O artista Ilê Sartuzi vive e trabalha em São Paulo (SP) e respondeu algumas questões feitas pela DaP. Ele participa da 3ª exposição do ARTE LONDRINA 7, Precipitações, com os trabalhos Arnold Schwarzenegger, sem título (videgame_glitches) e sem título (vedetes).

 

Os três trabalhos apresentados, investigam a representação do corpo, internalizam lógicas de superfície, fragmentação, repetição e variação para corpos – todavia não unificados – constituídos a partir de partes dispersas. A relação entre a volumetria do corpo e a bidimensionalidade da imagem atravessa esses trabalhos a começar pela explicitação da imagem enquanto superficialidade, em sem título (vedetes), que internaliza a condição mesma das vedetes. Essa lógica está tanto na concepção de máscara, na projeção que toca apenas essa pele e até mesmo no mecanismo posto a nu.

Um recorte de papelão soma quatro poses de Arnold Schwarzenegger. Sobre a silhueta, são projetadas as poses alternadamente, em fades lentos de uma para a outra, mimetizando a movimentação que o modelo poderia ter em uma exibição de fisiculturismo. Neste caso, por mais que este corpo seja dotado de uma volumetria extraordinária, é frequentemente visto enquanto imagem, foi feito para ser apreciado enquanto imagem, para alguns, de um corpo ideal. Enquanto isso, o vídeo sem título (videogame_bodyglitch) explora as falhas estruturais de corpos virtuais que, por vezes, revela o caráter epidérmico das imagens.

– Ilê Sartuzi

 

COM QUEM TEM AS MELHORES CONVERSAS SOBRE O QUE TE INTERESSA COMO ARTISTA?

As pessoas que mantenho perto de mim normalmente me excitam o pensamento. Elas podem ser também artistas (normalmente de uma geração um pouco mais velha do que eu) arquitetas, cineastas, críticos e professoras. Mas, às vezes, as conversas também surgem em diálogo com livros ou filmes, com outros trabalhos de arte e algumas boas pérolas, nos sonhos.

 

COMO UM TRABALHO COMEÇA?

Cada trabalho começa de uma maneira diferente para mim. Normalmente, um acúmulo de raciocínios internos aos desenvolvimentos da obra e referências externas vão entrando em contato até que a formalização em si acontece. Isto pode acontecer também com estímulos materiais que se chocam com um interesse recente. Então manter uma série de fluxos acontecendo ajuda a aumentar a probabilidade de encontros inusitados entre uma materialidade e questões conceituais que estão orbitando em um espaço médio de tempo.

 

QUE ARTISTAS OU TEÓRICOS VOCÊ CONSIDERA IMPORTANTES? POR QUÊ?

A lista seria grande, é claro, muito do trabalho se dá em “diálogo” com uma certa tradição. Mas acredito que há um interesse forte nas figuras que giravam em torno do que se chamou de “Dada” e “Surrealismo”. Dentro deste último, me interessa mais a posição “baixa” de Georges Bataille do que de André Breton, por exemplo. O interesse do corpo estranho está na obra de Man Ray, Hans Bellmer,(saiba mais)Alberto Giacometti e Marcel Duchamp (saiba mais)(inescapável também por outros motivos) etc. Um círculo de críticos (teóricos) que contribuíram para a revista October, nos Estados Unidos da América, se debruçaram bastante sobre a história da arte moderna, em particular, no caso da Rosalind Krauss, sobre a imagem do corpo dentro da produção surrealista. Assim como estes, o interesse atravessa também a psicanálise e a filosofia contemporânea, com escritos também recentes sobre corpo e gênero (Preciado, Butler, Haraway, Agamben etc.)

 

O QUE VOCÊ ESTÁ LENDO?

No momento (em cima da minha mesa) estou transitando por algumas leituras passadas como:

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2012

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

BATAILLE, Georges. O erotismo.  Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

IBSEN, Henrik. Casa de Bonecas. São Paulo: Editora Veredas, 2007.

KANTOR, Tadeusz. O Teatro da Morte. São Paulo: Perspectiva, 2008.

