O artista Élcio Miazaki (São Paulo, SP) participa da exposição MELHOR SER FILHO DA OUTRA – ARTE LONDRINA 7 e nos concedeu esta entrevista:

– COMO UM TRABALHO COMEÇA?
Costumo perceber que meu trabalho se inicia diante de pesquisa e investigação. Acredito que o artista exterioriza tudo aquilo que possa representar seus prazeres, ou o lado voltado a traumas e angústias. Talvez eu dê mais ouvido ao que pra mim é incômodo, a assuntos ‘caros’ ou que evitamos comentar. Os meus trabalhos mais recentes, que lidam com o campo militar, são uma forma de recordar que muitas vezes não temos um poder próprio de decisão. Rapazes que estão para completar dezoito anos se veem diante do alistamento militar obrigatório, quando decidem por eles sem levar em consideração suas aptidões, vocações e desejos. Referindo-se ao material, sinto-me atraído geralmente por coisas esquecidas, ignoradas ou que estão prestes a ruir e sumir. Vou em busca desses elementos que pertenceram a uma época, mas que não tive contato ou conhecimento. É quase uma reconstituição de um ‘cenário’ para possibilitar uma vivência maior, que no passado, não foi percebida. Por exemplo, para mim, é recorrente eu ir atrás de materiais pertencentes aos anos da ditadura militar. Nasci e passei a infância durante esse regime, sem saber o que exatamente estava acontecendo no país.

– QUE ARTISTAS OU TEÓRICOS VOCÊ CONSIDERA IMPORTANTES? POR QUÊ?
Tenho formação em arquitetura e urbanismo, então as minhas primeiras referências acabam sendo dentro dessa área. Se arquitetos podem ser considerados artistas (ou teóricos), cito Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi. Certamente porque priorizavam o convívio, a memória e as necessidades locais. Nos projetos deles, podemos perceber mensagens subliminares contidas em conceitos como vencer grandes vãos livres até a integração de espaços externos com os internos. Enfim, entendo que essa arquitetura mais ‘permeável’, de livre acesso, de inclusão e de atitude mais libertária, deva reverberar no campo das artes.
Encontro identificação com a produção de Willian Kentridge, Iberê Camargo, Arthur Bispo do Rosário, Leonilson, principalmente por lidarem com um campo mais interno do ser. A melancolia, a angústia, a loucura e a intensidade me interessam.

– O QUE VOCÊ ESTÁ LENDO?
Ligeiramente fora de foco, de Robert Capa (autobiografia do fotógrafo que chegou a cobrir cinco guerras); Diálogos com Iberê Camargo, organização de Sônia Salzstein e Clarice Lispector: Pinturas, de Carlos Mendes de Souza. A escrita de Clarice sempre chamou a minha atenção, e chegar ao dado de que ela pintou alguns quadros, me despertou mais interesse ainda. O livro também aponta ao fato de que quando fotografada, ela ficada posicionada frente à parede com vários outros quadros (ao contrário da maioria dos literatos, que geralmente posam próximos a estantes de livros).

– QUE TIPO DE COISA CHAMA SUA ATENÇÃO NO MUNDO?
As relações entre as pessoas. Saber lidar com o próximo e perceber de fato o que nos mantém na condição de humanos. Sempre lembro de uma colocação de uma professora de linguagem arquitetônica, em que dizia que antes de sermos arquitetos (ou de qualquer profissão), devemos ser gente.

