A artista Ana Calzavara respondeu algumas questões feitas pela DaP. Ela resite e trabalha em São Paulo – SP e participa da 3ª exposição do ARTE LONDRINA 7, Precipitações, com os trabalhos Eu estava aqui agoraVisão interrompida.

 

Muito além de uma qualidade descritiva, o que me interessa é a relação que estas imagens podem estabelecer com um certo caráter ambíguo entre figuração/abstração, realidade/ficção. Neste sentido, acredito que as mudanças promovidas e as novas pinturas da série se acercaram mais de meu propósito: procuro por imagens que consigam de algum modo suscitar questões ambíguas no espectador; que indaguem sobre o que resta da ideia de sensação, de percepção, da experiência no/do mundo. Apesar de desejar criar tensões oriundas da natureza das imagens ali presentes – fílmica, televisiva, da tela do computador – e o tratamento dado à superfície pictórica – percepção física da matéria, da tinta, da pincelada, que poderiam trazer algum resquício de experiência – o que esses trabalhos talvez de fato pretendam é refletir sobre a possibilidade do resíduo de permanência da arte em um mundo como o nosso, onde as imagens pululam, velozes e intermitentes. Ao colocar camadas de tinta sobre a imagem antes legível, também retira-se a capacidade de tão somente descrever: a imagem desacelera.

– Ana Calzavara

 

COM QUEM TEM AS MELHORES CONVERSAS SOBRE O QUE TE INTERESSA COMO ARTISTA?

Com amigos artistas e não-artistas. Mas também com muita gente que converso por aí e não falo necessariamente sobre ‘arte’. Simplesmente sobre coisas da vida, assuntos mais variados possíveis. Mas que, de algum modo, se conecta à questões que me interessam como pessoa e artista.

 

COMO UM TRABALHO COMEÇA?

De formas variadas – ao menos comigo, não há uma única via de acesso. Mas um trabalho começa, via de regra, por uma somatória de coisas: imagens que se acumulam, imagens que, em geral, te atraem; ideias que vão se somando aqui e ali até tomarem forma de um desejo que, por sua vez, redunda no próprio desejo de transformá-lo em um trabalho – de vir ao mundo.

 

QUE ARTISTAS OU TEÓRICOS VOCÊ CONSIDERA IMPORTANTES? POR QUÊ?

Nossa, tantos… Já respondi essa pergunta no passado, mas já não me lembro como a havia respondido. Mas acredito que essas influências dependem muito também do momento da trajetória de um artista. Nesse meu, tenho olhado para artistas como Francis Alys, Christiane Baumgartner, Tacita Dean – por várias razões, como relação de meios tradicionais e digitais, pela aproximação com o cotidiano, com a ideia da repetição e fragmentação da imagem. Entre os brasileiros, pintores como Cristina Canale, Rodrigo Andrade, Fábio Miguez, Paulo Pasta (para citar alguns, há muito mais) me interessam pela questão do meio pictórico – e como dialogam com o mundo a partir dele. Teóricos: no momento, para mim, o filósofo Byung-Chul Han – porque fala de assuntos muito pertinentes sobre o que vivemos agora.

 

QUE VOCÊ ESTÁ LENDO?

Vários livros dele, como No Enxame, perspectivas do digital; Sociedade do Cansaço, Agonia do Eros, Bom entretenimento, A salvação do Belo.

 

QUE TIPO DE COISA CHAMA SUA ATENÇÃO NO MUNDO?

No momento? Essa espécie de truculência do mundo que estamos vivendo. Estamos vendo mudanças importantes (e muitas vezes, a meu ver, não positivas, até mesmo trágicas) no Brasil e no mundo, sobretudo em termos políticos (público), mas também comportamentais (individual). Há também a questão da presença cada vez maior da mídia digital em nossas vidas, que transformam nosso comportamento e percepção, as fronteiras entre ‘realidade real’ e ‘realidade ficcional'(para emprestar alguns termos do Han), a massa de informações (nem sempre verdadeiras) e imagens a que estamos submetidos; enfim, tudo isso que constitui nossa ‘realidade’ ao entorno e que aponta para novas constituições do sujeito e sociedade, isso tudo tem me chamado muita atenção. Como lidar com tudo isso? Como pessoa (subjetiva e cidadã) e como artista que lida, justamente, com a imagem? De positivo, vejo a força dos movimentos sociais e culturais da periferia – acho que é algo que foi adquirido e nem em um momento adverso como o que estamos vivendo isso vai se enfraquecer – muito pelo contrário.

 

O QUE VOCÊ ESTÁ PRODUZINDO AGORA?

Estou às voltas com essas questões – talvez isso se reflita no trabalho. São pinturas, gravuras e fotografias. E pela primeira vez, eu, que sempre tive muito pudor de tratar de assuntos factuais, relacionados a uma realidade reconhecível, estou às voltas com um trabalho dessa natureza. Talvez pela contundência dos fatos desse momento que estamos vivendo.

 

QUE MÚSICA VOCÊ OUVE?