SHELLEY, Mary. Frankenstein, ou o Prometeu moderno. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015

Além disso, e essa é uma leitura nova, estou debruçado sobre o raríssimo catálogo da exposição com curadoria de Mike Kelley na Tate chamado Uncanny (uma impressão barata que fiz de um .pdf achado na internet). O artista investiga o termo freudiano (Unheimlich) na produção de esculturas figurativas do final do século. Além dessa temática ser de profundo interesse, ler texto de artista e o pensamento dele articulado em uma exposição é fabuloso.

 

QUE TIPO DE COISA CHAMA SUA ATENÇÃO NO MUNDO?

Eu não sei o que seria mais tosco responder, se são coisas exteriores à arte que dizem respeito ao meu trabalho, ou assumir que, de fato, o que me chama atenção no mundo (que eu circulo) é arte mesmo. Talvez seja um pouco dos dois. Recentemente estou bastante intrigado com algumas tecnologias que dizem respeito à construção ou substituições de imagem do rosto, como o que está sendo chamado de DeepFake. Além disso, estou olhando para as Inteligências Artificiais aplicadas em humanoides (Artificial General Intelligence) e os desenvolvimentos da inteligência artificial na elaboração de textos – este ano a OpenAI lançou o GPT-2 com capacidades tão extraordinárias que ainda não foram inteiramente publicadas.

 

O QUE VOCÊ ESTÁ PRODUZINDO AGORA?

Este ano estou elaborando um grande projeto que é uma peça de teatro sem atores, a partir dos trabalhos que venho desenvolvendo nos últimos anos e que se animam dentro do próprio ambiente de produção, numa grande instalação no tempo.

Através de diversos dispositivos que animam objetos na ausência de atores, a peça explora as inquietantes possibilidades de projeção de um corpo (ausente) em peças antropomórficas e no próprio espaço. Figuram bonecos, manequins e fantasmagorias das mais diversas, explorando a repetição e a substituição enquanto formas poéticas e estratégias de construção e derretimento do corpo. Os dispositivos que regulam a obra são transparentes e sua precariedade denuncia giros em vão de uma máquina que está prestes a fugir do controle.

Apesar da centralidade do corpo enquanto imagem, mesmo dos sons produzidos, seus resquícios são sempre a marca de uma ausência. Para além da subjugação desses corpos a tecnologias desmaterializantes e da diluição da ideia de corporeidade dentro de uma virtualidade luminosa, a Casa de Bonecas explora um imaginário ligado a interioridade doméstica e aos exercícios infantis de imaginação. Essa familiaridade deslocada, no entanto, desperta um sentimento de estranhamento frente a esses objetos (in)animados.

 

QUE MÚSICA VOCÊ OUVE?

Varia bastante, mesmo. Enquanto estou trabalhando às vezes colocar um álbum inteiro é importante, se acerta o clima do momento, mas na maioria das vezes a aleatoriedade é uma boa opção também. Neste momento, na seleção de ouvidas recentemente estão os artistas: Agar Agar, Billie Eilish, Charles Mingus, Patti Smith, Pink Floyd, Radiohead e Sonic Youth.

 

QUE EXPERIÊNCIA FOI IMPORTANTE PARA QUE VOCÊ SE ENTENDESSE COMO ARTISTA?

Acho que um questionamento constante é qual o papel do artista na contemporaneidade. Esse tipo de questão, cuja resposta ainda deve continuar em elaboração por um bom tempo, deveria ser a primeira coisa a ser entendida, antes de me dizer artista. Um segundo ponto é a ideia de que o artista é, antes de mais nada, aquele que produz arte (por incrível que pareça existe muita gente querendo ser artista sem produzir, das maneiras mais diversas, arte). Não sei se me sentiria confortável em marcar um mito inicial que iniciasse minha posição como artista. O clichê, produzo desde pequeno etc., não precisa ser posto; acho que foram uma série de experiências que foram se acumulando e transformando o entendimento do que eu faço e do que eu deveria fazer.

