbolo de uma relação que um grupo humano (isto é, um
grupo de seres vivos com a faculdade biológica de conciliar e sintetizar)
estabelece entre dois ou mais processos, dentre os quais toma um, como
quadro de referência ou medida para os demais".
A regularidade e seqüência das medições do tempo possibilitaram demarcar rotinas e atividades dentro de um mesmo código temporal. Tempo e atividade são correlacionados porque medições do tempo permitem ao homem uma certa regularidade e previsibilidade diante da vida, movimento e atividade. Nesse sentido:
"...se aos homens de uma sociedade lhes interessa por
qualquer motivo marcar posições e períodos que se seguem uns aos outros
na sucessão do acontecer, necessitam encontrar outro processo, em cujo
transcurso, certas pautas de troca se repitam com certa regularidade, sem
que impeçam que suas transformações ocorram, assim mesmo de um modo
sucessivo e não repetitivo. Os módulos repetitivos dessa seqüência
servem, então, como pautas normalizadoras de referência, com o auxílio
de que se pode confrontar de modo indireto com a seqüência de outro
processo, os fenômenos não diretamente comparáveis, colocando que
aquelas pautas representam a repetição do mesmo..." (Elias, 1989, p. 19 e 20)
Assim,
segundas-feiras repetem-se após domingos, dias de trabalho são
intercalados por dias de folga, em um modelo seqüencial que permite às
pessoas se organizarem e programarem suas atividades em função do tempo.
A regularidade das medidas temporais pode assim, oferecer maior
previsibilidade do próprio cotidiano.
Tais
demarcações do tempo também são produtos do acúmulo de conhecimento
que se dá ao longo da história. No entanto, Elias (1989, p. 207) postula
que níveis simbólico e de síntese foram necessários como pré-requisitos
para o desenvolvimento do atual sistema temporal. Isto é, o aprimoramento
da capacidade de generalização e abstração teria possibilitado o
progresso das medidas de tempo.
Desse
modo, Elias (1989, p. 84, grifo do autor) expõe que, "...o que chamamos tempo
é, em primeiro lugar, um marco de referência que serve aos membros de um
certo grupo e em última instância, a toda humanidade, para instituir
ritos reconhecíveis dentro de uma série contínua de transformações do
respectivo grupo de referência ou também, de comparar uma certa fase de
um fluxo de acontecimentos...". Assim, o tempo cumpre funções
de orientação do homem diante do mundo e de regulação da convivência
humana.
Segundo
Elias (1989, p. 23), relógios são invenções humanas já incorporadas
no mundo simbólico do homem como forma de orientação e integração de
aspectos físicos, biológicos, sociais e subjetivos. Porém, quando se
esquece que são invenções humanas e históricas, do como ou por que os
primeiros relógios foram construídos e das transformações que
sofreram, é provável que tais construções sejam abordadas como se
tivessem existência natural, alheia ao homem. Mas para Elias (1989, p.
22): "em um mundo sem homens e
seres vivos, não haveria tempo e, portanto, tampouco relógios ou calendários".
Com
essa e outras afirmações, percebe-se que para Elias (1989), o homem é
construtor do tempo. Logo, não se pode compreender um sem o outro, da
mesma forma que atividade, tempo e sujeito não podem ser dissociados. Na
abordagem de Elias (1993, p. 228), tempo deve ser compreendido no contexto
social onde é produzido e também em interação com outros elementos da
vida social. Para tal, demanda-se a articulação de aspectos
interdisciplinares e intersubjetivos para adentrar tais redes de configurações
sociais.
Alguns
pontos da proposta de Norbert Elias (1989, 1993, 1994) assemelham-se com
questões apontadas pela Psicologia Social. Por exemplo, a concepção do
homem como sujeito e objeto de suas relações sociais. Paralelamente, o
homem também é construtor das medições de tempo e afetado pelas
mesmas. No entanto, Elias (1993, p. 234) afirma que a Psicologia Social
ainda permanece sem a devida exploração no aprofundamento das relações
entre homem e tempo.
