Simone Cupello vive e trabalha no Rio de Janeiro (RJ) e participa da exposição Empresta-me um de seus dias com o trabalho Sorrisos em caixa, que acontece atualmente na Divisão de Artes Plásticas. Ela respondeu algumas perguntas ao nosso site:

 

COM QUEM TEM AS MELHORES CONVERSAS SOBRE O QUE TE INTERESSA COMO ARTISTA?

Acho que todo artista tem problema com isso. Tratamos de coisas não nomeadas e entendimentos singulares sobre fatos e fenômenos. O máximo que podemos fazer é trocar experiências com outros que passam pelo mesmo. Por isso gosto de grupos de estudo, me formei com eles. Uma das raras oportunidades de ter um olhar de fora e continuado sobre o próprio processo. Certamente, tive ali grandes conversas sobre questões que me mobilizam e também, mais tarde, com companheiros que se tornaram amigos. Pessoas com quem posso ir facilmente a uma certa profundidade, seja pela familiaridade com o meu trabalho, seja pelos códigos e referências que o grupo nos proporcionou.

 

COMO UM TRABALHO COMEÇA?

Poderia responder que já nem lembro. O trabalho é processual, isso significa que cada obra vem de outras anteriores, dos erros, das reflexões no fazer, das novas questões que vão aparecendo, e tudo demora a se concretizar. Ao mesmo tempo, lido com fotografias coletadas e nem sempre tenho o material adequado para os trabalhos. Procuro aproveitar ao máximo o que vem delas, do ponto de vista humano e material, das estórias que um doador conta à resistência ao sol e a chuva, por exemplo. Vou organizando tudo em lotes que ficam à espera da ocasião certa. Também posso dizer que os trabalhos vêm de coisas que quero fazer com imagens (justapor, cortar, esconder, raspar…), pequenas ações-texturas onde vou testando os limites do imagético com a matéria.

 

QUE ARTISTAS OU TEÓRICOS VOCÊ CONSIDERA IMPORTANTES? POR QUÊ?

Ainda estudante de cinema comecei a me interessar por Vilém Flusser e Pier Paolo Pasolini. A visão da imagem fora da imagem, de Flusser, sua concepção de “caixa preta”, eram muito fortes e na contramão de tudo o que estudava e que apliquei na vida profissional. Graças a ele, desenvolvi vários pensamentos sobre imagens enquanto lidava com elas no cotidiano. Já em Pasolini, é difícil resumir, mas me interessa o homem de que ele trata: o da cultura do vilarejo (que toca a matéria e que, em Orgia, fala sem falar), que se torna o da periferia nas grandes cidades (que “cotovelo a cotovelo vê a mesma TV” do vizinho) e que, no fundo, ainda é o helênico da tragédia ou o que vê o mundo “da fronteira extrema de uma era enterrada”. Olhando à distância, vejo que muitas de minhas escolhas vieram do entrelaçamento dessas ideias: o interesse pela materialidade, a preferência por imagens de consumo, por obras com muitas vozes e um certo aspecto arqueológico (da imagem que um dia vai virar pedra). Coisas que fui costurando também de olho na experiência dos minimalistas, principalmente no que diz respeito à inversão do papel dos materiais e à relação obra/espaço/fruidor.

 

O QUE VOCÊ ESTÁ LENDO?

Costumo ler várias coisas num mesmo período, livros que vou pegando de acordo com o humor e interesse do dia. Posso nomear os atuais: “No lugar mesmo: uma antologia de Ana Maria Tavares”, uma artista que olho com atenção; o “Octaedro” de Cortázar; “Imagem, Ícone e Economia – As fontes bizantinas do imaginário contemporâneo”, de Marie-José Mondzain, dica do Jailton Moreira em seu último curso que tratou de ícones, iconófilos e iconoclastas; um catálogo da Aros Trienal de Arte da Dinamarca, que na primeira edição falou de jardins, um assunto que estou sempre rondando; e “La Camara de Pandora – La fotografia despues de la fotografia”, de Joan Fontcuberta, por motivos meio óbvios.