Sou meio ‘errante’, em vários sentidos. Não consigo ter só uma linha estética musical, nem literária, nem visual. Sou fiel de outro jeito – pela intensidade e constância. Mas pulo de galho em galho. Gosto dessa pluralidade, ainda que às vezes me sinta um pouco ‘esmagada’ por ela (no sentido de não dar conta da variedade e quantidade de novidades e informações). Mas ultimamente, sou ouvinte assídua do programa da Roberta Martinelli, “Som a Pino”: ali, encontro artistas brasileiros que muitas vezes desconhecia, e que, graças ao trabalho atento da apresentadora, podem ampliar o público a que chegam. Também tenho frequentado alguns lugares aqui em SP, através de dicas de amigos, que possibilitam ouvir artistas que não chegam muitas vezes na mídia mais ampla. Recentemente, tenho ouvido o disco do Vertin Moura, por exemplo, o qual conheci através do Nelson Maca, poeta e músico.

 

QUE EXPERIÊNCIA FOI IMPORTANTE PARA QUE VOCÊ SE ENTENDESSE COMO ARTISTA?

Hum, não sei dizer precisamente – sei que isso já estava mais ou menos claro para mim desde muito cedo, uns cinco, seis anos. Sempre fui mais para esse lado – também tocava, dançava, gostava de escrever – enfim, sempre gostei e me achava nessas atividades. Quando fui prestar vestibular para Arquitetura, foi uma questão de ‘esticar a corda’ um pouco mais além e resolvi prestar logo para uma área que mais me interessava – artes visuais.

 

MÚLTIPLAS PERCEPÇÕES NOS IMPEDEM TENTATIVAS DE PUREZA?

Acho que sim. E para quê, a pureza? Em que sentido? Ao longo da vida, aprendi a dar mais valor à impureza, às impurezas. Somos impuros, certo? Acho todo discurso de pureza perigoso e, ao contrário, tudo que envolve mistura, erro, deslizes, mais gostoso, aberto, generoso. Lembro, quando criança, da experiência de andar na feira com minha mãe e ver, por exemplo, alguns legumes ou frutas esmagadas no asfalto – aquilo que me dava aversão, mas ao mesmo tempo sabia intuitivamente da importância em aceitar um tomate pisado – aquela matéria rompida faz parte da vida; somos, de algum modo, aquilo.

 

PERCEPÇÃO É ATRITO?

É também, sem dúvida. Atrito é contato – percepção é contato – é você tendo contato com o mundo, com as pessoas, com as ideias. Percepção é contaminação, troca – e no atrito pode-se ter muito prazer também, não é? Se soubermos conduzi-lo, ele é rico e nos faz melhores e mais maduros. Não acredito em relacionamento e aprendizado sem atrito, ele faz parte. Porque quando percebemos a fundo uma situação, uma pessoa ou a nós mesmos, não haverá só concordância – o importante é persistir, ir além do ponto de inflexão. Mas percepção pode ser também contemplação, silêncio, deleite; tempo esgarçado. Difícil, nos nossos tempos apressados.

 

QUE INTERFERÊNCIAS ACEITA NO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE SUAS PINTURAS?

Todas – gosto de receber pessoas no ateliê para verem o que estou produzindo e trocar ideias sobre, por exemplo. Mas, no fundo, acho que, como artistas, somos meio ‘teimosos’ em fazer o que acreditamos – e acho isso importante também; ou seja, ouvir não significa necessariamente acatar ideias ou críticas – é necessário também acreditar em algo e fazer, mesmo que as pessoas ao redor inicialmente não gostem daquilo que esteja sendo produzido. Ou seja, respondendo novamente: aceito todas as interferências, desde que elas passem pelo meu crivo, rsrs. Mas, falando sério, como sujeitos no mundo, sofremos interferências diárias daquilo que vivemos, ouvimos, vemos, lemos, etc. Portanto, nesse sentido, as interferências são permanentes – e um trabalho começa em uma direção e não necessariamente termina na mesma – ele é aberto para acatar mudanças que acreditamos importantes no meio do caminho (processo).

 

QUANDO UMA PINTURA ACABA?

Isso também é difícil de responder, depende do caso (da pintura): às vezes é fácil de perceber isso: percebemos que a pintura “deu certo”, ou seja, ela funciona, tem algo ali que satisfaz quando olhamos para ela. Em outras, não. É relativamente comum eu voltar a uma pintura que já tinha dado como pronta e trabalhar um pouco mais. Eu tendo a fazer isso, insistir quando, para a maioria das pessoas, aquilo já está bom. Então, como já sei que tenho essa tendência, me policio também para não insistir em algo que talvez já esteja finalizado.

 

NA SUA PINTURA, O GESTO É EVIDENTE, COMO, NÃO REFERIR-SE A UMA POTÊNCIA FÍSICA? ABSTRAÇÃO FÍSICA?

Sim, é verdade. O gesto, na minha produção, está presente desde meu início, na graduação. Depois, teve um momento em que ele foi obliterado – para voltar agora ao trabalho, sem muitas inibições. Acho que faz parte do meu temperamento. Ele não é só presente na pintura – em minha gravura, também. E me interessa pensar no gesto como esse lugar da particularidade, daquilo que me diferencia (deflagra a individualidade) face a novas tecnologias.

 

Ana Calzavara em seu ateliê

 

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