Assim,
como tempo, homem e natureza não são dissociáveis. Para Elias, tempo e
espaço também devem ser estudados conjuntamente porque estão
imbricados. De acordo com ele (1989, p. 111, grifo do autor): "tempo
e espaço são símbolos conceituais de certos tipos de atividades e
instituições sociais que permitem aos homens orientarem-se diante de
posições ou distâncias entre estas posições que acontecimentos de
todo tipo tomam...". Portanto, se a proposta é compreender o
tempo no contexto onde esse é produzido, deve-se considerar o espaço
como relevante na configuração das relações sociais.
Conforme
escreve Elias (1989, p. 64) "do
ponto de vista sociológico, o tempo cumpre funções coordenadoras e
integradoras". Essa integração envolve aspectos naturais e
sociais, tais como: aparecimento e desaparecimento de galáxias, mudanças
das fases da lua, crescimento e envelhecimento da pessoa, mudanças de
estações e outros.
Calendários
podem ser utilizados como exemplos gráficos das funções coordenadoras e
integradoras de tempo e atividade. Usados desde a Antigüidade, já
passaram por inúmeras reformas até adquirirem a eficiência e acuidade
do modelo atual. Na definição de Elias (1989, p. 16) "...dias
e meses do calendário se constituem em um modelo repetitivo da não
repetição da seqüência de fatos". Tais formas de se medir
tempo trouxeram um certa previsibilidade e padronização diante de
irreversibilidade de nosso mundo.
Além disso, a palavra "calendário" é proveniente do latim, "calendae" que significa "dias para proclamar". Esse termo origina-se de períodos primitivos, nos quais sacerdotes e espirituosos saíam a proclamar o aparecimento de uma nova lua, anunciando o início de um novo mês (Elias, 1989, p. 210). Porém, significados e usos dos calendários atuais são bastante diferentes dos períodos anteriores. Hoje, adota-se um calendário global. A divisão do tempo em semanas, meses, anos, séculos, dias de trabalho, dias de descanso, feriados, datas comemorativas, quatro estações e fases da lua, são algumas facetas de um calendário que incide mais sobre nossas vidas do que talvez tivéssemos previsto. Mas, é somente refletindo sobre tempo que se compreende as transformações de significados, símbolos e medidas do tempo.
Para
Elias (1989, p. 150), a questão do tempo "
no fundo é simples, como o do tempo, é uma prova de que se esquece o
passado social. Pelo contrário, quando se acorda para ele, descobre-se a
si mesmo". Ou seja, quando se resgata historicamente o tempo, o
homem pode repensar sua vida e transformá-la à medida que é sujeito do
processo de construção da própria história e também do tempo.
Pelo
fato de não nascermos com um sentido temporal pronto, organizações
temporais têm que ser aprendidas
juntamente com outros aspectos culturais. De acordo com Elias (1989, p.
154), a "aprendizagem do tempo" em uma sociedade altamente
industrializada requer de sete a nove anos para se desenvolver, isto é,
para que o indivíduo decifre o complexo sistema simbólico temporal que
pauta a vida social. Tal sistema, também influencia nosso "olhar" diante da realidade, tornando-o essencialmente
temporal. Conforme explica Elias (1989, p. 80):
"No nosso tipo de sociedade, a vida do homem se mede com exata
pontualidade. Uma escala social temporal que mede a idade (tenho doze
anos, você tem dez), o indivíduo a aprende e a integra, como elemento
social, na imagem de si mesmo e dos demais. Esta subordinação de medidas
temporais não somente serve como comunicação sobre quantidades
distintas, se não que alcança seu pleno sentido como abreviação simbólica
comunicável de diferenças e transformações humanas conhecidas no biológico,
psicológico e social”.
Da
mesma forma, consciência, emoções e subjetividade são afetadas pelo
modo como cada sociedade estrutura seu tempo. O impacto da organização
temporal sobre relações humanas varia de época para época e estende-se
em graus diversos sobre os homens. Hoje, a
impressão que se tem é que sem o tempo para coordenar nossas
atividades, não conseguiríamos realizá-las; com ele para organizá-las,
vive-se correndo contra o relógio. As exigências temporais postulam
ritmos acelerados e parece que a possibilidade de se ter uma sociedade que
respeite diferentes temporalidades e ritmos continua sendo utópica.