 

O QUE VOCÊ ESTÁ PRODUZINDO AGORA?

Investigo séries escultóricas que comecei no ano passado e trabalho num projeto sobre lojas de fotografia. Algo que começou por acaso, ao tentar viabilizar um trabalho impossível, e que me levou a entender o quanto esses locais, que tendem ao desaparecimento, podem ser interessantes pra mim. Um projeto que, entre outras coisas, tem a ver com as minhas memórias e me permite entrar, de maneira enviesada, em questões que envolvem tecnologia e comércio.

 

QUE MÚSICA VOCÊ OUVE?

Morei uns anos fora do Brasil e ouvi muita MPB, por saudade, e música estrangeira pra treinar o idioma. O canto e a dança flamenca me comovem, por exemplo, mas gosto de tudo um pouco, desde que tenha qualidade. Não costumo trabalhar com música ao fundo, mas vivo com alguém que adora música. Em casa ouve-se jazz, música clássica, e também coisas como cantos de pigmeus da África Central e músicos que fazem som com o corpo. Vamos dizer que sou uma “vizinha” da música.

 

QUE EXPERIÊNCIA FOI IMPORTANTE PARA QUE VOCÊ SE ENTENDESSE COMO ARTISTA?

Passei muito tempo indecisa sobre ter uma carreira artística, me sentia ligada à produção de imagens e, principalmente, às questões que a rodeiam. Por razões de trabalho, pelas frequentes edições sobre cultura e arte, comecei a estudar e me deparei com o grupo de estudos de Charles Watson, que tinha como norma intransponível a prática. Assim, minhas primeiras obras, na maioria vídeos, chamo de “deveres do Charles”, que realizava para poder participar de um grupo fantástico formado por artistas como Lúcia Laguna, Cadu, Alice Micele, Eduardo Berliner e outros. Anos depois, em 2011, recém-chegada de uma Bienal de Veneza, resolvi me pôr a prova. Parei com as edições, aluguei um ateliê e por quase 2 anos trabalhei bastante. Sem querer opiniões variadas e intuindo o que pretendia tratar, pedi a ajuda de Lúcia Laguna e do professor  e orientador Carlos Murad. Gentilmente, e por separado, os dois me deram orientações informais. Foi um período de descobertas quando, pela primeira vez, consegui organizar e relacionar coisas que já vinha operando há anos.

 

O QUE PODE NOS DIZER SOBRE SUAS ESTRATÉGIAS DE DEVOLVER AOS VESTÍGIOS DE ARQUIVOS DE MEMÓRIA QUALIDADES CORPÓREAS?

No começo, me interessava apenas a relação entre imagem e materialidade. Trabalhava com a superfície da imagem, sua zona de interseção com o espaço físico. Mais tarde, descobri a fotografia impressa (meio imagem meio corpo) como uma forma de atuar no espaço, através da tridimensionalidade. E, à medida que fui precisando de fotos, comecei a utilizar o que era descartado pelas pessoas, mesmo sabendo que, cedo ou tarde, teria que dar conta da origem dessas fotografias. A exposição “Olhares Privados”, que realizei em 2016, mas que iniciei 2 anos antes, foi uma estratégia para me forçar a resolver isso. A partir dela, cada vez mais, as estórias e particularidades que encontro na frente e no verso das fotos foram se incorporando ao trabalho, que passou a ter uma conotação mais coletiva, voltada para um questionamento sobre a influência das imagens na vida das pessoas, ao mesmo tempo que fui explorando o desgaste das fotos para dar mais coisidade às obras. Isso foi transformador pra mim, o humano que sempre esteve por trás do meu interesse na materialidade pode passar para um primeiro plano. Mas não foi, e não é, uma coisa fácil. Fotografias antigas são muito contaminadas pela ideia de memória iconográfica. Costumo pensar que no meu trabalho, quando as pessoas se interessam excessivamente pelas situações expostas nas imagens, algo está se perdendo ali.

 

Simone Cupello em momento de trabalho

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