– O QUE VOCÊ ESTÁ PRODUZINDO AGORA?
Estou agora dando mais vazão ao capítulo sobre ‘socorro psicológico’ dos manuais do exército e que foi extinto provavelmente com a ditadura militar. Pesquisando guias mais recentes, mesmo depois da redemocratização, esse capítulo, com muitas nuances um tanto humanas e delicadas, nunca mais retornou. Acho curioso e sintomático esse fato, pois podemos refletir que, dessa forma, a ditadura tem permanecido. Em tempos atuais, pelo menos pra mim, isso faz mais sentido ainda. Então tenho trabalhado trechos desse capítulo que poderiam ter sido considerados ‘problemáticos’ demais, e até de esquerda, aos órgãos censores. Essas frases vem sendo transferidas e bordadas em uniformes, e também ganhando forma em letras de madeira para irem às paredes. Por enquanto, os trabalhos levarão o nome ‘Imperativos’, devido aos tempos verbais, também remetendo às ordens e obrigações. Mas também quero começar a pintar… alguns materiais no ateliê estão aguardando essa hora.

– QUE SITES VOCÊ COSTUMA ACESSAR?
Confesso que não sou muito de acessar sites… Recorro aos de busca para encontrar materiais de referência e relacionados à feitura dos próprios trabalhos (livros, museus históricos e de arte, galerias, editais, comércio e leilões eletrônicos…). Acredito que estamos mais dependentes dos aplicativos.

– QUE MÚSICA VOCÊ OUVE?
Escuto mais música nacional e variada: Virgínia Rosa, Tom Zé, Elza Soares, Lenine, Céu, Tulipa Ruiz, até Dona Onete. E também associo música a lugares ou países. Gosto de escutar Omara Portuondo e Rubén Gonzáles pois me levam de volta à Cuba. Aliás, por se tratar de uma nação sob regime ditatorial, pude vivenciar um pouco do que é estar em solo não democrático. (Escuto também por ‘inércia’ sons que outros artistas colocam no ateliê, uma vez que o local é compartilhado)

– QUE EXPERIÊNCIA COM ARTE FOI IMPORTANTE PARA VOCÊ?
Trabalhei, logo depois de formado, em um museu: o MIS (Museu da Imagem e do Som de São Paulo), onde tive contato não apenas com diversas exposições de arte e festivais de cinema, mas com o setor de acervo. Nele, pude ter um aprendizado com métodos de preservação e restauração. Contraditoriamente, intensifiquei a minha produção, dentro das artes visuais, depois de me desligar do museu. Para mim, a partir dos editais de exposições, pude perceber a importância deles, pois sempre é um aprendizado estar com os outros artistas que encontro e conheço pelo caminho, dividindo experiências e reflexões. A arte possibilita isso. Tenho também a vontade de rever o filme Jogo de cena, de Eduardo Coutinho. Pois nele, o expectador é convidado a analisar se os depoimentos (que foram todos reais), fizeram parte de fato da vida das entrevistadas ou não. Deparei-me com essa questão de que corremos o risco de acreditar naquilo que encontramos correspondência com o nosso imaginário.

– CORPO, CORPO TORNADO OBJETO, FETICHIZAÇÃO, COMO SEU TRABALHO ABORDA ESTAS QUESTÕES?
Ao lidar com elementos militares, reconheço que existe a objetificação do corpo, não apenas por um padrão que imaginamos como ideal para esse meio, mas também porque o indivíduo passa a estar a serviço de uma corporação. A padronização, causada pelo uso de uniformes, reforça a falta de individualidade e o risco do ‘apagamento’ de uma identidade, praticamente como seres manipuláveis. Em ‘Servir-se de primeiros socorros’, instalação que exponho no Arte Londrina 7, transferi em louças de época (mesma dos guias estudados), desenhos de procedimentos de salvamento. Imagens com as quais provavelmente o meio militar não gostaria de se ver associado. Paradoxalmente, se existe um fetiche por esses desenhos de corpos (que na realidade representam soldados em dificuldade, feridos e debilitados), é porque talvez estamos diante de uma abertura para o sensível, humano e imperfeito, com cenas de cuidados entre dois adultos, independente da interpretação que isso possa gerar. Acredito que um dependa do outro, em qualquer relação. Como a própria Clarice Lispector chegou a escrever, que vale a pena viver nem que seja para pedir socorro e ser atendido.

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