Em épocas anteriores, era comum encontrar pessoas que não sabiam
responder sobre sua idade, horário, dia, mês ou ano em que estavam ou
haviam nascido. "Assim, se
explica que em sociedades sem calendário e, portanto, sem símbolos
precisos para designar a seqüência dos anos não repetidos, o indivíduo
não podia ter um conhecimento definido de sua própria idade",
afirma Elias (1989, p. 17).
Mas
na sociedade moderna, indivíduos desenvolvem uma consciência temporal tão
enraizada, global e onipresente que, "Esta
individuação da regulação social do tempo traz consigo, de uma forma
quase paradigmática, as expressões de um processo civilizador"
(Elias, 1989, p. 32). É provável que a preocupação constante com
tempo, consciência da passagem do tempo, brevidade das relações,
juntamente com uma vida onde tudo depende de horários, ilustrem uma
dependência cada vez maior de um tempo que parece passar cada vez mais rápido.
Logo,
é impossível conhecer uma determinada cultura, sem analisar as redes de
relações construídas entre indivíduos e a organização do tempo. O
modo como cada cultura organiza o tempo, revela aspectos fundamentais da
organização dessa sociedade. Da mesma forma, “a
onipresente consciência do tempo dos membros de sociedades relativamente
complexas e urbanizadas é parte integrante de seu modelo social e de sua
personalidade (Elias, 1989, p. 176).
Além
disso, o tempo tem sido tratado como algo que envolve mistério, enigma e
poderes sobrenaturais; como se fosse necessário desvendá-lo, para
compreendê-lo. Elias (1989, p. 13) afirma que esse caráter enigmático
do tempo é proveniente da complexidade das relações humanas e afirma
que, "...da convivência humana
resulta algo que os homens não entendem, que se apresenta como enigmático
e misterioso". Esse algo, chama-se "tempo".
Tal
mistério tende a ser proveniente da desvinculação entre símbolos que
representam o tempo e os significados históricos dos mesmos. Por exemplo:
calendários e relógios foram construídos a partir das observações do
complexo movimento dos astros, mas as origens de tais configurações
raramente são lembradas. Então, quando construções são tratadas como
coisas alheias ao próprio homem, cria-se a ilusão de que possam existir
por si mesmas.
Elias (1989) usa o termo "coação
social" para explicar como na sociedade industrial um novo modelo
de tempo surge e pauta nossa subjetividade. Com a disciplinarização
temporal presente desde a constituição da identidade, a modernidade
produz um tempo representado: "...pela
velocidade de relógios, calendários e horários, ostenta nessa
sociedade, as propriedades que fomentam coações que o indivíduo impõe
a si mesmo. A pressão dessas coações é relativamente pouco apreendida,
medida, equilibrada e pacificada, porém, onipresente e inevitável",
(Elias, 1989, p. 32).
Uma organização temporal pautada pela auto-coação necessitou de
disciplina até ser incorporada na subjetividade. Para Elias (1989, p.
21), "a transformação da coação
externa da instituição social do tempo em uma pauta de auto-coação que
abarca toda a existência do indivíduo, é um exemplo gráfico da maneira
em que o processo civilizador contribui para modelar uma atitude social
que forma parte integrante da estrutura da personalidade do indivíduo”.
Isso significa que com o "processo
civilizador", a coação externa transformou-se em auto-coação
e o tempo passou a impor seu domínio não apenas externamente, mas
principalmente internamente.
Nesse caso, o questionamento de Elias (1987) é: "Como
acontece isso, que nós constantemente pensamos sobre o tempo? Que o tempo
tornou-se parte de nossa consciência? Nós vivemos constantemente a
lembrança que agora é meio-dia e logo será uma hora...".
O conhecimento dividido em áreas previamente estabelecidas e sem
correlações entre si pode dificultar o estudo daqueles que têm no
tempo, seu objeto de investigação. Mas parece que, "Estudar
o tempo pode talvez contribuir para corrigir esta imagem errônea de um
mundo com compartimentos estanques. Estudo que se revela impossível,
quando se escamoteia o eixo de que a natureza, a sociedade e os indivíduos
estão mesclados e são interdependentes" (Elias, 1989, p. 25).