 

O QUE A SUPERFICIALIDADE APONTADA COMO QUESTÃO NO SEU TRABALHOS, DIZ SOBRE COMPORTAMENTO HUMANO?

Eu acredito que a superficialidade apontada diz menos sobre o “comportamento” humano e mais como estamos lidando com o corpo enquanto imagem. Talvez eu pudesse dizer, sim, do comportamento do sujeito moderno, da sua face blasé frente ao aceleramento das metrópoles, etc.; mas parece que interessa mais ao trabalho como o corpo é representado, seja na cultura contemporânea através de dispositivos eletrônicos, seja na história da arte. A superficialidade apareceu bastante no trabalho a partir de uma transição de trabalhos pictóricos para o espaço. Pensando no que Greenberg disse sobre uma suposta especificidade da pintura enquanto “bidimensionalidade”, no momento em que fui pensar essa pintura no espaço, a bidimensionalidade apontou para um interesse de superfície que é incorporado pelos três trabalhos em exposição na Divisão de Artes Plásticas da UEL.

Principalmente nas vedetes, as lógicas de superfície são centrais no trabalho que as reitera a todo momento: na máscara, na projeção que toca apenas a película, na própria natureza das imagens etc. Arnold também toma essa ideia para transformar o corpo hyper-musculoso e volumétrico do ator, bodybuilder e ex-governador da Califórnia, numa chapa de 6mm que se apresenta em fades lentos sustentado por uma estrutura metálica. No vídeo dos glitches a superfície assume uma outra investigação dentro da construção de mundos diferentes dentro de softwares de programação e, no caso, também a representação do corpo dentro desse universo. Através das falhas, é possível verificar que, às vezes, o rosto é apenas uma película vazia nos jogos, ou que a tridimensionalidade dos corpos logo são esvaziadas para um plano.

 

QUAL SEU INTERESSE EM EQUIPAMENTOS QUE POSSAM FORNECER RESPOSTAS MAQUÍNICAS PROGRAMADAS E ESTEREOTIPADAS?

É uma boa pergunta por que diz respeito exatamente ao que estou pesquisando nesse momento. Como disse anteriormente, estou bastante interessado nesse tipo de inteligência artificial que é o GPT-2, estou usando essa ferramenta como uma co-autora de dramaturgia para a peça que estou desenvolvendo. O curioso é que essas inteligências devem apreender a partir de coisas que já existem no mundo, produzidas pelo ser humano. Então o que elas fazem (se não estou enganado, é uma tecnologia bastante complexa que estou tentando entender) é sempre uma resposta mais ou menos “estereotipadas” (como você pergunta) do tipo de informação que os seres humanos disponibilizam na internet. O modelo que foi disponibilizado até agora é o “345M” que usa 345 milhões de parâmetros para a escolha das palavras seguintes na construção do texto.

Todo mundo já brincou um pouco com isso nas sugestões de palavras do WhatsApp (que utiliza também um tipo de inteligência linguística). No aplicativo você tem sempre três sugestões de próximas palavras que seriam as com maior probabilidade de uso segundo o que esse programa capta de você. Portanto, o interesse em estudar as “respostas maquínicas programadas e estereotipadas” deve-se a possibilidade de perceber nesse “outro” aquilo que é médio em “nós”.

Um outro exemplo, um pouco mais extremado, é o”ChatBot” da Microsoft, TayTweets. A conta oficial do “Twitter” dessa inteligência artificial desenvolvida pela Microsoft, em 23 de março de 2016, durou pouco mais de 16h antes de ser desativada pela primeira vez. Em pouquíssimo tempo, os comentários foram se tornando ultra-racistas e essa personagem passou até mesmo a defender a figura de Hitler e Trump, por exemplo. Acho que um dos maiores desafios em desenvolver IAs é fazer com que, justamente, elas “possam (não) fornecer respostas maquínicas programadas e estereotipadas”, isto é, que consigam, pelo menos, não refletir o pior que existe na humanidade.

 

 

 

Ilê Sartuzi, Arnold Schwarzenegger

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