Para superar a dicotomia das ciências e captar o tempo em toda
multiplicidade, Elias (1989, p. 18) sugere o seguinte:
"Uma
idéia básica é necessária para entender o tempo: não se trata do
homem e da natureza, como fatos separados, senão do homem na natureza.
Com isso, fica facilitado o empenho de investigar o que significa o tempo
e por entender a dicotomia do mundo em natureza (área de estudo das ciência
naturais) e sociedades humanas (área de estudo das ciências humanas e
sociais) conduzem a uma cisão de mundo, que é produto artificial de um
desenvolvimento científico errôneo”.
Como
categoria que não deve ser restrita a nenhuma disciplina em especial, mas
que, faz parte do conhecimento humano como um todo, o tempo nos desafia na
construção de meios que possam superar a divisão das ciências e
integrar homem e tempo. Textos de Elias (1984, 1989, 1993, 1994) não
trazem uma sistematização teórica fechada sobre tempo e nem pretendem
esgotar a riqueza do tópico. Pelo contrário, Elias (1989, p. 180) já
alerta sobre perigos de estabelecer uma psicologia ou sociologia do tempo
e novamente reproduzir a cisão ideológica da ciência.
Paralelamente, ele (1989, p. 157) critica a divisão existente
entre Psicologia Social e demais Psicologias, apontando que tal separação
é errônea e produto de um abismo ontológico entre indivíduo e
sociedade, além de dificultar estudos integrados e críticos do tempo.
Elias (1994, p. 41) chega a afirmar que a Psicologia deveria ser o elo
entre ciências naturais e humanas, visto que a estrutura da psique
humana, da sociedade e da história são indissociáveis, complementares e
só podem ser estudadas em conjunto. Para Elias, é
na Psicologia que repousa, então, a possibilidade de construção da
ponte entre ciências naturais e sociais. Mesmo
assim, as dificuldades são várias. Uma delas refere-se a problemas de
comunicação entre diversas especialidades:
"A tendência de cada grupo de cientistas de considerar seu próprio domínio como sacrossanto e como uma fortaleza para proteger intrusos com um fosso de convencionalismos e ideologias comuns àquela especialidade, obstrui qualquer intenção de relacionar as distintas áreas científicas mediante um marco de referência teórico comum. Tal como estão as coisas, é difícil derrubar essas barreiras, quando nos ocupamos do problema do tempo" (Elias, 1989, p. 110)
Somente quando se questiona a divisão de saberes, falta de
instrumentos teóricos, conceituais e processuais nos estudos do tempo é
que se tem maior clareza das questões que não foram apontadas e
continuam recebendo pouca atenção de nossa parte. Como Elias (1989, p.
97) mesmo afirma: “na prática das
sociedades humanas, os problemas de determinação do tempo desempenham um
papel de importância crescente; nas teorias sociais, a atenção
consagrada aos temas da determinação do tempo é relativamente mínimo".
Sendo o tempo denominador comum das atividades, organizador do
acontecer, regulador da vida cotidiana e de um número cada vez maior de ações
e em redes cada vez mais complexas, não é à toa que seja apontado como
uma das grandes construções da humanidade. O que talvez não tenha sido
previsto é que esse organizador das relações sociais, assim como
qualquer outra invenção humana, também pudesse ser usado como
instrumento de controle social. Captar a ambigüidade do tempo como necessário
para a vida em sociedade e também como possível causador de sofrimento
para a mesma, é buscar compreendê-lo em seus múltiplos aspectos e dinâmicas.
Nesse sentido, a Psicologia Social tem muito a contribuir para a compreensão das redes de relações entre experiência e disciplina do tempo; de modo que "...compreender sua própria experiência do tempo é, também, compreender a si mesmo" (Elias (1989, p. 217).
Notas
* - Doutoranda em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela Universidade Estadual de Londrina.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Elias,
N. (1989). Sobre el tiempo.
México: Fondo de Cultura Econômica.
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(1993). O
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(vol. 1), Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.I
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(1994). A sociedade dos indivíduos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
________ (1994). O processo
civilizador - uma história dos costumes (vol. 2).
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
________ (1995). Mozart – sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
________ (1994). Reflections on a life. Cambridge: Polity Press.
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